"A pequena casa editora de antes tornara-se grande e importante. Agora, muita gente trabalhava lá. Tinha uma nova sede, na avenida rei Humberto, depois que a sede antiga desmoronou num bombardeio. Pavese agora tinha uma sala só para si, e na porta havia uma placa com a inscrição "Direção editorial". Pavese ficava à mesa, com o cachimbo, revisando as provas com a rapidez de um raio. Lia a Ilíada em grego, nas horas de folga, salmodiando os versos em voz alta; numa triste cantilena. Ou então, riscando com rapidez e violência, escrevia seus romances. Tornara-se um escritor famoso."
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Natália Ginzburg, "Léxico familiar".
Gosto do ponto-e-vírgula deslocado na frase da Ilíada.
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Saiu na Folha, neste sábado, uma estrevista com Luís Augusto Fischer, prof. da UFRGS. Não saberia dizer se concordo com ele, pois o título da matéria me assustou e não li inteira. De todo modo esse parágrafo marcou:
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"Uma de suas idéias é a de que a forma privilegiada do romance brasileiro, narrativas de feição memorialística (como em "Dom Casmurro" e "Grande Sertão: Veredas"), se relaciona com a imagem de ausência de memória histórica que os brasileiros fazem de si mesmos.
A contradição se explicaria pelo fato de o país não construir uma memória autorizada e comum, porque quem deveria fazê-lo, a elite, não pode falar do que ela realmente faz (como da escravidão, por exemplo). A memória vai ser assim um problema, a ser "resolvido" caso a caso nos grandes romances."
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Honestamente não sei se a questão é exclusiva do Brasil. Mas gosto dessa ausência da memória "autorizada e comum".
quinta-feira, 28 de agosto de 2008
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
Mais barata e igual
Tive pouco tempo livre nesta semana e não escrevi nada fresco. Segue mais um trecho do livro, para criar ainda maior confusão nesse mosaico mental:
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"Lílian Maia era a menina mais exibida do Colibri e tinha amigas que imitavam tudo que ela fazia. Não era exatamente chata, mas não me animava. Me irritava um pouco sua mania de mostrar as roupas e falar de maquiagem a toda hora. Diziam que sua mãe era modelo quando jovem, mas eu nunca soube direito. Agora aparentemente estava interessada em estudar: contou animada sobre sua escola nova, um colégio grande, “o melhor do Paraná”, segundo seus pais, porque era “exigente”. Minha mãe não gostava desse tipo de colégio “decoreba”. A turma de Lílian na quinta-série tinha quarenta e cinco alunos (a nossa, vinte e dois). Na semana anterior ela teve semana de provas: recebiam uma folha de questões e anotavam as respostas num cartão separado, como no vestibular. Tudo o que eles faziam já era uma preparação para o vestibular, Lílian disse: "foi meu professor de matemática quem falou."
Lílian sempre falava de suas coisas novas: as roupas, os brinquedos, o carro conversível de seu pai, e agora o colégio. Quando conversávamos, eu tentava elogiar as coisas da minha família, nem novas nem caras, mas originais (eu acreditava). “Meu pai não quer um carro novo, porque está economizando para viajarmos para o Chile”. “Minha mãe fez fantoches de pano e sabe fazer origami”. As meninas do condomínio se dividiam entre aquelas que concordavam com Lílian e outras, poucas, que concordavam comigo. Eu falava empolgada sobre os fantoches da minha mãe mas sentia, sem dizer, que seria bom ter brinquedos modernos e um carro novo e todas as coisas que Lílian Maia tinha. Quando estava em casa, pedia para minha mãe comprar certas coisas. Mas ela sempre respondia do mesmo modo: “Por que você quer a boneca da Estrela? Esta aqui é mais barata e igual.” Eu dizia “não é igual, mãe”, mas ela não se convencia. Para ela eram mesmo iguais."
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"Lílian Maia era a menina mais exibida do Colibri e tinha amigas que imitavam tudo que ela fazia. Não era exatamente chata, mas não me animava. Me irritava um pouco sua mania de mostrar as roupas e falar de maquiagem a toda hora. Diziam que sua mãe era modelo quando jovem, mas eu nunca soube direito. Agora aparentemente estava interessada em estudar: contou animada sobre sua escola nova, um colégio grande, “o melhor do Paraná”, segundo seus pais, porque era “exigente”. Minha mãe não gostava desse tipo de colégio “decoreba”. A turma de Lílian na quinta-série tinha quarenta e cinco alunos (a nossa, vinte e dois). Na semana anterior ela teve semana de provas: recebiam uma folha de questões e anotavam as respostas num cartão separado, como no vestibular. Tudo o que eles faziam já era uma preparação para o vestibular, Lílian disse: "foi meu professor de matemática quem falou."
