segunda-feira, 31 de março de 2008

Hello kitty

Um trecho.

(eu deveria organizar minha aula de quinta-feira, mas estou aqui há duas horas)


"Algumas vezes, no intervalo entre as aulas, Alexandre reunia as meninas em torno de si. Ele gostava de adivinhar quem estava usando batom. Olhava as meninas, rosto a rosto, e dizia. As meninas riam e se envergonhavam. Ele sempre acertava.

Um dia ficou muito tempo observando Paula. Estava em dúvida e depois disse, um pouco inseguro, que ela sim, estava de batom. Ela disse não. Ele não acreditou e quis passar o dedo em seus lábios para verificar, mas ela não deixou. Eu comecei a dizer uma coisa mas me interrompi. Todos já estavam rindo e mudando de assunto. Paula permaneceu ainda um tempo séria, olhando para ele. Eu queria dizer que nós estivemos no banheiro antes de começar a aula. Eu ia lavar a mão porque encostara sem querer no cadeado do portão sujo de graxa. Enquanto eu me enxugava, Paula tirou um batom de sua pasta, um batom pequeno cor-de-rosa bem claro da Hello Kitty. Era o mesmo batom que eu vi quando ganhou num aniversário e sua mãe não deixou ela usar. Mas às vezes ela passava escondido, eu tinha visto. Eu não entendia por que havia dito outra coisa. Era mentira ou ela se esqueceu? Por que ela iria mentir?

Alexandre não era sua mãe, ele não iria brigar com ela. Ela poderia ter dito a verdade."


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Na verdade, o pensamento está muito óbvio. Depois eu cuido disso.

Coragem e abnegação

Ontem quase torci o pé enquanto passeava com os cachorros. Hoje meu tornozelo está doendo.

Nos momentos de fraqueza, sinto uma necessidade do carinho que encontro nos meus livros preferidos. Olho a estante, são poucos. Não é possível gostar de muita coisa.

Gosto muito de Natalia Ginzburg. Este é um trecho do ensaio "As pequenas virtudes":

"No que diz respeito à educação dos filhos, penso que devemos ensinar não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a economia, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desprezo ao perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber."

Quando o li a primeira vez, fiquei assombrada com a simplicidade e verdade do que ela diz. Depois não sei. Ao menos quanto à economia e a prudência... precisamos disso também.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Nimiamente extenso

Coisas que estou aprendendo no curso do prof. Hélio:

Parece que os primeiros escritores do romantismo não tinham informação do que era exatamente o Brasil... nem sobre o território, nem as pessoas, não havia muito como saber essas coisas.

É num censo no início da década de 1870 que descobrem que só 16% da população é alfabetizada. E a busca de leitores, antes imaginada como uma luta contra o descaso, se transforma numa batalha já de início perdida. Pois as pessoas simplesmente não sabiam ler.

Esse seria um dos motivos da desilusão de Machado de Assis, que levaria à radicalização de seu estilo a partir de Brás Cubas. Em teoria: se não há público leitor, se não há mercado ou uma expectativa qualquer a que eu precise atender, me deixem em paz a escrever como quero.

Pode haver algo de dramatização, mas me fez pensar em Brás Cubas com bem mais tristeza e menos galhofa.

Relendo ontem o início, um trecho me pareceu realmente agressivo e triste:


"Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, cousa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela..."

quarta-feira, 26 de março de 2008

Meu estojo

Quando eu era criança, em Curitiba, não dizíamos "estojo".

Dizíamos "penal". Aparentemente, para guardar as penas.

Depois meu pai me ensinou a fazer uma caneta primitiva, cortando a base de uma pena enorme.

Funcionava com tinta nanquim, e me senti orgulhosa. Eu poderia escrever mesmo que toda a tecnologia do mundo acabasse.

