sexta-feira, 1 de agosto de 2008

O Itaim é um inferno

Voltei à ultima revisão do "Afeto". Depois de terminar as alterações maiores, deixei o manuscrito parado por um mês, para criar distância e avaliar melhor. Tentei aumentar o senso crítico da narradora, como já disse, quase ao ponto da frieza.

Não tenho certeza do efeito disso. Às vezes minha maldade pode parecer suave aos outros. E uma ironia elegante na inteção pode ofender quem se sinta retratado.

Vou entregar o texto a um amigo e pedir sua opinião. Seguem os últimos parágrafos.

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"Ele deixou a camisinha no chão. Eu não deveria me importar com detalhes. Ficou no chão, era lixo afinal, eu mesma catei e pronto. De todo modo foi melhor assim, não gasto minhas energias com tanta logística necessária ao adultério.

Tenho a medida das coisas. Voltei para casa um pouco irritada. As avenidas estavam entupidas, atalhos entupidos, não tenho mais paciência para dirigir do Itaim ao Alto de Pinheiros. O Itaim é um inferno. Só escolhi esse hotel porque ninguém me conhece ali.

Seus olhos na janela do hotel. Meu primeiro namorado, na faculdade, tinha o mesmo olhar de cachorro abandonado. Felizmente conheci André e me livrei dessa tendência à comoção. Com o tempo se percebe o ridículo das vagas melancolias.

Ele era divertido, gostava de conversar sobre ácido e as letras do Júpiter Maçã. Era a úncia pessoa no departamento que compreendia a beleza de "Miss Lexotan 6 mg". Psiquiatras levam remédios muito a sério. Eu só queria recuperar, tocando os músculos de seu braço, a sensação que tinha aos treze anos, quando minha tia morava numa casa grande logo depois da avenida do Champagnat.

Chegávamos para o almoço de domingo e eu sentia um orgulho levemente incestuoso ouvindo o tio dizer para minha mãe: “a garota está crescendo”. Seu olhar media meu corpo de cima a baixo num riso largo e satisfeito. Eu prestava atenção ao meu tio naquela época. Tinha quarenta e poucos anos, eu admirava seus ombros e braços fortes. Embora trabalhasse então como gerente do banco estadual, eu imaginava os pelos ruivos seu peito quando era jovem, trabalhava no sítio e dançava nas festas da cidade vizinha. Meu avô sempre desejou que aprendesse a tocar sanfona, mas ele nunca aprendeu.

Continua bonito, embora hoje o banco esteja privatizado e sua aposentadoria tenha diminuído drasticamente. Numa família que saiu do interior para que os filhos se tornassem funcionários públicos, sou mesmo a única pessoa rica, e não porque tenha trabalhado mais que os outros. Foi talvez meu encanto sincero por André, sua ousadia de mau aluno que não precisa de metologia nem salário. A tia dizia: "faz diferença casar com quem tem algum dinheiro." Referia-se ao mito da casa própria e mesmo hoje não sabe o que é realmente "ter dinheiro".

A casa onde moro custa sete vezes um apartamento no Colibri. O divórcio não seria boa idéia."

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