Lílian sempre falava de suas coisas novas: as roupas, os brinquedos, o carro conversível de seu pai, e agora o colégio. Quando conversávamos, eu tentava elogiar as coisas da minha família, nem novas nem caras, mas originais (eu acreditava). “Meu pai não quer um carro novo, porque está economizando para viajarmos para o Chile”. “Minha mãe fez fantoches de pano e sabe fazer origami”. As meninas do condomínio se dividiam entre aquelas que concordavam com Lílian e outras, poucas, que concordavam comigo. Eu falava empolgada sobre os fantoches da minha mãe mas sentia, sem dizer, que seria bom ter brinquedos modernos e um carro novo e todas as coisas que Lílian Maia tinha. Quando estava em casa, pedia para minha mãe comprar certas coisas. Mas ela sempre respondia do mesmo modo: “Por que você quer a boneca da Estrela? Esta aqui é mais barata e igual.” Eu dizia “não é igual, mãe”, mas ela não se convencia. Para ela eram mesmo iguais."
segunda-feira, 25 de agosto de 2008
Escoar o invendável
Um trecho de "A história de Vidal, meu pai", de Edgar Morin. Li este livro com carinho, porque o pai do cabrito também tinha uma loja no bairro do Sentier, em Paris, desde a segunda guerra. Pensei que minha amiga Si poderia se interessar.
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"Em contraste com a rue des Rosiers, então colonizada pelos asquenasitas da Polônia e da Rússia, nenhum exotismo, nenhuma moda ou estilo de vida, nenhum sinal - salvo os nomes dos lojistas e o empilhamento sem graça das mercadorias entrepostas atrás das vitrines - indica ao olhar exterior a presença de uma comunidade estrangeira. A população é, de fato, muito mesclada; restam ainda as camadas populares parisienses, nos quartos de último andar e nos cubículos dos zeladores; os representantes comerciais que visitam o bairro são franceses, os lojistas são majoritariamente sefaraditas, os clientes se compõem de uma minoria de franceses, muitos metecos, feirantes e pequenos lojistas do interior ou da periferia, norte-africanos, armênios, asquenazitas.
(...)
A loja era, a bem dizer, uma lojinha bem estreita. Nos mostradores da vitrine, misturadas, empilhadas e desorganizadas, meias e meias-calças amarradas em dúzias. Uma longa mesa central retangular divide a loja em duas passagens simétricas estreitas. Vidal costuma ficar do lado esquerdo, os clientes do lado direito, mas eles vêm ao lado esquerdo para observar, manusear, estender as meias e meias-calças que, às dúzias, se empilham em escaninhos de um lado e do outro, até o teto.
(...)
Na verdade, Vidal não se interessa por meias ou meias-calças, interessa-se por seu negócio. É aí que coloca toda a sua energia, mas não adquiriu o senso das texturas, dos materiais, das cores; deixa-se guiar pelos pedidos dos compradores, pelas indicações dos fornecedores: "isto agrada muito, no momento". Sua incompetência condena-o aos fins de séries, às escolhas de segunda, às liquidações, e esses fins de série, essas escolhas de segunda, essas liquidações alimentam sua incompetência. Aliás, guardará em estoque, durante mais de dez anos, meias-calças de cores horríveis, meias pavorosas: só a ocupação alemã de 1940, com suas restrições e sua escassez de mercadorias, permite-lhe escoar, a bom preço, o invendável."
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"Em contraste com a rue des Rosiers, então colonizada pelos asquenasitas da Polônia e da Rússia, nenhum exotismo, nenhuma moda ou estilo de vida, nenhum sinal - salvo os nomes dos lojistas e o empilhamento sem graça das mercadorias entrepostas atrás das vitrines - indica ao olhar exterior a presença de uma comunidade estrangeira. A população é, de fato, muito mesclada; restam ainda as camadas populares parisienses, nos quartos de último andar e nos cubículos dos zeladores; os representantes comerciais que visitam o bairro são franceses, os lojistas são majoritariamente sefaraditas, os clientes se compõem de uma minoria de franceses, muitos metecos, feirantes e pequenos lojistas do interior ou da periferia, norte-africanos, armênios, asquenazitas.
(...)
A loja era, a bem dizer, uma lojinha bem estreita. Nos mostradores da vitrine, misturadas, empilhadas e desorganizadas, meias e meias-calças amarradas em dúzias. Uma longa mesa central retangular divide a loja em duas passagens simétricas estreitas. Vidal costuma ficar do lado esquerdo, os clientes do lado direito, mas eles vêm ao lado esquerdo para observar, manusear, estender as meias e meias-calças que, às dúzias, se empilham em escaninhos de um lado e do outro, até o teto.
