quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Como uma tia

Tentei escrever um conto, que terminou com três páginas e portanto muito longo para este blog. Transcrevo apenas os dois últimos parágrafos:

"Minha nova psicóloga tem um nome bonito, mas não manifesta nenhuma posição crítica em relação a livros de auto-ajuda. Ela acredita em deus e fala ao celular com seu marceneiro durante as consultas. Também me conta sobre sua empregada, seus filhos e sua experiência como professora nos anos setenta.

Eu tento diminuir minha resistência estética quando ouço algumas frases. Também procuro acreditar que "eu tenho que cuidar de mim mesma", como ela diz. De todo modo, ela me traz o conforto familiar de uma tia, com a vantagem de não ser."

Seis parafusos

Acordei provavelmente às três da manhã, depois de um sonho sobre sucos, sopas e o medo de ter a casa invadida, e um hábito secreto em relação a algo que não lembro, dirigindo carros antigos em alta velocidade e batendo de propósito contra o muro, e minha mãe descobre o segredo e eu viro um homem que foge, e numa curva perde a direção do carro - uma peça escapa do motor, e quando tento alcançar a peça eu acordo.

Não consegui voltar a dormir, e depois de alguns pensamentos soltos tentei lembrar dos meus últimos períodos de euforia, com medo que o ciclo começasse de novo. Mas não consegui me concentrar e lembrei apenas da última depressão, que começou no início de junho.

Aos primeiros sintomas pensei que era uma tristeza e iria passar. Mas meu estado piorou em agosto. Não fiz nada na terça-feira porque era aniversário do meu marido e pensei que ele ficaria muito triste se eu me suicidadesse nesse dia.

Na quinta-feira fui ao hotel Formula 1 e perguntei no balcão se havia um quarto no sétimo andar, pois o barulho da rua me incomodava. Só havia algo livre no décimo primeiro. Achei que seria alto demais, mas ainda assim entreguei meu cartão de crédito e assinei o recibo que o funcionário me entregou. Não acendi a luz quando entrei no quarto. Deixei a bolsa sobre a cama e abri a janela, mas havia uma haste metálica parafusada à base. O vidro só se afastou dez centímetros da parede. Desci até a Rua da Consolação e caminhei até uma loja de luminárias. Perguntei se vendiam chaves de fenda, mas responderam que não. Na terceira loja me indicaram uma casa de materiais de construção na esquina da Alameda Santos. Atravessei a rua. Havia muitos carros e naquele momento eu preferia não ouvir nenhum barulho. A chave de fenda custou doze reais e eu voltei para o hotel.

Tive que soltar seis parafusos. Enquanto estava claro quase tive coragem. Mas foi difícil encarar o abismo debaixo da janela depois que anoiteceu. No escuro, a distância parecia maior.

Meu rancho tapera

Hoje não consegui escrever nada, ocupada com outros trabalhos.

Numa horinha livre reli os versos da música "Deixando o pago", de Vitor Ramil, que estou tentando decorar.

A música fala de um churrasco de mamona na sobra de um arvoredo... dormir na beira da estrada num sono largo e sereno... e ver a estrela d'alva... e perceber que a vida não vale nada.

A quarta estrofe termina com estes versos:

"Tive ganas de chorar
Ao ver meu rancho tapera."

Um rancho tapera é um lugar ou casa pobre, abandonada...

Eu não nasci no Rio Grande do Sul, mas muitas vezes tenho ganas de chorar. Principalmente quando lembro do apartamento tapera no condomínio sem garagem no bairro do Ahu de Baixo, em Curitiba, onde cresci.

Datas

Desculpe se ninguém entender. Tenho a obsessão das datas.

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Julho de 1997
Enviei "Contos Femininos" para Jiro Takahashi e ele me respondeu.

Algum momento entre julho e agosto de 1997
Escrevi os contos que reuni com o título "Dê a uma mulher o sapato certo e ela conquistará o mundo".

21 de agosto de 1997
Enviei a Jiro "Dê a uma mulher...". Ele me respondeu bastante rápido. Disse que eu deveria transformar aquilo num pequeno romance, o que não consegui fazer.

Setembro de 1997
Tive a idéia de fazer um livro com as cartas de André Forastieri. Pedi as cartas a ele, que gentilmente me enviou cópias em xerox. Logo em seguida abandonei o livro.

Em 1998
Só conseguia escrever títulos.

Julho de 1999
Tentei começar uma história que deveria ser um romance, chamada "Aquele foi um ano terrível mas teve as noites mais lindas".

Julho de 2000
Parei de escrever "Aquele foi um ano...". Só consegui fazer 47 páginas.

