terça-feira, 11 de março de 2008

Como gente normal

Tento colocar mais tensão no livro, cortando alguns parágrafos e interrompendo cenas sem explicar totalmente. Também decidi mudar a relação dos pais da narradora: há um projeto de separação que a menina não sabe. Quando o pai comunica a longa viagem que irá fazer, tentei ressaltar uma amargura que não se expõe em palavras:

"Na minha memória há uma imagem sombria dessa cidade em que o pai morou, e que nunca conheci. Enquanto ele organizava suas coisas e fechava uma mala depois da outra, eu e Diego perguntávamos sobre o novo lugar, como eram as casas, as crianças, pulando em volta dele e repetindo que iríamos também. O pai respondia sem entusiasmo. Dizia que a cidade era pequena, perto de uma represa em construção, e não havia quase nada. As ruas não tinham asfalto e os índios moravam ali perto. Nós queríamos saber mais sobre os índios, mas o pai só dizia que vestiam roupas e viviam como gente normal.

A mãe não ficava no quarto, enquanto o pai arrumava as malas. Aparecia à porta, observava um pouco, depois ia ver televisão. E quando planejávamos mudar de escola, comprar uma casa nova e irmos todos juntos com o pai, ela apenas balançava a cabeça e levantava as sobrancelhas, numa expressão mista entre paciência e impaciência, e repetia "tá bom, tá bom".

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Antes estava assim:

"Na minha memória há também esta cidade em que o pai morou, e que nunca conheci. Nas semanas que seguiram antes da viagem, eu e Diego adorávamos falar sobre o novo lugar, e perguntávamos ao pai como eram as casas, as crianças, e fazíamos planos e insistíamos com nossa mãe que também queríamos ir. O pai contava que era uma cidade pequena, perto de uma represa que estava sendo construída, e as casas eram todas novas e iguais, as ruas de terra, e havia índios morando ali perto. Mas os índios vestiam roupas e viviam como gente normal, dizia o pai, respondendo às nossas perguntas. O pai ouvia nossos planos com um sorriso. Embora não participasse em nossa invenção de planos, ele parecia feliz em responder nossas perguntas."

7 comentários:

Paulodaluzmoreira disse...

Um dúvida: na sua cabeça a narradora pressentia essas coisas qdo era criança – ela percebeu algo de estranho nas respostas dos pais naquela hora mesmo – ou é uma coisa que passou batido e ela só entendeu depois, no tempo em que ela narra, já adulta? A nova versão mudou alguma coisa nesse aspecto do ponto de vista da narração. Vc me entende?

Alex Sens disse...

Uma delícia aqui, saio embriagado e admirado com seu trabalho - escrever é sempre uma construção, seguida de uma destruição, e novamente uma construção. Só assim, também não sei o que seria sem essa liberdade de matar e dar à luz, deliberadamente.

Beijos e parabéns pelo blog, vou comprar seu livro :)

júlia disse...

muito legal, isso, de você colocar o processo à tona, para ser revelado assim, pra quem quiser vir aqui ver que textos são mesmo feitos de matéria como o plástico, sem pudor, moldáveis, infláveis, incendiáveis,

sabina anzuategui disse...

Paulo, um dos problemas deste livro é que ele quase não tem trama. Então pensei que a separação dos pais poderia ajudar: no início da história a narradora não percebe. Depois, aos poucos, no correr daquele ano, ela vê alguns sinais - sua mãe chorando, o pai cada vez mais sério no telefone - e começa a entender. No final do ano o pai volta de viagem e comunica oficialmente a separação, dizendo que irá viver com outra mulher. Quando o pai comunica a nova situação, talvez ela nem se comova mais. A comoção veio antes, no início da descoberta, quando testemunhou a mãe chorando escondido.
Por enquanto estou planejando assim...
Abraços!

Paulodaluzmoreira disse...

Entendi o que vc quer fazer - a idéia parece interessante. Nesse caso, Sabina, eu tiraria o "respondia sem entusiasmo" relativo ao pai e mudaria um pouco o "expressão mista de paciência e impaciência" para preservar a idéia de que, quando criança, a narradora não percebia ainda o que estava acontecendo.
bom, como a gente às vezes diz em Minas, "desculpe qualquer coisa", Sabina: estou aqui tentando fazer alguma coisa que gostaria que fizessem com as coisas que eu escrevo. No meu caso a solidão no escrever é quase completa e não é questão de escolha. Não sei bem se vc espera comentários assim, mais específicos, sobre as coisas que vc escreve. Ainda mais de um desconhecido.
Abs,
Paulo

sabina anzuategui disse...

Eu adoro os comentários. De certo modo, é para isso que fiz o blog. Vou pensar nas suas sugestões... não é muito fácil dizer apenas o que a narradora percebeu, e ao mesmo tempo dar uma pista para quem lê. Talvez se eu relativizar a observação, dizendo algo como "... sem entusiasmo, e pensei que era o cansaço de arrumar as malas".
Quanto à sua escrita... no seu blog, não entendi direito o que é de sua autoria, o que é de outros autores. Talvez se se isso ficasse mais claro, haveria mais espaço para discutir.
Abraços!

sabina anzuategui disse...

Ah, obrigada pelos outros elogios.