(...)
Na verdade, Vidal não se interessa por meias ou meias-calças, interessa-se por seu negócio. É aí que coloca toda a sua energia, mas não adquiriu o senso das texturas, dos materiais, das cores; deixa-se guiar pelos pedidos dos compradores, pelas indicações dos fornecedores: "isto agrada muito, no momento". Sua incompetência condena-o aos fins de séries, às escolhas de segunda, às liquidações, e esses fins de série, essas escolhas de segunda, essas liquidações alimentam sua incompetência. Aliás, guardará em estoque, durante mais de dez anos, meias-calças de cores horríveis, meias pavorosas: só a ocupação alemã de 1940, com suas restrições e sua escassez de mercadorias, permite-lhe escoar, a bom preço, o invendável."
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
Enjoada do silêncio
Aos poucos fui me acostumando à casa de Juliana. O silêncio tão incômodo nos primeiros dias foi aos poucos se desfazendo. Talvez, enjoada do silêncio, eu tenha sido forçada a procurar os sons próprios daquela casa, em que se falava pouco, devagar, onde se pedia licença para entrar, e sempre, no meio da tarde, a mãe de Juliana perguntava se eu estava com fome, se queria bolachas ou suco. Uma vez ela bateu à porta e disse “Vou fazer um pouco de barulho. Preciso secar o cabelo”. Fechou a porta e logo em seguida ouvi o ruído de um secador. Num outro dia avisou: “preciso passar o aspirador”. Os ruídos eram sempre anunciados, e isso me parecia estranhamente inútil e bem-educado. Tudo naquele apartamento era estranho: a disposição das paredes era igual à de nossa casa, mas invertida. A cor tediosa dos móveis, os livros descorados na estante, a completa ausência de quadros e enfeites transformavam o conjunto numa versão diferente do que éramos nós; era como o nosso apartamento, e era oposto.
- - -
Em homenagem ao início de "O medo do goleiro diante do pênalti".
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Em homenagem ao início de "O medo do goleiro diante do pênalti".
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Nathalie Sarraute
Li "Infância" por indicação do meu professor Jean-Claude, que falava dos livros que o influenciaram nos anos 60 (era mesmo essa década?). No blog Sete Linhas coloquei um trecho que me emociona muito, sobre a escola primária. Uma frase dela e algumas linhas do meu livro "O afeto", que comecei a escrever inspirada por seu trabalho.
Na coletânea organizada por Betty Milan, "A força da palavra", há uma entrevista comovente.
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"BM - Colette dizia que a frase bonita, o belo, é perigoso para um escritor. A senhora diz a mesma coisa. Poderia explicar por quê?
NS - Escrevi sobre isso um texto enorme: Entre a vida e a morte. Quando o autor trabalha e retrabalha a frase e ela se torna bela demais, perde o contato com a sensação que lhe deu origem. A frase se torna morta, ela responde a um cânone de beleza. É perigoso. É preciso então recomeçar tudo de novo, voltar à sensação para que a frase viva. O que é a beleza? A beleza responde a algo de muito acadêmico. Trata-se antes de procurar uma determinada sensação, de ficar o mais perto possível dela e depois exprimi-la, fazê-la viver, transmiti-la por meio da escrita."
Na coletânea organizada por Betty Milan, "A força da palavra", há uma entrevista comovente.
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"BM - Colette dizia que a frase bonita, o belo, é perigoso para um escritor. A senhora diz a mesma coisa. Poderia explicar por quê?
NS - Escrevi sobre isso um texto enorme: Entre a vida e a morte. Quando o autor trabalha e retrabalha a frase e ela se torna bela demais, perde o contato com a sensação que lhe deu origem. A frase se torna morta, ela responde a um cânone de beleza. É perigoso. É preciso então recomeçar tudo de novo, voltar à sensação para que a frase viva. O que é a beleza? A beleza responde a algo de muito acadêmico. Trata-se antes de procurar uma determinada sensação, de ficar o mais perto possível dela e depois exprimi-la, fazê-la viver, transmiti-la por meio da escrita."
segunda-feira, 18 de agosto de 2008
Interferência
Enquanto estava ao telefone ouvi um barulho estranho perto do armário. Não podia desligar e continuei falando com medo que um rato surgisse debaixo da gaveta.
Que o rato roesse a madeira e mostrasse o focinho e os dentes selvagens para mim.
Desliguei e então percebi: um ruído de interferência na caixa de som do computador.
Que o rato roesse a madeira e mostrasse o focinho e os dentes selvagens para mim.
Desliguei e então percebi: um ruído de interferência na caixa de som do computador.
