Segunda-feira é o dia ideal para aprender a fazer screenshots.
Esta é uma imagem de O grito. A morte do menino doente, que comentei há alguns dias.
segunda-feira, 29 de março de 2010
Eles botam ovos por qualquer motivo!
Eternamente maravilhada com a internet, encontrei o gibi digitalizado, a partir de uma ótima resenha no blog Quadrinhólatra.
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Ferdinando e os Shmoos
Desenho e roteiro: Al Capp
RGE / Gibi Especial n° 3/ PeB / 1975 / 66 pág.
“Eles botam ovos por qualquer motivo! Também dão leite! E assados no espeto, são a melhor carne de vaca que existe. Fritos, se transformam em apetitosas galinhas ou em qualquer carne branca que desejar! E não dão despesa, pois não comem absolutamente nada! (...) Quando se olha para um Shmoo e se pensa em comê-lo, ele morre de felicidade incontida. Não há desperdício. A pele dá o coro mais resistente... ou roupas, dependendo da grossura que cortar! Os olhos servem de ótimos botões para suspensórios. (...) Os Shmoos não comem nada e se multiplicam rapidamente.”
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Ferdinando e os Shmoos
Desenho e roteiro: Al Capp
RGE / Gibi Especial n° 3/ PeB / 1975 / 66 pág.
“Eles botam ovos por qualquer motivo! Também dão leite! E assados no espeto, são a melhor carne de vaca que existe. Fritos, se transformam em apetitosas galinhas ou em qualquer carne branca que desejar! E não dão despesa, pois não comem absolutamente nada! (...) Quando se olha para um Shmoo e se pensa em comê-lo, ele morre de felicidade incontida. Não há desperdício. A pele dá o coro mais resistente... ou roupas, dependendo da grossura que cortar! Os olhos servem de ótimos botões para suspensórios. (...) Os Shmoos não comem nada e se multiplicam rapidamente.”
Porcos capitalistas
Meu pai tinha um gibi do Ferdinando, que eu adorava quando criança.
Na história, os caipiras famintos encontravam um shmoo - animalzinho estranho que se suicidava de amor, transformando-se em comida, quando alguém o olhava com fome.
Os empresários da cidade percebem que os shmoos estão estragando os negócios. Então mandam uns capangas, que metralham os bichinhos na frente dos caipiras. As crianças e os velhos choram.
Na época, claro, eu não percebia a mensagem política. Me parecia natural que os capitalistas fossem gananciosos e assassinos.
Na história, os caipiras famintos encontravam um shmoo - animalzinho estranho que se suicidava de amor, transformando-se em comida, quando alguém o olhava com fome.
Os empresários da cidade percebem que os shmoos estão estragando os negócios. Então mandam uns capangas, que metralham os bichinhos na frente dos caipiras. As crianças e os velhos choram.
Na época, claro, eu não percebia a mensagem política. Me parecia natural que os capitalistas fossem gananciosos e assassinos.
quarta-feira, 24 de março de 2010
Deviam ter me chamado antes
O artigo de Elio Gaspari, na FSP de hoje, conta curiosidades sobre o matemático que recusou US$ 1 milhão. Não compartilho de algumas premissas, como a comparação algo banal com Lady Gaga (a fantasia de pureza existencial não é exclusiva à nossa época). Cortei as frases sobre a cantora, mas coloquei abaixo o texto quase completo. Gosto das respostas do russo às universidades americanas.
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"Num mundo que consome celebridades, a história de Perelman merece cinco minutos de atenção.
Ele é um matemático russo, de 43 anos, já passou meses sem trocar de roupa, raramente corta as unhas, a barba ou o cabelo. Vive com a mãe em São Petersburgo, tem horror a jornalistas e viveu sete anos praticamente recluso. Nem e-mails respondia. Quando esteve nos Estados Unidos, a base de sua alimentação era pão preto e iogurte.
Recusou cátedras nas universidades de Princeton, Berkeley, Stanford e no MIT. É um excêntrico, mas é um excêntrico que tem bastante a ensinar. Até que ponto vive-se melhor parecendo maluco do que deixando-se bafejar pela celebridade?