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Minha mãe e minhas tias tentavam lembrar frases de minha avó, para colocar na sepultura. A tia lembrou uma frase linda: "estudo não ocupa lugar".

terça-feira, 25 de março de 2008

Suas veias

Uma frase que escrevi hoje e achei bonita:

"Sua pele branca era mais clara que a minha, porque sob meus pêlos castanhos não apareciam suas veias azuis."

segunda-feira, 24 de março de 2008

O pássaro voa

Continuo a revisão de "O afeto...". Corto os trechos lineares demais, colocando mais insegurança da narradora em relação a suas memórias. Também interrompo algumas lembranças pacíficas com cenas curtas de medo e insatisfação.

Preciso me controlar para não revisar o texto detalhadamente. O livro já deveria estar pronto, em teoria, a revisão é apenas para melhorar o enredo. Não as palavras. Não as frases. Mas é difícil conter o impulso de reescrever trechos que agora me parecem falsos.

Marquei em itálico algumas frases que mudei:

"Lembro bem dessa primeira tarefa (tenho certa vergonha de dizer "lembro bem" pois parece mentira ou exagero - mas às vezes é exatamente isso: eu lembro, e bem) *1. Tivemos aula de português, a professora passou uma redação com "tema livre". Eu sempre anotava as tarefas imediatamente, gostava de tentar entender tudo à primeira leitura *2. A professora era nova e eu queria caprichar, deixar logo claro que era rápida e escrevia bem. Quando peguei o material, em casa, para fazer o trabalho, vi a expressão "tema livre" e achei que "livre" era o tema. A palavra não me trouxe nenhuma inspiração e, embora fosse mais fácil escrever sobre qualquer outra coisa, me esforcei para falar em liberdade *3, um tema abstrato que não me trazia nenhuma associação, que eu não sabia como relacionar à minha vida real. Depois de pensar um pouco, não tive nenhuma idéia melhor do que a imagem de um pássaro voando solto no céu. Não gostei mas fazia as tarefas assim: rápido e na primeira tentativa. Não queria ficar horas pensando naquele assunto *4. Escrevi sobre o pássaro, e fiquei reclamando intimamente daquele tema que considerava idiota e estava me impedindo de mostrar à professora como eu era criativa *5. No dia seguinte entreguei minha redação amargurada, e enquanto a professora recolhia os textos, uma aluna disse que não tinha feito a tarefa porque não soubera o que escrever. A professora disse: "Mas era um tema livre, meu bem. Você poderia fazer o que quisesse." Eu poderia ter reagido a isso de qualquer outra maneira: poderia falar com a professora e pedir para fazer novamente o trabalho, ou comentar meu erro com Paula e dar risada *6. Mas no momento apenas fiquei em silêncio e pensei: "se eu podia escrever qualquer coisa, então o pássaro serve, ela não vai perceber meu engano" *7.

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Por que mudei essas frases:

*1: Ah, a insegurança da memória fica cafona, escrita desse jeito.

*2: Resolvi não exagerar nas descrições generalistas que a narradora faz de si mesma. Melhor colocar os pensamentos localizados em cada situação.

*3: Não há nada errado em teoria, mas a frase é comum. Achei que podia melhorar.

*4: Mesmo motivo de *2.

*5: "Ser criativa" é meio complexo para uma criança pensar, e parece nome de revista feminina.

*6: Deduções corretas, mas não servem para nada.

*7: Palavras difíceis para um criança, não deveriam estar entre aspas.

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No final, ficou assim:

