segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Escrever, escrever

Ainda sobre escrever, um artigo de Francisco Bosco na revista Confraria:

"É conhecida a declaração de Valéry segundo a qual o autor de Variété jamais escreveria um romance porque não poderia escrever uma frase como “A Marquesa saiu às cinco da tarde”. O que significa uma frase como essa em um romance? Grande parte dos romances contém acontecimentos, encadeados numa determinada lógica temporal e num espaço definido; com efeito, para Barthes um romance é feito de “momentos de verdade” - a “verdade do afeto”, como a morte da avó do narrador na Recherche proustiana, ou a morte do velho príncipe Bolkonski em Guerra e paz -, e todo um trabalho de escrita como que apenas preparatório (dilatatório, adiador) para esses momentos de alta intensidade. Assim, a frase que tanto irritava Valéry pode ser considerada como sendo parte da composição do romance, uma parte como que preparatória, necessária, nesse tipo de romance, para o surgimento das passagens de alta intensidade, os momentos de verdade de que fala Barthes.


Mas - o que é escrever? Escrever “A Marquesa saiu às cinco da tarde” é escrever? Escrever é necessariamente escrever? Ou há o escrever e o escrever, como duas práticas bastante distintas, abrigadas pelo mesmo significante? Como se sabe, o citado Barthes propôs uma distinção, fecunda e pertinente a meu ver, entre “escritores” e “escreventes”; esta distinção se fundamenta principalmente no caráter intransitivo da atividade do escritor, que a diferencia da prática transitiva, que tem como finalidade uma intervenção concreta no mundo, do escrevente. Mas há outra possibilidade de se fundar uma diferença no interior do escrever. Vejamos.

(...)

Do outro lado, no caso das estruturas mais visivelmente enrigecedoras, é preciso um olhar complexo: pois a partitura ou o passo são instâncias-fármacon da experiência artística: a um tempo possibilitam e impedem, propiciam e paralisam, a depender da capacidade de apropriação, de liberdade que possui o artista. Assim, às vezes um solo de jazz pode ser um mero lugar-comum, enquanto uma interpretação de Bach pode ser extremamente livre; alguém pode dançar samba no pé sem nenhum “suingue”, ao passo que se pode dançar um samba de gafieira entrecortado pelo engano, a malandragem, o improviso. O lance decisivo, portanto, é a apropriação, o gesto de liberdade que instaura o território da imaginação (do corpo, dos ouvidos, dos pés, dos quadris).


Como tocar ou dançar, também escrever, o verdadeiro escrever, acontece quando se está no território da imaginação e da liberdade. Chamo aqui de imaginação uma visualização mental - um cinema-cabeça - que tem como resultado a produção de uma alteridade: imaginar é produzir aquilo que não se é, é surpreender-se com o próprio pensamento, é pôr o pensamento em estado de alteridade. Assim, a imaginação pode perfeitamente ser uma imaginação teórica: é possível ver conceitos, e é isso que os grandes filósofos e teóricos fazem."