Superando ciúmes, intrigas e rivalidades, Perelman acaba de conquistar o prêmio dos "Problemas do Milênio", com direito a um cheque de US$ 1 milhão, concedido por uma fundação americana, por ter decifrado um dos sete grandes mistérios da matemática. Em 2006, ofereceram-lhe um honraria considerada equivalente a um Nobel de matemática. Recusou-a.
Perelman resolveu a conjectura de Poincaré em 2002. Em vez de mandar seu trabalho para uma revista científica, onde um painel de estudiosos estudaria a consistência dos argumentos, simplesmente jogou os textos na internet, num arquivo público de trabalhos acadêmicos. O trabalho não dizia que a conjectura havia sido resolvida, essa tarefa cabia a quem o lesse. (Um matemático gastou três meses para entendê-lo.) A comunidade dos sábios consumiu dois anos estudando, invejando e, em alguns casos, buscando uma falha na explicação. Perda de tempo.
Quando Perelman foi convidado por Princeton, pediram-lhe um currículo. Respondeu que, se não sabiam quem ele era, não deveriam convidá-lo. Como o MIT chamou-o depois que resolveu a Conjectura de Poincaré, recusou porque deveriam tê-lo chamado antes. Num último convite podia ganhar quanto quisesse e fazer o que quisesse durante o tempo que bem entendesse. Respondeu que estava comprometido com seus alunos do ensino médio de São Petersburgo, o que nem era verdade.
Perelman ofendeu-se quando o "New York Times" disse que ele sustentava que resolvera a conjectura para ganhar US$ 1 milhão. Afinal, estudava o problema muito antes de o prêmio surgir e não sustentava coisa alguma. Decifrara a Conjectura de Poincaré, ponto.
O mundo fica mais interessante quando se sabe que o negócio de Perelman é outro. Os matemáticos podem viver num mundo de liberdade e rigor absolutos. Ele escolheu uma vida de total integridade, sem concessões a coisa alguma. Ninguém manda nele, só a matemática, num diálogo que dispensa outras vozes."
Elio Gaspari, FSP - 24/03/2010.
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"Num mundo que consome celebridades, a história de Perelman merece cinco minutos de atenção.
Ele é um matemático russo, de 43 anos, já passou meses sem trocar de roupa, raramente corta as unhas, a barba ou o cabelo. Vive com a mãe em São Petersburgo, tem horror a jornalistas e viveu sete anos praticamente recluso. Nem e-mails respondia. Quando esteve nos Estados Unidos, a base de sua alimentação era pão preto e iogurte.
Recusou cátedras nas universidades de Princeton, Berkeley, Stanford e no MIT. É um excêntrico, mas é um excêntrico que tem bastante a ensinar. Até que ponto vive-se melhor parecendo maluco do que deixando-se bafejar pela celebridade?
Superando ciúmes, intrigas e rivalidades, Perelman acaba de conquistar o prêmio dos "Problemas do Milênio", com direito a um cheque de US$ 1 milhão, concedido por uma fundação americana, por ter decifrado um dos sete grandes mistérios da matemática. Em 2006, ofereceram-lhe um honraria considerada equivalente a um Nobel de matemática. Recusou-a.
Perelman resolveu a conjectura de Poincaré em 2002. Em vez de mandar seu trabalho para uma revista científica, onde um painel de estudiosos estudaria a consistência dos argumentos, simplesmente jogou os textos na internet, num arquivo público de trabalhos acadêmicos. O trabalho não dizia que a conjectura havia sido resolvida, essa tarefa cabia a quem o lesse. (Um matemático gastou três meses para entendê-lo.) A comunidade dos sábios consumiu dois anos estudando, invejando e, em alguns casos, buscando uma falha na explicação. Perda de tempo.
Quando Perelman foi convidado por Princeton, pediram-lhe um currículo. Respondeu que, se não sabiam quem ele era, não deveriam convidá-lo. Como o MIT chamou-o depois que resolveu a Conjectura de Poincaré, recusou porque deveriam tê-lo chamado antes. Num último convite podia ganhar quanto quisesse e fazer o que quisesse durante o tempo que bem entendesse. Respondeu que estava comprometido com seus alunos do ensino médio de São Petersburgo, o que nem era verdade.