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
Miranda July
O título em português é péssimo. Parece buscar o público do filme "Eu sei o que vocês fizeram no ano passado".
Em inglês é mais melancólico e carinhoso, além de irônico, se levarmos em conta o desamparo das personagens: "No one belongs here more than you".
Um parágrafo do conto "Fazendo amor em 2003":
"Ela estava com uma almofada de tapeçaria em que se lia: FAZENDO AMOR EM 2002. Do outro lado do sofá havia FAZENDO AMOR EM 1997, em azul, com um babado em volta. Imagino que houvesse outras, mas tentei não procurar por elas. Eu não queria ver a que traria o ano em corrente. Ou, se não houvesse uma, eu não queria saber por quê. Ela me fez perguntas educadas e esperamos por seu marido."
Em inglês é mais melancólico e carinhoso, além de irônico, se levarmos em conta o desamparo das personagens: "No one belongs here more than you".
Um parágrafo do conto "Fazendo amor em 2003":
"Ela estava com uma almofada de tapeçaria em que se lia: FAZENDO AMOR EM 2002. Do outro lado do sofá havia FAZENDO AMOR EM 1997, em azul, com um babado em volta. Imagino que houvesse outras, mas tentei não procurar por elas. Eu não queria ver a que traria o ano em corrente. Ou, se não houvesse uma, eu não queria saber por quê. Ela me fez perguntas educadas e esperamos por seu marido."
quinta-feira, 14 de agosto de 2008
Reação protetora
Terminei ontem de ler "É claro que você sabe do que estou falando", de Miranda July. Alguns contos impressionam, doces, delicados e perversos. Me interessou principalmente seu jeito de narrar.
O ritmo da prosa é sempre parecido. Lendo antes de dormir, algumas vezes adormeci com a cadência soando na lembrança.
As personagens parecem falar com elas mesmas, como se fizessem um relatório das próprias ações sem tentar explicar a uma outra pessoa (o leitor). Passagens elípticas, o tempo passa (dias, anos) e nada é explicado na ordem linear. Eu demorava a perceber. Tinha a sensação de estar realmente na intimidade de alguém, recebendo o que o personagem reserva para si.
Voltar ao romance que está esperando na gaveta desde o ano passado. É talvez o oposto da narrativa de M. July: embora escrito em primeira pessoa, a personagem está claramente descrevendo as situações. O texto expõe a cena, não é uma questão privada.
Talvez eu possa mudar isso. Gostei desse outro modo de narrar.
- - -
Não sei se já postei algum trecho no blog:
"Sua voz frágil atingia com força meu instinto de piedade, mas desde sua última crise eu havia me convencido que uma reação protetora e maternal não o ajudava a melhorar. O resultado era justamente o contrário: ele parecia se acomodar à atenção dobrada que eu lhe dava, e sua passividade se prolongava na proporção em que eu permanecia disponível ao seu lado. A dedicação só aumentava meu cansaço, e eu havia prometido a mim mesma que não iria mais ceder àquele olhar. Repeti que ele deveria tomar o remédio. Mesmo querendo ser firme, demorei quase duas horas para convencê-lo. Ele falou com dificuldade, durante esse tempo, de seus pensamentos recorrentes, de como se encolhia em si mesmo, e perdia o contato com as coisas. Ele apontava a porta, e dizia que não via sentido naquilo - por que havia um pedaço de madeira separando as paredes? Nada ao redor dele tinha significado, e nem tocando os objetos ele se convencia de que estava vivo."
O ritmo da prosa é sempre parecido. Lendo antes de dormir, algumas vezes adormeci com a cadência soando na lembrança.
As personagens parecem falar com elas mesmas, como se fizessem um relatório das próprias ações sem tentar explicar a uma outra pessoa (o leitor). Passagens elípticas, o tempo passa (dias, anos) e nada é explicado na ordem linear. Eu demorava a perceber. Tinha a sensação de estar realmente na intimidade de alguém, recebendo o que o personagem reserva para si.
Voltar ao romance que está esperando na gaveta desde o ano passado. É talvez o oposto da narrativa de M. July: embora escrito em primeira pessoa, a personagem está claramente descrevendo as situações. O texto expõe a cena, não é uma questão privada.
Talvez eu possa mudar isso. Gostei desse outro modo de narrar.
