terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Eu, meus irmãos e nossos cachorros

Minha amiga Sissi lembrou que em 2010 completamos outro ciclo no horóscopo chinês (ou seja, fazemos 36 anos).

Talvez por isso eu ande nostálgica. Não sobre o mundo em geral, mas sobre figuras que fui e costumo esquecer.



A foto deve ser de 1986 ou 1987.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Escrever, escrever

Ainda sobre escrever, um artigo de Francisco Bosco na revista Confraria:

"É conhecida a declaração de Valéry segundo a qual o autor de Variété jamais escreveria um romance porque não poderia escrever uma frase como “A Marquesa saiu às cinco da tarde”. O que significa uma frase como essa em um romance? Grande parte dos romances contém acontecimentos, encadeados numa determinada lógica temporal e num espaço definido; com efeito, para Barthes um romance é feito de “momentos de verdade” - a “verdade do afeto”, como a morte da avó do narrador na Recherche proustiana, ou a morte do velho príncipe Bolkonski em Guerra e paz -, e todo um trabalho de escrita como que apenas preparatório (dilatatório, adiador) para esses momentos de alta intensidade. Assim, a frase que tanto irritava Valéry pode ser considerada como sendo parte da composição do romance, uma parte como que preparatória, necessária, nesse tipo de romance, para o surgimento das passagens de alta intensidade, os momentos de verdade de que fala Barthes.


Mas - o que é escrever? Escrever “A Marquesa saiu às cinco da tarde” é escrever? Escrever é necessariamente escrever? Ou há o escrever e o escrever, como duas práticas bastante distintas, abrigadas pelo mesmo significante? Como se sabe, o citado Barthes propôs uma distinção, fecunda e pertinente a meu ver, entre “escritores” e “escreventes”; esta distinção se fundamenta principalmente no caráter intransitivo da atividade do escritor, que a diferencia da prática transitiva, que tem como finalidade uma intervenção concreta no mundo, do escrevente. Mas há outra possibilidade de se fundar uma diferença no interior do escrever. Vejamos.

(...)

Do outro lado, no caso das estruturas mais visivelmente enrigecedoras, é preciso um olhar complexo: pois a partitura ou o passo são instâncias-fármacon da experiência artística: a um tempo possibilitam e impedem, propiciam e paralisam, a depender da capacidade de apropriação, de liberdade que possui o artista. Assim, às vezes um solo de jazz pode ser um mero lugar-comum, enquanto uma interpretação de Bach pode ser extremamente livre; alguém pode dançar samba no pé sem nenhum “suingue”, ao passo que se pode dançar um samba de gafieira entrecortado pelo engano, a malandragem, o improviso. O lance decisivo, portanto, é a apropriação, o gesto de liberdade que instaura o território da imaginação (do corpo, dos ouvidos, dos pés, dos quadris).


Como tocar ou dançar, também escrever, o verdadeiro escrever, acontece quando se está no território da imaginação e da liberdade. Chamo aqui de imaginação uma visualização mental - um cinema-cabeça - que tem como resultado a produção de uma alteridade: imaginar é produzir aquilo que não se é, é surpreender-se com o próprio pensamento, é pôr o pensamento em estado de alteridade. Assim, a imaginação pode perfeitamente ser uma imaginação teórica: é possível ver conceitos, e é isso que os grandes filósofos e teóricos fazem."

sábado, 26 de dezembro de 2009

Pirata da perna-de-pau

Raramente procuro vídeos ou músicas entre usuários - digamos assim, pra não usar o termo "ilegal". Sempre compro DVDs oficiais porque uso em aula, acho feio chegar com cópias piratas. Quanto a música, tenho preguiça. Meus gostos são específicos e os arquivos demoram horas pra baixar.

Mas alguns dias atrás, no ócio das férias, resolvi visitar o Pirate Bay, imaginando se encontraria algum capítulo de novelas antigas, como Beto Rockfeller.

Achei algo quase melhor: um documentário produzido pela TV Cultura em 1979, chamado justamente "História da telenovela". Assisti partes dele no Centro Cultural SP, que tem uma cópia no arquivo.

Há alguns meses liguei para a TV Cultura perguntando se poderia comprar uma cópia. Eles informaram que não têm os direitos de venda de todas as imagens, por isso (naturalmente) não vendem.