Perelman ofendeu-se quando o "New York Times" disse que ele sustentava que resolvera a conjectura para ganhar US$ 1 milhão. Afinal, estudava o problema muito antes de o prêmio surgir e não sustentava coisa alguma. Decifrara a Conjectura de Poincaré, ponto.
O mundo fica mais interessante quando se sabe que o negócio de Perelman é outro. Os matemáticos podem viver num mundo de liberdade e rigor absolutos. Ele escolheu uma vida de total integridade, sem concessões a coisa alguma. Ninguém manda nele, só a matemática, num diálogo que dispensa outras vozes."
Elio Gaspari, FSP - 24/03/2010.
segunda-feira, 22 de março de 2010
Ice laskamo
Escrevi um artigo sobre o programa Big Brother para o Estadão. O tema foi sugerido pelo jornal, que preparava algumas matérias sobre a delinquência juvenil (por causa da morte do Glauco).
É um artigo austero, digamos.
Seguem alguns trechos. O texto completo está aqui.
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"Que bebida os BBBs tomam naquela garrafinha? Há algum tempo acompanho as notícias sobre o programa Big Brother Brasil, produzido pela TV Globo. Não me interessam especialmente os participantes e suas inter-relações variadas, mas os dados sobre audiência e faturamento.
Segundo as notas da imprensa, a décima edição do Big Brother começou com audiência menor que as versões anteriores. Entretanto, o desempenho comercial continua se destacando. Ele atrai anunciantes pelas possibilidades de merchandising, pois o tempo de exposição do produto é mais longo, e o envolvimento, maior.
(...)
Entre todos os produtos espalhados pela casa, uma garrafinha de rótulo verde chama atenção. Nas festas e nos momentos de tédio, os participantes recebem ice para se animar. A bebida desperta euforia nos jogadores. Em trechos disponíveis no YouTube os participantes gritam e se abraçam ao ver as garrafinhas. Seguindo a lição de Madonna, simulam sexo oral no produto. Ficam bêbados, caem, dão vexame.
Embora o assunto "regulamentação publicitária" seja terreno minado, não me parece apropriado exibir livremente o consumo de bebida alcoólica num programa liberado para o público de 14 anos. À primeira vista, não consegui identificar se as garrafas eram merchandising. A diferença é sutil, mas importante: a bebida surge para que os participantes fiquem mais expansivos (aumentando o interesse do "conteúdo" exibido), ou porque a emissora é paga para isso?
Os participantes se referem à bebida apenas como ice. Nenhuma marca é mencionada. A garrafa tem tampa vermelha e rótulo verde. Não vi nenhum produto parecido no supermercado. Procurei no site de uma distribuidora de bebidas: nada. Na internet, encontrei perguntas semelhantes em vários fóruns e debates. "Qual a marca de ice que os BBBs tomam?" O assunto parece interessar à juventude. Talvez seja a mesma juventude que ouve a canção Red Label ou Ice, sucesso em forró ou funk. Diz a letra: "Elas gostam mais de ice porque whisky elas caem".
(...)
Assistindo atentamente aos vídeos disponíveis no YouTube consegui finalmente ler o rótulo da garrafa: diz apenas "Big Brother Brasil". Trata-se de um ice genérico, como é chamado na rede. Assim, em teoria, a exibição não é patrocinada. Os jogadores bebem porque a produção considera interessante. O melhor comentário vem de um certo Rocky. "Qual a bebida que os BBBs tomam?" Diz ele: "ICE LASKAMO".
É um artigo austero, digamos.
Seguem alguns trechos. O texto completo está aqui.
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"Que bebida os BBBs tomam naquela garrafinha? Há algum tempo acompanho as notícias sobre o programa Big Brother Brasil, produzido pela TV Globo. Não me interessam especialmente os participantes e suas inter-relações variadas, mas os dados sobre audiência e faturamento.