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Não sei se já postei algum trecho no blog:
"Sua voz frágil atingia com força meu instinto de piedade, mas desde sua última crise eu havia me convencido que uma reação protetora e maternal não o ajudava a melhorar. O resultado era justamente o contrário: ele parecia se acomodar à atenção dobrada que eu lhe dava, e sua passividade se prolongava na proporção em que eu permanecia disponível ao seu lado. A dedicação só aumentava meu cansaço, e eu havia prometido a mim mesma que não iria mais ceder àquele olhar. Repeti que ele deveria tomar o remédio. Mesmo querendo ser firme, demorei quase duas horas para convencê-lo. Ele falou com dificuldade, durante esse tempo, de seus pensamentos recorrentes, de como se encolhia em si mesmo, e perdia o contato com as coisas. Ele apontava a porta, e dizia que não via sentido naquilo - por que havia um pedaço de madeira separando as paredes? Nada ao redor dele tinha significado, e nem tocando os objetos ele se convencia de que estava vivo."
quarta-feira, 13 de agosto de 2008
Calor tempestuoso da noite
Em homenagem à biografia agora publicada:
- - -
Poema só para Jaime Ovalle
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(embora a manhã já estivesse avançada)
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
bebi o café que eu mesmo preparei,
depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
Manuel Bandeira
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Poema só para Jaime Ovalle
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(embora a manhã já estivesse avançada)
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
bebi o café que eu mesmo preparei,
depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
Manuel Bandeira
terça-feira, 12 de agosto de 2008
segunda-feira, 11 de agosto de 2008
Viciado em prostitutas
Interessante o que saiu ontem sobre Kafka no caderno "Mais" da Folha. Eu não sabia quase nada sobre a vida dele... me irrita um pouco essa figura do escritor introspectivo e depressivo. Bem, aparentemente o mito é bastante fantasioso:
- - -
(...)
"Kafka, nas palavras do autor do livro, era "filho de um milionário e viciado em prostitutas durante toda a sua vida adulta; um escritor apoiado por um grupo influente e que era admirado (e sabia disso) por quase todos os seus colegas escritores; um leal cidadão de Habsburgo com um alto cargo estatal que esperava (e queria) que a Alemanha e a Áustria vencessem a Primeira Guerra Mundial, até o final; um homem que não tinha a menor idéia do Holocausto, assim como qualquer outro".
(...)
Seu objetivo ao "demolir o mito" construído em torno de Kafka não é diminuir sua obra, diz Hawes (que estuda o autor desde 1982, quando viu o manuscrito original de "O Castelo"), mas permitir uma avaliação mais clara de seu trabalho.
"Com o entulho retirado para longe, talvez finalmente nós consigamos ver o trabalho de Kafka pelo que ele realmente é -não o troço deprimido e obscuro que recebemos pós-Auschwitz dos existencialistas franceses, mas suas maravilhosas "comédias negras" ("black comedies"), escritas por um homem profundamente influenciado pelos escritos de seus predecessores e de sua própria época", afirma Hawes.
- - -
Fiquei espantada, pois nunca havia pensado na "Metamorfose" como comédia negra. Talvez tenha sentido o humor muito internamente, sem perceber.
(...)
"Até 1916 seus textos apresentavam uma dimensão lúdica, um gozo na construção de situações fantásticas, ele jogava com a literatura, como em "A Metamorfose", por exemplo. Vemos aí um enorme prazer na narrativa de uma situação absurda, na exploração e na construção diferenciada de uma lógica fantasmagórica até seus limites. Ele procurava, por assim dizer, desdobrar essa fantasia inicial em todas as suas possibilidades.
A guerra lhe tirou esse prazer lúdico da literatura."
- - -
(...)
"Kafka, nas palavras do autor do livro, era "filho de um milionário e viciado em prostitutas durante toda a sua vida adulta; um escritor apoiado por um grupo influente e que era admirado (e sabia disso) por quase todos os seus colegas escritores; um leal cidadão de Habsburgo com um alto cargo estatal que esperava (e queria) que a Alemanha e a Áustria vencessem a Primeira Guerra Mundial, até o final; um homem que não tinha a menor idéia do Holocausto, assim como qualquer outro".
(...)
Seu objetivo ao "demolir o mito" construído em torno de Kafka não é diminuir sua obra, diz Hawes (que estuda o autor desde 1982, quando viu o manuscrito original de "O Castelo"), mas permitir uma avaliação mais clara de seu trabalho.
"Com o entulho retirado para longe, talvez finalmente nós consigamos ver o trabalho de Kafka pelo que ele realmente é -não o troço deprimido e obscuro que recebemos pós-Auschwitz dos existencialistas franceses, mas suas maravilhosas "comédias negras" ("black comedies"), escritas por um homem profundamente influenciado pelos escritos de seus predecessores e de sua própria época", afirma Hawes.
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Fiquei espantada, pois nunca havia pensado na "Metamorfose" como comédia negra. Talvez tenha sentido o humor muito internamente, sem perceber.
(...)