Abril de 2001
Tive uma idéia para terminar "Aquele...". Mudei o título para "O fogão explodiu".

Julho de 2001
Cheguei ao fim de "O fogão...". Enviei a Jiro e Heloisa.

Dezembro de 2001
Escrevi o conto "Cena avulsa".

Algum momento entre 2001 e 2002
Recebi resposta de Jean-Claude e Heloisa sobre "O fogão...". Na hora chorei, e tive dificuldades para me recompor. Pela primeira vez, percebi que o problema da linguagem era mais sério que eu pensava. Heloísa se incomodou porque usei pronome indireto em casos de objeto direto.

Setembro de 2002
Comecei a escrever "Infância", a partir dos sentimentos de "Cena avulsa".

Novembro de 2002
Organizei a primeira versão de "Minha vida de lésbica começou bem", a partir dos contos de "Dê a uma mulher..."

Setembro de 2003, aproximadamente
Enviei "Minha vida de lésbica..." para a editora.

Março de 2005
"Minha vida..." publicado com o título "Calcinha no varal".

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Durante todo esse período, tive muita dificuldade para lidar com a melancolia e a tristeza e o sentimento de abandono e os intervalos de euforia. No começo de 2003 fui a um psiquiatra pela primeira vez. Em agosto desse ano, tomei os primeiros comprimidos.


Esse foram os títulos que escrevi em 1998:

- Os loucos são loucos, as mulheres são sempre servis

- Carreirista, filha da puta, e doce, e sincera

- Cuidadosamente evitando o suicídio

- Destruindo os bens da família

- Um queijo no lugar do coração

Príncipe dos eletrodomésticos

Eu gosto de narrar as histórias em tempo linear, porque é um estilo mais discreto. Idas e vindas no tempo narrativo me parecem um exagero de efeito, como misturar rendas e lantejoula na mesma roupa.

Mas às vezes a ordem linear não funciona, porque uma cena pode ser previsível em relação à anterior.

Por exemplo: Raquel recebeu a visita de um técnico que iria consertar seu fogão. Mas o rapaz não era exatamente competente, e foi embora sem consertar nada. Na sequência, eu ia descrever a reação de Raquel, reclamando com seu pai que chamou o técnico a partir de um anúncio no poste da esquina.

Mas essa ordem ficou muito óbvia: 1) o técnico chega - 2) o técnico é ruim - 3) Raquel reclama do técnico.

Então, antes da reclamação, resolvi incluir uma explicação de Raquel sobre o trabalho do pai. Depois de explicar como o pai é incompetente em seus negócios, ela conclui que essa mesma incompetência se aplica a tarefas mais simples, como contratar um técnico de fogões.

Espero que essa pequena explicação deixe a ação em suspenso, e assim a conclusão de Raquel, quando chegar, pareça inesperada.

Também escrevi uma frase que me pareceu engraçada, mas talvez seja simplesmente brega:

"O moço então se empolgou, e ajoelhou diante do fogão como um príncipe da manutenção dos eletrodomésticos."

Pode ser brega... mas que garota nunca sonhou com um príncipe de eletrodomésticos?

Parágrafos congelados

Na plataforma de concreto que levava à estação de metrô, as luzes já estavam apagadas, mas não havia amanhecido completamente. As pessoas caminhavam no escuro, sobre o piso emborrachado e negro, pelo longo corredor iluminado apenas no fundo, onde havia estandes de jornal e cigarros.

Desci até o ponto de ônibus sentindo o ombro dolorido com o peso da mochila. Havia muita gente espalhada pela calçada irregular e estreita, os ônibus passavam rápido e eu lia com dificuldade as placas de itinerário. Vi o 6224 destino Ceasa se aproximar quase vazio, mas ninguém fez sinal e ele passou direto. Fiquei em dúvida e só acenei quando era tarde demais.

O ônibus entrou no viaduto, definitivamente longe do meu alcance, e então tive certeza que era ele mesmo. Me senti incompentente e ainda mais cansada. Era muito triste a sensação de perder um ônibus onde eu poderia sentar.


(últimos parágrafos de "Limas da Pérsia", que interrompi provisoriamente no mês passado. Pobre Lia. Ainda está esperando o mesmo ônibus, na mesma calçada escura, na mesma madrugada em São Paulo.)

Gordo e suado

Um técnico chega para consertar o fogão na casa de Raquel.

Embora o texto seja leve, não quero descrever um técnico gordo, suado, com a barba por fazer. É engraçado e até verdadeiro, mas todos os técnicos de comédia são assim.

Preferi descrever um técnico bonito. O cabelo enroladinho com gel.