OK, faz parte do trabalho de um pesquisador gastar horas em bibliotecas e acervos, consultando material que não pode ser emprestado. Mas ter uma cópia facilita tanto!

Fiquei dois dias inteiros baixando o arquivo de 690 MiB, que descia a 14 kB por segundo. Sem saber se iria funcionar.

Descobri inclusive a diferença entre MiB e MB, na Wikipedia.

Quando finalmente o arquivo se completou, meu computador não lia. Lá fui baixar atualizações do RealPlayer, mas a imagem tinha algum tipo de código e ficava alterada.

Finalmente lembrei de converter para um arquivo mais simples, usando o AnyVideoConverter. Funcionou!

O documentário foi reprisado nos 40 anos da TV Cultura, o que explica seu reaparecimento repentino.

Se alguém se interessar (secretamente) posso compartilhar.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Adeus às aulas

Cristóvão Tezza comentou seu pedido de demissão da UFPR, na Gazeta do Povo (jornal de Curitiba):

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(...)

"Antes que pensem que enlouqueci – nenhuma cultura é mais avessa ao risco do que a brasileira, e eu me incluo nela – es­­clareço que há em tudo um cálculo cuidadoso, típico da cidade que me educou, em que ponderados custo e benefício, o saldo será uma imensa felicidade, ainda que mais pobre, se é que al­­guém pode se permitir essa so­­berba. Em suma, não gostaria de entregar ao Estado (a essa altura da vida, só a ele, porque como aca­­dêmico já esgotei meus projetos e minha paciência) os dez anos que ainda me faltam para merecer aquela aposentadoria gorda do estamento federal. Pre­­firo gastar esses anos comigo mesmo, enquanto tenho tempo.

(...)

Calculo que passaram por mim cerca de oito ou nove mil estudantes nessas duas décadas e meia, todos sempre com a mesma idade; só eu envelheci. Devo ter lido mais de 100.000 textos escritos por eles, o que sempre deixou meu ouvido e minha intuição sintonizados com a linguagem contemporânea, uma experiência inestimável para quem escreve. Sempre gostei de dar aulas, e acho que os alunos perceberam isso. Manti­­ve-me anos a fio mais um mestre-escola que um pesquisador, e graças à generosa tolerância de meus colegas, consegui escapar, fugindo sorrateiro pelos corredores, de cargos burocráticos infernais, o que me permitiu escrever os livros que escrevi desde Trapo. A universidade foi uma sólida e boa companhia que agora chega ao fim.

Diz a lenda – que minha vaidade ajudou a propagar – que saio da universidade para me dedicar a escrever. Não contem para ninguém, mas o que eu quero mesmo é curtir o ócio, en­­quanto ainda tenho saúde para desfrutá-lo."

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Aqui o texto completo.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Ninguém se banha no Sena

"- Meu pai, o senhor sabe muito bem que o general não se afogou por desespero, e que ninguém se banha no Sena, pelo menos no mês de fevereiro. Não, não, não se iluda, essa morte é claramente qualificada como assassinato.

- E quem assim a qualificou?

- O próprio rei.

- O rei! Eu o julgava suficientemente filósofo para compreender que não existe assassinato em política. Em política, meu caro, sabe tão bem quanto eu, não existem homens, mas idéias; não existem sentimentos, mas interesses; em política, ninguém mata um homem: suprime-se um obstáculo, ponto final."

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O Conde de Monte Cristo, Alexandre Dumas. Tradução André Telles e Rodrigo Lacerda. Jorge Zahar Editor, 2009.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O alcance das Belas-Letras

"No século XVII, quando se decidia escrever, abraçava-se uma carreira definida, com suas receitas, suas regras e seus costumes, seu lugar na hierarquia das profissões. No século XVIII, os moldes se quebram, tudo está por fazer; as obras do espírito, em vez de serem confeccionadas com maior ou menor acerto e segundo normas estabelecidas, são cada qual uma invenção particular, uma decisão do autor no que toca à natureza, ao valor e ao alcance das Belas-Letras; cada uma traz consigo as suas prórpias regras e os princípios segundo os quais quer ser julgada; cada uma pretende engajar toda a literatura e abrir-lhe novos caminhos."

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O que é literatura?, Jean-Paul Sartre. Editora Ática, p. 82.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Espiritualmente talvez

Sexta-feira e este blog continua abandonado.