Segundo as notas da imprensa, a décima edição do Big Brother começou com audiência menor que as versões anteriores. Entretanto, o desempenho comercial continua se destacando. Ele atrai anunciantes pelas possibilidades de merchandising, pois o tempo de exposição do produto é mais longo, e o envolvimento, maior.
(...)
Entre todos os produtos espalhados pela casa, uma garrafinha de rótulo verde chama atenção. Nas festas e nos momentos de tédio, os participantes recebem ice para se animar. A bebida desperta euforia nos jogadores. Em trechos disponíveis no YouTube os participantes gritam e se abraçam ao ver as garrafinhas. Seguindo a lição de Madonna, simulam sexo oral no produto. Ficam bêbados, caem, dão vexame.
Embora o assunto "regulamentação publicitária" seja terreno minado, não me parece apropriado exibir livremente o consumo de bebida alcoólica num programa liberado para o público de 14 anos. À primeira vista, não consegui identificar se as garrafas eram merchandising. A diferença é sutil, mas importante: a bebida surge para que os participantes fiquem mais expansivos (aumentando o interesse do "conteúdo" exibido), ou porque a emissora é paga para isso?
Os participantes se referem à bebida apenas como ice. Nenhuma marca é mencionada. A garrafa tem tampa vermelha e rótulo verde. Não vi nenhum produto parecido no supermercado. Procurei no site de uma distribuidora de bebidas: nada. Na internet, encontrei perguntas semelhantes em vários fóruns e debates. "Qual a marca de ice que os BBBs tomam?" O assunto parece interessar à juventude. Talvez seja a mesma juventude que ouve a canção Red Label ou Ice, sucesso em forró ou funk. Diz a letra: "Elas gostam mais de ice porque whisky elas caem".
(...)
Assistindo atentamente aos vídeos disponíveis no YouTube consegui finalmente ler o rótulo da garrafa: diz apenas "Big Brother Brasil". Trata-se de um ice genérico, como é chamado na rede. Assim, em teoria, a exibição não é patrocinada. Os jogadores bebem porque a produção considera interessante. O melhor comentário vem de um certo Rocky. "Qual a bebida que os BBBs tomam?" Diz ele: "ICE LASKAMO".
terça-feira, 16 de março de 2010
Vestido azul, II
Novo trecho do conto em construção.
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"Tenho pouca familiaridade com a moda, é verdade. Mas acho agradável visitar lojas e escolher peças bonitas quando meus cabides se mostram deprimidos pelo excesso de tecido desbotado. Minhas roupas novas costumam ser versões revisadas de modelos antigos: gosto sinceramente dos tons castanhos. Nos dias mais alegres me bastam o amarelo claro, um pouco de azul ou rosa. As coleções passam mas consigo manter meu estilo - deve existir uma parcela constante de mulheres tímidas, que movimenta o modesto mercado das roupas inofensivas.
Minha prima, entretanto, marcou seu casamento numa época desconfortável para mim. Eu decidira comprar o pequeno apartamento em que morava, por isso trabalhava muito e sobrava pouco: as parcelas do financiamento custavam metade do meu salário. Pensei então em procurar algo barato numa loja popular. Os pobres quando casam também convidam seus parentes, existem bairros inteiros dedicados a tal comércio. Eu poderia me contentar com algo meio vagabundo: era suficiente para usar entre tias e tios e a mãe do cunhado do meu irmão. Fazia quatro anos que não via essa prima. Só precisava acompanhar minha mãe, que adora rever a família em batizados, formaturas e missas de sétimo dia.
Mas não sei que espírito demoníaco inventou o poliéster, nem por que resolveu martirizar os pobres. Fui a uma loja em Santo Amaro, e percebi aterrorizada que nem um cão farejador encontraria um mísero retalho de algodão. Se havia alguma cor discreta, estava escondida debaixo das lantejoulas. O criador dos modelos parecia ignorar que duas partes de tecido pudessem se unir sem a interferência de um babado. O pavor criou uma falência súbita nos meus nervos óticos e desnorteadamente, entre ondas de angústia, procurei meu caminho até a porta de saída."