"Lembro dessa primeira tarefa. A professora de português passou uma redação com "tema livre". Eu anotei concentrada porque era a primeria aula, a professora era nova e eu queria mostrar que escrevia bem. Em casa, quando abri o caderno, vi a expressão "tema livre" e achei que "livre" era o tema. Me pareceu tão abstrato e difícil. O que eu poderia dizer sobre liberdade? O tema era distante e não me trazia nenhuma associação, não sabia como relacionar à minha vida real. Depois de pensar um pouco, não tive nenhuma idéia melhor do que a imagem de um pássaro voando solto no céu. Eu percebia como a associação era banal e inútil: o pássaro voa, mas não diz nada sobre a liberdade das pessoas. Pessoas não podem voar. Essa lógica irritada fez a imagem se fixar na minha cabeça, e nada mais apareceu. Escrevi sobre o pássaro, e fiquei reclamando internamente daquele tema que considerava idiota e me impedia de mostrar à professora como eu escrevia bem. No dia seguinte entreguei minha redação amargurada e, enquanto a professora recolhia os textos, uma aluna disse que não tinha feito a tarefa porque não soubera o que escrever. A professora disse: "Mas era um tema livre, meu bem. Você poderia fazer o que quisesse." Só então, com vergonha, eu entendi. Mas não disse nada a ninguém. Apenas fiquei em silêncio e pensei: "Se eu podia escrever qualquer coisa, então o pássaro serve. Ela nunca vai perceber".

quinta-feira, 20 de março de 2008

Indignações veementes

A pedidos, um trecho de que não gosto:

"Resvés ao caminho-de-ferro de Entrecampos, em rua estreita e discreta, de que o nome não me ocorre, foi construído, há anos, o controverso edifício da Fundação Helmut Tchang Gomes, que, como é sabido, suscitou indignações veementes na migalha de público dita "os intelectuais", cismas avinagrados na Associação dos Arquitectos, balanceios incômodos na cadeira dum ministro, e choros convulsos numa misteriosa viúva de quem nunca mais se soube nada, nem eu nem ninguém."

O livro se chama "Era bom que trocássemos umas idéias sobre o assunto", de Mário de Carvalho, escritor português contemporâneo. O jornal fez elogios, o título era interessante e comprei. Não consegui terminar e fiquei com a sensação de jogar fora meu dinheiro.

Por que não gosto? Acho o humorzinho meio chinfrim...

Por que os intelectuais são uma "migalha de público"? Cismas avinagrados, balanceios incômodos, choros convulsos, tudo isso me parece muito floreio para pouco significado.

E por que dizer sobre a rua: "de que o nome não me ocorre"? Se não lembra, paciência, fique quieto. A não ser que o problema do livro seja a memória.

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Fiquei com vontade de comentar escritores brasileiros. Para ser mais útil e honesta, porque vivemos aqui e por princípio deveria nos interessar o que fazemos nós. Queria reler uns trechos do Bernardo Carvalho que me incomodaram há alguns anos, pelas frases curtas e o ritmo martelado demais. Mas não encontrei o livro na estante. E não adianta criticar em teoria.



Ah: se alguém se interessar pelo livro português, posso mandar de presente pelo correio.

terça-feira, 18 de março de 2008

Notei-o

Frases bonitas de um artigo publicado no "Correio do Brasil", em maio de 1872, sobre o romance "Ressurreição", de Machado de Assis:

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"Isto é prejudicial sobre ser escandaloso."

"Nota-se isto no seu bello romance... pelo menos, notei-o eu de mim para mim."

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A primeira diz de modo sintético: "sobre" em vez de "além de" ou algo assim.

A segunda é três vezes redundante, e por isso mais bonita.

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Foram escritas por Carlos Ferreira, então com 26 anos. Estão reunidas no livro "Os leitores de Machado de Assis", de Hélio S. Guimarães.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Del rayo y del fuego

Ontem, conversando com minha mãe sobre música latino-americana, lembrei de alguns versos de José Marti cantados por Pablo Milanés:

"Penas! Quien osa decir
que tengo yo penas? Luego,
despues del rayo y del fuego,
tendré tiempo de sufrir."

Algo sobre o sentimento do escritor e o dever de lutar...

Poesias completas de Martí:

http://www.exilio.com/Marti/PoesiaCF.html

sexta-feira, 14 de março de 2008

Por dezoito reais

Comprei um vaso novo para ressucitar uma samambaia.

Um vaso e fibra de coco.