Gasto minhas horas estudando e trabalhando, a cada dia me angustio menos por escrever pouco. Escrever dessa maneira: como pintar um quadro.

Muitos anos atrás, falava com um psicanalista. Reclamava de escrever roteiros, o que diminuía meu tempo para "escrever".

Ele: Mas escrever roteiros não é escrever?

Eu: Não.

Talvez não fosse claro, mas agora penso que escrever - desse modo - é um ato sem finalidade. Um impulso que sobrevive à ausência de resultados planejáveis: não gera dinheiro, diploma, nenhum retorno imediato.

Escrevo sempre, claro, mas raramente dessa maneira.

Estranho não sentir mais angústia. O tempo diluído, o desejo latente e conformado, a ânsia enfraquecida.

Espiritualmente talvez seja bom: querer pouco, cada vez menos, sem querer.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Nimbo extremamente favorável

Continuando o conto Uma visita de Alcibíades. Fala ainda o Desembargador Álvares:

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"Lia Plutarco, acontecendo-me o que sempre me acontece quando abrou um livro da antiguidade. Passo todo em espírito para o tempo do livro. Depois de jantar é excelente; e acompanhado de um bom charuto de Havana não há nada melhor. O fumo envolve a imaginação numa espécie de nimbo extremamente favorável às evocações mentais. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a rua do Ouvidor, e o Circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga por trezentos réis, termo médio, que é o preço do charuto. Uma verdadeira digestão literária.

Ora, foi isso o que aconteceu sábado passado. A página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades; deixei-me ir ao sabor da tradução de Amyot. Daí a pouco estava nos jogos olímpicos, a contemplar o elegante ateniense, guiando os seus sete carros, com a firmeza e o donaire com que havia de reger mais tarde as armadas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imaginem se vivi! Mas não há bem que sempre dure. Acabou o charuto, desfez-se o nimbo, a antiga Atenas volveu ao cemitério da história e cairam-me os olhos no casaco branco, que então vestia, e nos sapatos de cordovão que me resguardavam os pés.

Súbito pensei comigo:

- Que impressão faria ao ateniense Alcibíades o nosso vestuário moderno?"

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Plutarco é um autor grego

Ainda sem tempo de escrever, procuro algo nos arquivos.

Meu trabalho final, no curso sobre a crítica a Machado de Assis, comparava duas versões do conto Uma visita de Alcibíades.

A primeira foi publicada em revista para o público feminino - o Jornal das Famílias - em 1876. A segunda fez parte da coletânea Papéis avulsos¸ de 1882.

As duas versões têm o mesmo enredo, mas estilos diferentes.

Segue um trecho da primeira versão, mais difícil de encontrar, e minha preferida:

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"O desembargador Alvares bebeu a última gota de genuíno café, limpou os bigodes ao guardanapo e dispôs-se a obedecer às moças que lhe pediam uma anedota. Era noite de Natal; e o comendador costumava a reunir alguns amigos. O desembargador era figura obrigada de tais festas. Conversado, galhofeiro, palrador, trazendo sempre no alforje da memória boa cópia de anedotas que distribuía às meninas e rapazes curiosos, não era possível passar sem êle naquelas noites de festa anual. A única alteração que havia era uma chícara de café que o desembargador não dispensava nunca, alegando que o chá ia levando a humanidade para a total extinção.

- Carlos Magno não bebia chá e podia com a sua célebre espada, dizia êle; se bebesse café não sei o que teria deixado de fazer.

Mas uma chícara de café era fraco preço para tão amável conviva. Por isso, a dona da casa mandara vir da fazenda de um tio um excelente saco de café de que bebia, a qualquer hora, o desembargador, quando ali ia, e ia sempre. Nas noites de festas fartava-se o desembargador daquela bebida favorita.

Afiaram todos o ouvido, e o desembargador começou:

"- Não contarei uma anedota mentirosa, dessas que os redatores de folhinhas aumentam ou remendam para regalo dos fregueses. Vou referir o que me aconteceu sábado passado.

Sábado passado, logo depois do jantar, estirei-me no divã e abri uma página de Plutarco. Estas meninas talvez não saibam que Plutarco é um autor grego. Pois fiquem sabendo. É autor profano e pagão. Sem embargo disso, tem muitos merecimentos..."