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"Tenho pouca familiaridade com a moda, é verdade. Mas acho agradável visitar lojas e escolher peças bonitas quando meus cabides se mostram deprimidos pelo excesso de tecido desbotado. Minhas roupas novas costumam ser versões revisadas de modelos antigos: gosto sinceramente dos tons castanhos. Nos dias mais alegres me bastam o amarelo claro, um pouco de azul ou rosa. As coleções passam mas consigo manter meu estilo - deve existir uma parcela constante de mulheres tímidas, que movimenta o modesto mercado das roupas inofensivas.
Minha prima, entretanto, marcou seu casamento numa época desconfortável para mim. Eu decidira comprar o pequeno apartamento em que morava, por isso trabalhava muito e sobrava pouco: as parcelas do financiamento custavam metade do meu salário. Pensei então em procurar algo barato numa loja popular. Os pobres quando casam também convidam seus parentes, existem bairros inteiros dedicados a tal comércio. Eu poderia me contentar com algo meio vagabundo: era suficiente para usar entre tias e tios e a mãe do cunhado do meu irmão. Fazia quatro anos que não via essa prima. Só precisava acompanhar minha mãe, que adora rever a família em batizados, formaturas e missas de sétimo dia.
Mas não sei que espírito demoníaco inventou o poliéster, nem por que resolveu martirizar os pobres. Fui a uma loja em Santo Amaro, e percebi aterrorizada que nem um cão farejador encontraria um mísero retalho de algodão. Se havia alguma cor discreta, estava escondida debaixo das lantejoulas. O criador dos modelos parecia ignorar que duas partes de tecido pudessem se unir sem a interferência de um babado. O pavor criou uma falência súbita nos meus nervos óticos e desnorteadamente, entre ondas de angústia, procurei meu caminho até a porta de saída."
sexta-feira, 12 de março de 2010
Além de escritora
Escrevo mais um conto, agora para um projeto de minha amiga Sissi.
É inspirado numa lembrança de Marguerite Duras:
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Um vestido azul
Alguns anos atrás, trocando de canal durante a noite, assisti por acaso à entrevista de uma velha escritora francesa. Eram imagens antigas em preto e branco, a mulher teria talvez uns cinquenta anos, e isso era muita idade há algumas décadas. Ela segurava o cigarro aceso, tinha voz rouca e um rosto mal-humorado. Falou muito, movendo as mãos amplamente, mas esqueci quase tudo. Lembro apenas o que disse sobre suas roupas.
Aos quarenta anos, ela decidiu que só usaria um figurino: saia reta e blusa preta com gola rolê. Não queria mais se preocupar. Cansou de gastar suas horas pensando se estava mesmo bonita ou bem vestida. Escolheu uma imagem e seguiria a vida considerando encerrado o assunto.
A decisão extrema tinha pouca relação com as roupas. Principalmente, irritava-se com jornalistas que a descreviam sempre da mesma maneira: "além de escritora, é também uma bela mulher". Repetia variações da mesma idéia: "hoje escritora reconhecida, foi uma linda jovem durante a guerra". "Seu talento com as palavras se revela nos gestos insinuantes e femininos".
É inspirado numa lembrança de Marguerite Duras:
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Um vestido azul
Alguns anos atrás, trocando de canal durante a noite, assisti por acaso à entrevista de uma velha escritora francesa. Eram imagens antigas em preto e branco, a mulher teria talvez uns cinquenta anos, e isso era muita idade há algumas décadas. Ela segurava o cigarro aceso, tinha voz rouca e um rosto mal-humorado. Falou muito, movendo as mãos amplamente, mas esqueci quase tudo. Lembro apenas o que disse sobre suas roupas.
Aos quarenta anos, ela decidiu que só usaria um figurino: saia reta e blusa preta com gola rolê. Não queria mais se preocupar. Cansou de gastar suas horas pensando se estava mesmo bonita ou bem vestida. Escolheu uma imagem e seguiria a vida considerando encerrado o assunto.