Amanhã vou para Curitiba.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Frouxamente atados

Ontem foi minha primeira aula no doutorado. A disciplina se chama "A obra de Machado de Assis e sua recepção crítica". O professor, Helio Guimarães, explicou o método do curso e os romances que devemos ler durante o semestre: Ressurreição, A mão e a luva, Helena, Memórias Póstumas, Quincas Borba e Dom Casmurro.

Li "A mãe e a luva" há dois anos, quando estava muito deprimida e passava a tarde encolhida no sofá. Passada a depressão, tenho uma boa memória dessas horas de leitura em que me sentia quase outra pessoa, porque não escolhia os livros como escolhia antes, ia apenas procurando um depois do outro na estante do meu marido.

De todo o romance, só lembro de uma longa cena em que um rapaz observa a moça na casa vizinha:

"A primeira cousa que Estevão pode descobrir é que a vizinha era moça. Via-lhe o perfil, em cada aberta que deixavam as árvores, um perfil correto e puro, como de escultura antiga. Via-lhe a face cor de leite, sobre a qual se destacava a cor escura dos cabelos, não penteados de vez, mas frouxamente atados no alto da cabeça, com aquele desleixo matinal que faz mais belas as mulheres belas. O roupão - de musselina branca - finamente bordado, não deixava ver toda a graça do talhe, que devia ser e era elegante, dessa elegância que nasce com a critaura ou se apura com a educação, sem nada pedir, ou pedindo pouco à tesoura da costureira...

Estevão, da distância e na posição em que se achava, não podia ver todas estas minúcias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de histórias."

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Acho importante esse último parágrafo. Mesmo que o estilo seja desajeitado, se relaciona com o que escrevi sobre "Homem Comum", de P. Roth.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Aquela que ouve tudo

Texto interessante do Marcelo Coelho na FSP de hoje. A versão abaixo foi um pouco editada no começo, o que contradiz o próprio artigo:


Os despertos e os ausentes

Talvez exista um bocado de verdade no que dizia uma grande educadora de outros tempos a respeito das virtudes da energia intelectual, da entrega e da atenção. Trata-se de Nadia Boulanger (1887-1979), talvez a mais importante professora de composição erudita do século 20... Seu ensino ("draconiano", como ela própria dizia) formou gerações de compositores e de intérpretes. Saiu agora em DVD um documentário já antigo, em preto-e-branco, feito por Bruno Monsaingeon quando "Mademoiselle", como a chamavam, completou 90 anos, durinha e lúcida como ela só.

Músicos de toda parte do mundo ainda faziam fila para assistir a suas aulas. Como selecioná-los? Sem dúvida, o talento natural era a primeira coisa a avaliar. Igualmente importante, contudo, era a capacidade de concentração.

Tudo se torna absolutamente inútil, diz Boulanger, quando de uma semana para a outra o aluno se esquece do que aprendeu... Ela conta o exemplo de Stravinsky, seu grande amigo: mesmo quando estava jogando cartas, ele se entregava completamente ao que fazia.

Nessa hora, o filme mostra uma foto de Stravinsky com o baralho na mão. O compositor russo, meio de perfil, grandes óculos de massa preta, raros cabelos grudados com fixador em volta da orelha, encara o jogo como se quisesse hipnotizar as próprias cartas. Sente-se que Stravinsky está integralmente ali. É ele mesmo, ele próprio, inteiro, quem vive aquele momento. Imagino que fosse assim o tempo todo.

Nesse sentido, Boulanger acaba usando um termo antiquado. Diz que a atenção é "um traço de caráter". Entende que um grande músico possa ter personalidade odiosa; "caráter", em seu vocabulário, não parece ter muito a ver com isso.

Fiquei pensando se o termo não significaria, antes de mais nada, uma capacidade de "estar presente", coisa que não se resume apenas ao aspecto moral. Sem dúvida, "ausentar-se" de uma situação difícil é sinal, não digo de falta, mas de fraqueza de caráter.