Gramática

No texto anterior, talvez eu tenha mencionado as palavras conjunção e advérbio com naturalidade demais. Não quero dar a impressão falsa de tanto enciclopedismo.

Enquanto escrevia, tinha no colo um dicionário e minha gramática nova, sugerida pela Adriana Seabra:

"A nova gramática do português contemporâneo", de Celso Cunha e Lindley Cintra.

Gostei muito dela.

Um bigode grisalho

Em 1996 fiz duas disciplina no curso de Editoração da USP. "Redação editorial", com a professora Maria Otília Bocchini, e "Edição de livros populares", com o professor e editor Jiro Takahashi.

O primeiro curso era baseado em exercícios de redação para enciclopédias, livros didáticos, jornais e revistas. Uma lição me marcou: o coração da frase é o verbo. Adjetivos e advérbios podem ser acrescentados ou eliminados conforme a necessidade de aumentar ou diminuir um texto.

Nessa época comecei a escrever frases curtas, quase resumidas a substantivos e verbos. Praticamente não usava conjunções complexas, porque não queria estabelecer uma relação única entre os elementos da frase. Preferia apenas ordenar as idéias com "e", "antes", "depois".

Em vez de dizer:

"Elisa encontrava afeto nos cachorros porque sua mãe era distante."

preferia dizer:

"A mãe era distante e Elisa encontrava afeto nos cachorros."

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Eu não percebia que usava os adjetivos de forma bastante banal. Na primeira versão do texto "O fogão explodiu", escrevi esta descrição de um personagem:

"O pai de Raquel tinha um bigode, um bom rosto, e olheiras fundas. Homem de 1 metro e 65, pouco mais. As batatas da perna eram fortes, a postura boa - não era curvado."

Na revisão que estou fazendo agora, me pareceu estranho mencionar sua altura precisa tão precisamente. Deixei apenas:

"Meu pai tem um bigode que já está meio grisalho. Ele é forte mas não muito alto. Está um pouco barrigudo também."

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Entre várias mudanças, mudei a narração para a primeira pessoa. Quem narra é Raquel, uma garota órfã.

O primeiro título do livro era "Aquele foi um ano terrível mas teve as noites mais lindas". Havia uma moda de títulos longos na época.

Depois reduzi para a cena que inicia a história: o fogão explode.

O título me pareceu mais direto, e além disso adoro a palavra "explodir".

Poema


Palavras bonitas

Agradável.

Amável.

Admirável.


Palavras feias

Processo.

(mas eu a escrevo)

O livro no Brasil

Escrevi o texto abaixo para a revista de pós-graduação da Cásper Líbero. Apesar do estilo acadêmico, tentei apresentar um pouco do que li sobre a história do livro no Brasil, um tema que me apaixona.

Na Estante

Os estudos do livro e da leitura envolvem muitas linhas de pesquisa, que podem ser reunidas no campo da Editoração. Esta área da comunicação abrange várias disciplinas: a produção material do livro, seus processos de divulgação e comercialização, a recepção dos leitores, e a abordagem das relações sociais e históricas do livro em diferentes épocas e países. Se o livro simboliza o acesso ao conhecimento, o estudo da Editoração traz à tona um painel comovente das dificuldades enfrentadas no caso brasileiro.

HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil - sua história. São Paulo, Edusp, 2005.

Este é o estudo mais abrangente da história do livro no país, e oferece uma reunião admirável de informações sobre a impressão, os editores e livreiros, sua relação com escritores e o sistema educacional brasileiro desde o século XVI. Sua primeira edição, na década de 80, despertou ciúme entre pesquisadores brasileiros, pois a pesquisa é admirável e o autor é inglês. A segunda edição, atualizada e ilustrada, traz uma importante iconografia da diagramação dos livros impressos no Brasil desde a liberação da imprensa em 1808.

ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas, Mercado de Letras, 2003.

Pesquisadora da Unicamp, Márcia Abreu recupera informações detalhadas sobre a importação de livros no Brasil no período anterior a 1808, em que a impressão era probibida no país. Ela resgata os títulos mais presentes nos documentos de censura, alfândega e inventários, e analisa a passagem do culto das Belas-Letras para a leitura do romance.

BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias. Petrópolis, Vozes, 1981.

O livro se origina na tese de doutorado da autora, baseada em pesquisa sobre os hábitos de leitura de um grupo de operárias na periferia de São Paulo. A análise sensível de Bosi desmente o senso comum de que "o brasileiro não lê", deixando claro que muita gente gostaria de ler muito mais, e a dificuldade de acesso ao livro interrompe frequentemente esse desejo.

Início

A partir de hoje, vou começar a escrever.

Em Porto Alegre


Profissão

O pai de Raquel administra uma fábrica de alfajores.