A decisão extrema tinha pouca relação com as roupas. Principalmente, irritava-se com jornalistas que a descreviam sempre da mesma maneira: "além de escritora, é também uma bela mulher". Repetia variações da mesma idéia: "hoje escritora reconhecida, foi uma linda jovem durante a guerra". "Seu talento com as palavras se revela nos gestos insinuantes e femininos".
terça-feira, 9 de março de 2010
Cinzas sobre São Paulo
Ando ausente nas últimas semanas. Além de algumas notícias tristes, estive concentrada num texto para meu doutorado.
Segue um trecho sobre as cenas finais de O grito (resumido, embora longo):
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"No início do último capítulo, a criança morre: dormindo, em seu quarto. A testemunha é Socorro, esposa do zelador. Ele entra na reunião de condomínio e Marta adivinha a mensagem em seu olhar sofrido. No apartamento, todas as mulheres se reúnem para rezar. Marta é conduzida a uma cadeira e fica sentada, imóvel, ao som da oração coletiva.
Um longo flashback a mostra no convento. Ajoelhada diante de uma freira, ela conta sua história: quando vivia reclusa, ouvia os barulhos da cidade através dos muros. Decidiu sair e conhecer o mundo, pois não poderia compreender o sofrimento se não o tivesse experimentado. “Eu não podia sentir Deus, sem me sentir uma pessoa humana. Como não podia compreender, sem sentir na carne o sofrimento, a dor. Agora eu sinto. Como espinhos, circulando no meu sangue.”
O monólogo é recitado em tom sóbrio, com melancólico fundo musical. Não há margem para leviandades: Marta colheu o sofrimento do mundo, esta é sua missão. Com a morte do filho, ela se considera pronta para voltar ao convento e ser uma “verdadeira religiosa”. Diz: “Aqui é o meu lugar, depois que o meu filho morrer. Mas antes disso, eu quero deixá-lo um pouco dentro de cada um, como uma semente quando se joga na terra. Um dia ela germina, brota, cresce, dá flores e frutos”.
Este projeto leva à conclusão da narrativa. O menino é cremado e Marta espalha suas cinzas pela cidade. A cena no crematório dura onze minutos (o capítulo inteiro tem 34’30’’).
Os restos mortais começam a ser discutidos já durante o velório da criança:
Mário - Eu disse que Dona Marta não vai enterrar o filho, vai cremar.
Carmem - Cremar?
Mário - É, isto mesmo.
Carmem - Isso é horrível!
Laís - Horrível por quê?
Carmem - Por que os mortos a gente enterra, não queima.
Laís - Que diferença faz?
Carmem - A diferença é que a gente sabe onde vai no dia de finados.
Laís - Os mortos ficam na nossa lembrança, não num cemitério qualquer.
E também:
Lúcia - O que as pessoas fazem com as cinzas?
Gilberto - Eu também pensei nisso. Perguntei lá no crematório. Diz que muitos deixam as cinzas lá mesmo. Outros espalham no gramado, no canteiro das flores. E alguns jogam sobre as montanhas, ou sobre o mar. Usam helicóptero.
A longa cena da cremação alterna, através de fusões, uma sequência de rostos: Marta em hábito de freira, o menino doente (de olhos abertos), o padre recitando o evangelho. Os atores foram gravados em estúdio, e os closes sobrepostos a imagens do crematório de vila Alpina, que através de amplas janelas mostra o horizonte da cidade. Ao final, Marta recebe a caixa de cinzas e as espalha pelo ar, no gramado externo do crematório.
O roteiro previa cenas num helicóptero, em que Marta subiria para lançar de fato as cinzas sobre a cidade. Porém essas imagens não fazem parte do capítulo, talvez por questão de custos. A versão exibida sugere a ação através de fusões: planos de Marta no gramado do crematório, espalhando as cinzas pelo ar, são alternados com planos aéreos da cidade, através de fusão circular partindo do centro do quadro. Marta realiza sorrindo, nesse gesto, sua vontade de deixar parte do filho como semente.