"Até 1916 seus textos apresentavam uma dimensão lúdica, um gozo na construção de situações fantásticas, ele jogava com a literatura, como em "A Metamorfose", por exemplo. Vemos aí um enorme prazer na narrativa de uma situação absurda, na exploração e na construção diferenciada de uma lógica fantasmagórica até seus limites. Ele procurava, por assim dizer, desdobrar essa fantasia inicial em todas as suas possibilidades.
A guerra lhe tirou esse prazer lúdico da literatura."
quinta-feira, 7 de agosto de 2008
Vagão rosa
Ontem peguei o metrô para ir ao cinema no centro. Pouco depois das cinco da tarde, entrei na estação preocupada se não estaria muito cheia. A fila média na bilheteria me deixou mais calma. Parei na plataforma meio distraída até que vi uma faixa rosa no chão, "vagão reservado para mulheres, das 17h00 às 20h00, conforme lei estadual".
Eu havia lido sobre isso no jornal, mas não sabia que a lei estava realmente aprovada. Não sou do Rio e nunca fui assediada num trem, por isso não guardava opinião sobre o assunto.
A plataforma foi enchendo de mulheres. Quando entrei no vagão, só mulheres à volta, com exceção de um tipo meio alheio, alcoólatra e perdido no mundo.
Tive uma sensação estranha, não ocidental nem contemporânea. Me sentia protegida num tempo arcaico, numa caravana de beduínos, uma diligência em direção ao oeste, um trem rumo ao campo de concentração. Um vagão em que estávamos reunidas e guardadas mas, ao mesmo tempo e justamente por isso, vulneráveis. Se alguém quisesse nos atacar, estávamos agrupadas. Uma bomba ou um bando de saqueadores nos levaria arrastadas dali.
Eu havia lido sobre isso no jornal, mas não sabia que a lei estava realmente aprovada. Não sou do Rio e nunca fui assediada num trem, por isso não guardava opinião sobre o assunto.
A plataforma foi enchendo de mulheres. Quando entrei no vagão, só mulheres à volta, com exceção de um tipo meio alheio, alcoólatra e perdido no mundo.
Tive uma sensação estranha, não ocidental nem contemporânea. Me sentia protegida num tempo arcaico, numa caravana de beduínos, uma diligência em direção ao oeste, um trem rumo ao campo de concentração. Um vagão em que estávamos reunidas e guardadas mas, ao mesmo tempo e justamente por isso, vulneráveis. Se alguém quisesse nos atacar, estávamos agrupadas. Uma bomba ou um bando de saqueadores nos levaria arrastadas dali.
quarta-feira, 6 de agosto de 2008
Realmente fantástico
Frase de Kátia:
- É realmente fantástico o que se pode fazer neste mundo com um busto aerodinâmico!
- É realmente fantástico o que se pode fazer neste mundo com um busto aerodinâmico!
terça-feira, 5 de agosto de 2008
Samaritana sexual
O ator Rubens de Falco disse, antes de morrer, que seu personagem preferido na TV foi Agenor, da novela "O grito". Era um alto-executivo, filho de fazendeiros falidos, morando num apartamento em frente ao Minhocão. À noite ele se vestia de mulher e saía escondido pela garagem, para a noite.
Era seu personagem preferido por motivos fáceis de deduzir. Para o público, seu papel mais marcante foi o vilão de "Escrava Isaura".
Lendo os roteiros no arquivo da TV Globo, vou percebendo que Agenor foi "regenerado" no final da novela pela personagem de Yoná Magalhães, Kátia, uma secretária vivaz e sedutora.
Kátia diz ao médico Orlando, seu amigo: "sinto uma coisa estranha por ele... uma vontade de ajudar..." Orlando responde:
- Não adianta bancar a samaritana sexual!
Mais adiante ela comenta:
- Não vou forçar nada. Apenas me insinuar! Por dinheiro, como o pai pensou, eu não faria! Mas fiquei gostando dele! Fingi que não ouvi, mas Agenor disse que não consegue escapar de um gelo que queima como fogo. Pois eu vou derreter este gelo!
E ainda:
- Existem homens, mulheres, homossexuais e lésbicas! Não posso crer que alguém não seja nada, não tenha feito uma opção.
- - -
Nos anos 60 apareceram alguns filmes americanos sobre transexuais, com uma visão psicanalítica, médica e um tanto moralista. As cenas misturam isso com a Geni de Nelson Rodrigues (que também regenera Herculano).
Ioná Magalhães, do sertão de "Deus e o Diabo" para a regeneração dos pervertidos.
Era seu personagem preferido por motivos fáceis de deduzir. Para o público, seu papel mais marcante foi o vilão de "Escrava Isaura".
