Continuo a revisão de "O afeto...". Corto os trechos lineares demais, colocando mais insegurança da narradora em relação a suas memórias. Também interrompo algumas lembranças pacíficas com cenas curtas de medo e insatisfação.
Preciso me controlar para não revisar o texto detalhadamente. O livro já deveria estar pronto, em teoria, a revisão é apenas para melhorar o enredo. Não as palavras. Não as frases. Mas é difícil conter o impulso de reescrever trechos que agora me parecem falsos.
Marquei em itálico algumas frases que mudei:
"Lembro bem dessa primeira tarefa (tenho certa vergonha de dizer "lembro bem" pois parece mentira ou exagero - mas às vezes é exatamente isso: eu lembro, e bem) *1. Tivemos aula de português, a professora passou uma redação com "tema livre". Eu sempre anotava as tarefas imediatamente, gostava de tentar entender tudo à primeira leitura *2. A professora era nova e eu queria caprichar, deixar logo claro que era rápida e escrevia bem. Quando peguei o material, em casa, para fazer o trabalho, vi a expressão "tema livre" e achei que "livre" era o tema. A palavra não me trouxe nenhuma inspiração e, embora fosse mais fácil escrever sobre qualquer outra coisa, me esforcei para falar em liberdade *3, um tema abstrato que não me trazia nenhuma associação, que eu não sabia como relacionar à minha vida real. Depois de pensar um pouco, não tive nenhuma idéia melhor do que a imagem de um pássaro voando solto no céu. Não gostei mas fazia as tarefas assim: rápido e na primeira tentativa. Não queria ficar horas pensando naquele assunto *4. Escrevi sobre o pássaro, e fiquei reclamando intimamente daquele tema que considerava idiota e estava me impedindo de mostrar à professora como eu era criativa *5. No dia seguinte entreguei minha redação amargurada, e enquanto a professora recolhia os textos, uma aluna disse que não tinha feito a tarefa porque não soubera o que escrever. A professora disse: "Mas era um tema livre, meu bem. Você poderia fazer o que quisesse." Eu poderia ter reagido a isso de qualquer outra maneira: poderia falar com a professora e pedir para fazer novamente o trabalho, ou comentar meu erro com Paula e dar risada *6. Mas no momento apenas fiquei em silêncio e pensei: "se eu podia escrever qualquer coisa, então o pássaro serve, ela não vai perceber meu engano" *7.
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Por que mudei essas frases:
*1: Ah, a insegurança da memória fica cafona, escrita desse jeito.
*2: Resolvi não exagerar nas descrições generalistas que a narradora faz de si mesma. Melhor colocar os pensamentos localizados em cada situação.
*3: Não há nada errado em teoria, mas a frase é comum. Achei que podia melhorar.
*4: Mesmo motivo de *2.
*5: "Ser criativa" é meio complexo para uma criança pensar, e parece nome de revista feminina.
*6: Deduções corretas, mas não servem para nada.
*7: Palavras difíceis para um criança, não deveriam estar entre aspas.
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No final, ficou assim:
"Lembro dessa primeira tarefa. A professora de português passou uma redação com "tema livre". Eu anotei concentrada porque era a primeria aula, a professora era nova e eu queria mostrar que escrevia bem. Em casa, quando abri o caderno, vi a expressão "tema livre" e achei que "livre" era o tema. Me pareceu tão abstrato e difícil. O que eu poderia dizer sobre liberdade? O tema era distante e não me trazia nenhuma associação, não sabia como relacionar à minha vida real. Depois de pensar um pouco, não tive nenhuma idéia melhor do que a imagem de um pássaro voando solto no céu. Eu percebia como a associação era banal e inútil: o pássaro voa, mas não diz nada sobre a liberdade das pessoas. Pessoas não podem voar. Essa lógica irritada fez a imagem se fixar na minha cabeça, e nada mais apareceu. Escrevi sobre o pássaro, e fiquei reclamando internamente daquele tema que considerava idiota e me impedia de mostrar à professora como eu escrevia bem. No dia seguinte entreguei minha redação amargurada e, enquanto a professora recolhia os textos, uma aluna disse que não tinha feito a tarefa porque não soubera o que escrever. A professora disse: "Mas era um tema livre, meu bem. Você poderia fazer o que quisesse." Só então, com vergonha, eu entendi. Mas não disse nada a ninguém. Apenas fiquei em silêncio e pensei: "Se eu podia escrever qualquer coisa, então o pássaro serve. Ela nunca vai perceber".
2 comentários:
Achei a primeira versão mais natural. Li só uma vez cada uma delas, mas a criança que vier a comprar o livro tb não fará mais que uma leitura. Eu normalmente não sei de nada, então se quiser não leve a sério meu comentário. Mas gostei mais do ritmo da primeira versão.
Bjo e Inté.
Talvez você tenha razão. Mas estou preocupada que as frases sejam verdadeiras, mesmo que o ritmo fique truncado.
Ah, não é um livro para crianças.
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