Mas que semente seria essa? A novela termina logo após a cremação do menino. Gilberto, o arquiteto intelectual, aparece sozinho em seu apartamento. Ele caminha pensativo até a janela e observa a paisagem. São imagens de São Paulo: prédios, viadutos e fumaça, numa sequência de planos aéreos em movimento, sob tensos acordes musicais. A mesma cidade mostrada nos capítulos iniciais, quando o grito é ouvido pela primeira vez. Jorge Andrade a descreve assim no roteiro:
19 – A CIDADE ADORMECIDA – NOITE – EXT
Numa sequência de takes em fusão, aparece a cidade adormecida. Ruas escuras e vazias, prédios sem nenhuma janela iluminada. Vemos caminhões de lixo recolhendo latas nas ruas; uma mangueira esguichando água, ligada a um caminhão, passa lavando o asfalto. Mendigos, cobertos por jornais ou trapos, dormem em calçadas, embaixo de viadutos. A câmara focaliza a forma estranha do Minhocão, indo parar diante do Edifício Paraíso. Oswaldo [o faxineiro] dorme debruçado sobre a mesa. Outra sequência de takes mostra corredores, saguões, livings, tudo adormecido.
DE REPENTE, OUVE-SE UM GRITO TERRÍVEL, APAVORANTE, INUMANO.
(obs: grifo do autor)
Uma cidade escura, de lixo, asfalto, viadutos e mendigos. No capítulo final, depois de encerrada a trajetória do menino doente, a cidade continua ali. E ressurgem sobre ela os gritos já ouvidos tantas vezes, apavorantes e inumanos. Os gritos se prolongam por trinta e cinco segundos até que, sobreposta à ultima imagem (o lago do parque Ibirapuera), surge a mensagem bíblica: “E a semente vai germinar, brotar, crescer, florescer e dará frutos”.
A metáfora evangélica traz uma ambiguidade de origem: os frutos são uma compensação pela morte da semente, assim como a disseminação da palavra de Cristo recompensa seu sacrifício. Desse modo, o renascimento na vida eterna compensaria os sacrifícios terrenos do cristão.
A redenção pressupõe a morte ou a perda. Mas o texto de Jorge Andrade desfaz o já frágil equilíbrio: ao apresentar o sacrifício, ele não oferece consolo. Numa cidade poluída e imensa, ao som de gritos apavorantes, que frutos poderiam nascer? A morte do menino parece lançar uma maldição sobre a cidade: mesmo morto, mesmo incinerado, seu grito não desaparecerá."
Segue um trecho sobre as cenas finais de O grito (resumido, embora longo):
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"No início do último capítulo, a criança morre: dormindo, em seu quarto. A testemunha é Socorro, esposa do zelador. Ele entra na reunião de condomínio e Marta adivinha a mensagem em seu olhar sofrido. No apartamento, todas as mulheres se reúnem para rezar. Marta é conduzida a uma cadeira e fica sentada, imóvel, ao som da oração coletiva.
Um longo flashback a mostra no convento. Ajoelhada diante de uma freira, ela conta sua história: quando vivia reclusa, ouvia os barulhos da cidade através dos muros. Decidiu sair e conhecer o mundo, pois não poderia compreender o sofrimento se não o tivesse experimentado. “Eu não podia sentir Deus, sem me sentir uma pessoa humana. Como não podia compreender, sem sentir na carne o sofrimento, a dor. Agora eu sinto. Como espinhos, circulando no meu sangue.”
O monólogo é recitado em tom sóbrio, com melancólico fundo musical. Não há margem para leviandades: Marta colheu o sofrimento do mundo, esta é sua missão. Com a morte do filho, ela se considera pronta para voltar ao convento e ser uma “verdadeira religiosa”. Diz: “Aqui é o meu lugar, depois que o meu filho morrer. Mas antes disso, eu quero deixá-lo um pouco dentro de cada um, como uma semente quando se joga na terra. Um dia ela germina, brota, cresce, dá flores e frutos”.
Este projeto leva à conclusão da narrativa. O menino é cremado e Marta espalha suas cinzas pela cidade. A cena no crematório dura onze minutos (o capítulo inteiro tem 34’30’’).
Os restos mortais começam a ser discutidos já durante o velório da criança:
Mário - Eu disse que Dona Marta não vai enterrar o filho, vai cremar.
Carmem - Cremar?
Mário - É, isto mesmo.