Lendo os roteiros no arquivo da TV Globo, vou percebendo que Agenor foi "regenerado" no final da novela pela personagem de Yoná Magalhães, Kátia, uma secretária vivaz e sedutora.
Kátia diz ao médico Orlando, seu amigo: "sinto uma coisa estranha por ele... uma vontade de ajudar..." Orlando responde:
- Não adianta bancar a samaritana sexual!
Mais adiante ela comenta:
- Não vou forçar nada. Apenas me insinuar! Por dinheiro, como o pai pensou, eu não faria! Mas fiquei gostando dele! Fingi que não ouvi, mas Agenor disse que não consegue escapar de um gelo que queima como fogo. Pois eu vou derreter este gelo!
E ainda:
- Existem homens, mulheres, homossexuais e lésbicas! Não posso crer que alguém não seja nada, não tenha feito uma opção.
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Nos anos 60 apareceram alguns filmes americanos sobre transexuais, com uma visão psicanalítica, médica e um tanto moralista. As cenas misturam isso com a Geni de Nelson Rodrigues (que também regenera Herculano).
Ioná Magalhães, do sertão de "Deus e o Diabo" para a regeneração dos pervertidos.
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
O grito
Estou no Rio para minha pesquisa de doutorado, lendo os capítulos da novela "O grito", de Jorge Andrade, exibida na TV Globo entre 1975 e 1976.
Os roteiros foram fotografados em microfilme e depois digitalizados. Algumas páginas são difíceis de ler porque, nesse processo de copiagem e scanner, foram se apagando as letras mais fracas. As páginas originais eram datilografadas em duas folhas, com um carbono no meio? O escritor entregava o original para a TV ou batia duas cópias? Ele teria tempo de fazer isso, ou ficava com o carbono?
No centro de documentação, não há uma sala especial para pesquisadores. Fico no computador de uma funcionária que está de férias. A sala é ocupada por roteiristas de algum programa jornalístico. Todas falam das Olimpíadas.
Aparentemente ninguém trabalha ou o trabalho permite conversas soltas. Uma moça com jeito de estagiária queria descobrir se havia clínicas de medicina ayurvédica (?) na Índia, para a próxima novela. Uma novela que, segundo a outra, será patrocinada por algum produtor indiano.
Todas liam sites de notícias, conversando e assistindo TV enquanto eu lia os capítulos. A princípio estavam me atrapalhando, mas, como sou sonolenta, talvez fosse o contrário. Me ajudavam a não dormir.
Os roteiros foram fotografados em microfilme e depois digitalizados. Algumas páginas são difíceis de ler porque, nesse processo de copiagem e scanner, foram se apagando as letras mais fracas. As páginas originais eram datilografadas em duas folhas, com um carbono no meio? O escritor entregava o original para a TV ou batia duas cópias? Ele teria tempo de fazer isso, ou ficava com o carbono?
No centro de documentação, não há uma sala especial para pesquisadores. Fico no computador de uma funcionária que está de férias. A sala é ocupada por roteiristas de algum programa jornalístico. Todas falam das Olimpíadas.
Aparentemente ninguém trabalha ou o trabalho permite conversas soltas. Uma moça com jeito de estagiária queria descobrir se havia clínicas de medicina ayurvédica (?) na Índia, para a próxima novela. Uma novela que, segundo a outra, será patrocinada por algum produtor indiano.
Todas liam sites de notícias, conversando e assistindo TV enquanto eu lia os capítulos. A princípio estavam me atrapalhando, mas, como sou sonolenta, talvez fosse o contrário. Me ajudavam a não dormir.
sexta-feira, 1 de agosto de 2008
O Itaim é um inferno
Voltei à ultima revisão do "Afeto". Depois de terminar as alterações maiores, deixei o manuscrito parado por um mês, para criar distância e avaliar melhor. Tentei aumentar o senso crítico da narradora, como já disse, quase ao ponto da frieza.
Não tenho certeza do efeito disso. Às vezes minha maldade pode parecer suave aos outros. E uma ironia elegante na inteção pode ofender quem se sinta retratado.
Vou entregar o texto a um amigo e pedir sua opinião. Seguem os últimos parágrafos.
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"Ele deixou a camisinha no chão. Eu não deveria me importar com detalhes. Ficou no chão, era lixo afinal, eu mesma catei e pronto. De todo modo foi melhor assim, não gasto minhas energias com tanta logística necessária ao adultério.
Tenho a medida das coisas. Voltei para casa um pouco irritada. As avenidas estavam entupidas, atalhos entupidos, não tenho mais paciência para dirigir do Itaim ao Alto de Pinheiros. O Itaim é um inferno. Só escolhi esse hotel porque ninguém me conhece ali.