Mas o que dizer de alguém que, por exemplo, se ausenta de sua própria vocação, e que mal responde aos apelos de sua própria inteligência, de seu próprio dom? Que professor poderia ajudar alguém assim? Felizmente, Boulanger não menospreza demais esse tipo de pessoas. São, diz ela, os "adormecidos". Cumprirão a seu modo, e quem sabe com grandeza, o seu destino pessoal. Mas o destino dessa professora era tratar dos que estão despertos. "Dom" é outra palavra que Nadia Boulanger utiliza com plena convicção, sem relativismo nem correção política. A idéia adquire, em suas frases, ressonância quase religiosa.

Curioso, afinal, que outro sinônimo de "dom" seja "presente". É como se, num artista como Stravinsky, por exemplo, estivesse em curso uma troca permanente entre seu trabalho e sua natureza: os presentes recebidos se retribuem com "presença", os dons se respondem com novas doações.

Stravinsky dedicou uma peça a Nadia Boulanger, chamando-a de "aquela que ouve tudo". De novo, é a atenção. No filme, o compositor Leonard Bernstein confirma essa qualidade de Boulanger. Tocou para ela os primeiros acordes, complicadíssimos, de uma peça para canto e piano. Meio compasso depois, a mão esquerda estourava um si bemol no grave.

"Não, não!", pulou a professora. "Ça ne va pas!" Aos 58 anos, Bernstein não precisava de aulas de ninguém; era só amigo de "Mademoiselle". "Mas eu me senti um aluno de primeiro ano." A professora tinha escutado uma repetição banal no meio da sofisticada barafunda bernsteiniana.

Voltando aos distúrbios de atenção. Podem ter causas neurológicas reais. Não só entre as crianças, contudo, as coisas hoje em dia parecem feitas para nos deixar o tempo todo desatentos. No meio do barulho, não ouvimos coisa nenhuma, nem sequer a nós mesmos.

Fico por aqui, não sem observar que, se o leitor chegou até o fim do artigo, já temos, ambos, de comemorar nossa atenção.

terça-feira, 11 de março de 2008

Como gente normal

Tento colocar mais tensão no livro, cortando alguns parágrafos e interrompendo cenas sem explicar totalmente. Também decidi mudar a relação dos pais da narradora: há um projeto de separação que a menina não sabe. Quando o pai comunica a longa viagem que irá fazer, tentei ressaltar uma amargura que não se expõe em palavras:

"Na minha memória há uma imagem sombria dessa cidade em que o pai morou, e que nunca conheci. Enquanto ele organizava suas coisas e fechava uma mala depois da outra, eu e Diego perguntávamos sobre o novo lugar, como eram as casas, as crianças, pulando em volta dele e repetindo que iríamos também. O pai respondia sem entusiasmo. Dizia que a cidade era pequena, perto de uma represa em construção, e não havia quase nada. As ruas não tinham asfalto e os índios moravam ali perto. Nós queríamos saber mais sobre os índios, mas o pai só dizia que vestiam roupas e viviam como gente normal.

A mãe não ficava no quarto, enquanto o pai arrumava as malas. Aparecia à porta, observava um pouco, depois ia ver televisão. E quando planejávamos mudar de escola, comprar uma casa nova e irmos todos juntos com o pai, ela apenas balançava a cabeça e levantava as sobrancelhas, numa expressão mista entre paciência e impaciência, e repetia "tá bom, tá bom".

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Antes estava assim:

"Na minha memória há também esta cidade em que o pai morou, e que nunca conheci. Nas semanas que seguiram antes da viagem, eu e Diego adorávamos falar sobre o novo lugar, e perguntávamos ao pai como eram as casas, as crianças, e fazíamos planos e insistíamos com nossa mãe que também queríamos ir. O pai contava que era uma cidade pequena, perto de uma represa que estava sendo construída, e as casas eram todas novas e iguais, as ruas de terra, e havia índios morando ali perto. Mas os índios vestiam roupas e viviam como gente normal, dizia o pai, respondendo às nossas perguntas. O pai ouvia nossos planos com um sorriso. Embora não participasse em nossa invenção de planos, ele parecia feliz em responder nossas perguntas."

segunda-feira, 10 de março de 2008

Mel e feijão

No sábado assistimos a "Memória do subdesenvolvimento" em DVD.

Pensei que o filme seria mais político. Mas o personagem tem apenas uma leve crise sobre sua origem burguesa. Boa parte das cenas trata de seu problema com as mulheres e nenhuma me interessou muito. Ele é bastante machista, e não encontrei muita ironia do filme em relação a isso.

Me interessou mais a posição do filme em relação ao feijão.

Várias vezes aparecem personagens falando que tal moça é uma cubaninha vulgar, "alimentada a feijão preto".

Aparentemente, a coisa mais pobre e desprezada por ali era comer feijão. Mas eu adoro feijão: todos os tipos preparados de todas as maneiras. Imagino que uma moça alimentada a feijão seria bastante magra e saudável.

Me disseram uma vez que os nobres europeus na Idade Média preferiam açúcar ao mel - o açúcar indicava riqueza porque era caro. O mel era deixado para os pobres.

Sobre tudo isso, admirando a pureza do mel e do feijão, só consigo pensar com tristeza nos pobres de São Paulo: alimentados com os piores tipos de salgadinhos e biscoitos, comprados nas barracas de camelô ao lado do ponto de ônibus.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Pela manhã

Minha avó faleceu hoje. Não era minha avó preferida quando eu era pequena. Estava sempre trabalhando na cozinha e não mimava as crianças.

Há algum tempo entendi que mimar nem sempre é o mais importante.

Ela dizia, quando minha mãe era jovem: vá estudar, casar não é importante - sempre vai ter um prato de feijão aqui em casa.

Fez apenas a primeira série, pois seu pai não queria que as filhas mulheres estudassem. Minha mãe conta que ela sempre repetia: a professora tinha as mãos mais brancas que ela já vira.

A mãe também conta que ela dizia, ao abrir as janelas de manhã: area basanica. Era um dialeto, imagino que significava: ar balsâmico.

Ainda hoje abro todas as janelas quando acordo. Por que é isso que mais precisamos: um bálsamo de ar.





terça-feira, 4 de março de 2008

Brincar com o líquido

Às vezes, como hoje, escrevo num estado de concentração quase próximo ao transe. Não um transe desvairado: um transe atento e interior. Às vezes pronuncio as frases em voz alta enquanto escrevo. Às vezes fico emocionada, e em alguns momentos já chorei.

Sei que corro o risco, nesses dias, de entrar em crise novamente. É muito difícil me afastar do texto e voltar à vida cotidiana. Mas é a vida cotidiana que me mantém estável, de um ponto de vista clínico.

Um trecho do que escrevi hoje, adaptando imagens de alguns poemas antigos:

"Eu não poderia dizer o nome dele. Eu soube que ele era frágil quando deixou a camisinha no chão. Não lavou nem ficou desconfiado que eu pudesse usar aquilo como prova de alguma coisa. Nem brincou com o líquido, porque era evidente que não estava alegre. Eu tentava me apegar à minha postura de estudante, e encarar o sexo tecnicamente. Não era exatamente possível, com ele.

Quando o vi ele estava em frente à janela. No fundo do quarto, num canto escuro. Falou alguma coisa que não escutei, depois lembrou que precisava comprar um presente para sua filha de doze anos. Tinha os olhos tristes e eu mesma fiquei triste, como nunca teria imaginado, mesmo em todas as vezes que pensei na sensação: de estar num quarto, com ele.

Eu nunca disse nada nem mesmo ao terapeuta: quanto havia pensado em sua pele, sua proximidade. Não saberia dizer com a gravidade que existia internamente.

Depois que ele saiu, tive vontade de ir ao banheiro. Ao sentar no vaso, senti o cheiro que havia ficado entre minhas pernas. Só então percebi o que era evidente e terrível: ele havia ido embora. Não senti culpa, apenas a tristeza da impossibilidade. E isso era ainda mais difícil de aceitar."