Seus olhos na janela do hotel. Meu primeiro namorado, na faculdade, tinha o mesmo olhar de cachorro abandonado. Felizmente conheci André e me livrei dessa tendência à comoção. Com o tempo se percebe o ridículo das vagas melancolias.
Ele era divertido, gostava de conversar sobre ácido e as letras do Júpiter Maçã. Era a úncia pessoa no departamento que compreendia a beleza de "Miss Lexotan 6 mg". Psiquiatras levam remédios muito a sério. Eu só queria recuperar, tocando os músculos de seu braço, a sensação que tinha aos treze anos, quando minha tia morava numa casa grande logo depois da avenida do Champagnat.
Chegávamos para o almoço de domingo e eu sentia um orgulho levemente incestuoso ouvindo o tio dizer para minha mãe: “a garota está crescendo”. Seu olhar media meu corpo de cima a baixo num riso largo e satisfeito. Eu prestava atenção ao meu tio naquela época. Tinha quarenta e poucos anos, eu admirava seus ombros e braços fortes. Embora trabalhasse então como gerente do banco estadual, eu imaginava os pelos ruivos seu peito quando era jovem, trabalhava no sítio e dançava nas festas da cidade vizinha. Meu avô sempre desejou que aprendesse a tocar sanfona, mas ele nunca aprendeu.
Continua bonito, embora hoje o banco esteja privatizado e sua aposentadoria tenha diminuído drasticamente. Numa família que saiu do interior para que os filhos se tornassem funcionários públicos, sou mesmo a única pessoa rica, e não porque tenha trabalhado mais que os outros. Foi talvez meu encanto sincero por André, sua ousadia de mau aluno que não precisa de metologia nem salário. A tia dizia: "faz diferença casar com quem tem algum dinheiro." Referia-se ao mito da casa própria e mesmo hoje não sabe o que é realmente "ter dinheiro".
A casa onde moro custa sete vezes um apartamento no Colibri. O divórcio não seria boa idéia."
Não tenho certeza do efeito disso. Às vezes minha maldade pode parecer suave aos outros. E uma ironia elegante na inteção pode ofender quem se sinta retratado.
Vou entregar o texto a um amigo e pedir sua opinião. Seguem os últimos parágrafos.
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"Ele deixou a camisinha no chão. Eu não deveria me importar com detalhes. Ficou no chão, era lixo afinal, eu mesma catei e pronto. De todo modo foi melhor assim, não gasto minhas energias com tanta logística necessária ao adultério.
Tenho a medida das coisas. Voltei para casa um pouco irritada. As avenidas estavam entupidas, atalhos entupidos, não tenho mais paciência para dirigir do Itaim ao Alto de Pinheiros. O Itaim é um inferno. Só escolhi esse hotel porque ninguém me conhece ali.
Seus olhos na janela do hotel. Meu primeiro namorado, na faculdade, tinha o mesmo olhar de cachorro abandonado. Felizmente conheci André e me livrei dessa tendência à comoção. Com o tempo se percebe o ridículo das vagas melancolias.
Ele era divertido, gostava de conversar sobre ácido e as letras do Júpiter Maçã. Era a úncia pessoa no departamento que compreendia a beleza de "Miss Lexotan 6 mg". Psiquiatras levam remédios muito a sério. Eu só queria recuperar, tocando os músculos de seu braço, a sensação que tinha aos treze anos, quando minha tia morava numa casa grande logo depois da avenida do Champagnat.
Chegávamos para o almoço de domingo e eu sentia um orgulho levemente incestuoso ouvindo o tio dizer para minha mãe: “a garota está crescendo”. Seu olhar media meu corpo de cima a baixo num riso largo e satisfeito. Eu prestava atenção ao meu tio naquela época. Tinha quarenta e poucos anos, eu admirava seus ombros e braços fortes. Embora trabalhasse então como gerente do banco estadual, eu imaginava os pelos ruivos seu peito quando era jovem, trabalhava no sítio e dançava nas festas da cidade vizinha. Meu avô sempre desejou que aprendesse a tocar sanfona, mas ele nunca aprendeu.
Continua bonito, embora hoje o banco esteja privatizado e sua aposentadoria tenha diminuído drasticamente. Numa família que saiu do interior para que os filhos se tornassem funcionários públicos, sou mesmo a única pessoa rica, e não porque tenha trabalhado mais que os outros. Foi talvez meu encanto sincero por André, sua ousadia de mau aluno que não precisa de metologia nem salário. A tia dizia: "faz diferença casar com quem tem algum dinheiro." Referia-se ao mito da casa própria e mesmo hoje não sabe o que é realmente "ter dinheiro".
A casa onde moro custa sete vezes um apartamento no Colibri. O divórcio não seria boa idéia."
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