Carmem - Isso é horrível!
Laís - Horrível por quê?
Carmem - Por que os mortos a gente enterra, não queima.
Laís - Que diferença faz?
Carmem - A diferença é que a gente sabe onde vai no dia de finados.
Laís - Os mortos ficam na nossa lembrança, não num cemitério qualquer.
E também:
Lúcia - O que as pessoas fazem com as cinzas?
Gilberto - Eu também pensei nisso. Perguntei lá no crematório. Diz que muitos deixam as cinzas lá mesmo. Outros espalham no gramado, no canteiro das flores. E alguns jogam sobre as montanhas, ou sobre o mar. Usam helicóptero.
A longa cena da cremação alterna, através de fusões, uma sequência de rostos: Marta em hábito de freira, o menino doente (de olhos abertos), o padre recitando o evangelho. Os atores foram gravados em estúdio, e os closes sobrepostos a imagens do crematório de vila Alpina, que através de amplas janelas mostra o horizonte da cidade. Ao final, Marta recebe a caixa de cinzas e as espalha pelo ar, no gramado externo do crematório.
O roteiro previa cenas num helicóptero, em que Marta subiria para lançar de fato as cinzas sobre a cidade. Porém essas imagens não fazem parte do capítulo, talvez por questão de custos. A versão exibida sugere a ação através de fusões: planos de Marta no gramado do crematório, espalhando as cinzas pelo ar, são alternados com planos aéreos da cidade, através de fusão circular partindo do centro do quadro. Marta realiza sorrindo, nesse gesto, sua vontade de deixar parte do filho como semente.
Mas que semente seria essa? A novela termina logo após a cremação do menino. Gilberto, o arquiteto intelectual, aparece sozinho em seu apartamento. Ele caminha pensativo até a janela e observa a paisagem. São imagens de São Paulo: prédios, viadutos e fumaça, numa sequência de planos aéreos em movimento, sob tensos acordes musicais. A mesma cidade mostrada nos capítulos iniciais, quando o grito é ouvido pela primeira vez. Jorge Andrade a descreve assim no roteiro:
19 – A CIDADE ADORMECIDA – NOITE – EXT
Numa sequência de takes em fusão, aparece a cidade adormecida. Ruas escuras e vazias, prédios sem nenhuma janela iluminada. Vemos caminhões de lixo recolhendo latas nas ruas; uma mangueira esguichando água, ligada a um caminhão, passa lavando o asfalto. Mendigos, cobertos por jornais ou trapos, dormem em calçadas, embaixo de viadutos. A câmara focaliza a forma estranha do Minhocão, indo parar diante do Edifício Paraíso. Oswaldo [o faxineiro] dorme debruçado sobre a mesa. Outra sequência de takes mostra corredores, saguões, livings, tudo adormecido.
DE REPENTE, OUVE-SE UM GRITO TERRÍVEL, APAVORANTE, INUMANO.
(obs: grifo do autor)
Uma cidade escura, de lixo, asfalto, viadutos e mendigos. No capítulo final, depois de encerrada a trajetória do menino doente, a cidade continua ali. E ressurgem sobre ela os gritos já ouvidos tantas vezes, apavorantes e inumanos. Os gritos se prolongam por trinta e cinco segundos até que, sobreposta à ultima imagem (o lago do parque Ibirapuera), surge a mensagem bíblica: “E a semente vai germinar, brotar, crescer, florescer e dará frutos”.
A metáfora evangélica traz uma ambiguidade de origem: os frutos são uma compensação pela morte da semente, assim como a disseminação da palavra de Cristo recompensa seu sacrifício. Desse modo, o renascimento na vida eterna compensaria os sacrifícios terrenos do cristão.
A redenção pressupõe a morte ou a perda. Mas o texto de Jorge Andrade desfaz o já frágil equilíbrio: ao apresentar o sacrifício, ele não oferece consolo. Numa cidade poluída e imensa, ao som de gritos apavorantes, que frutos poderiam nascer? A morte do menino parece lançar uma maldição sobre a cidade: mesmo morto, mesmo incinerado, seu grito não desaparecerá."
sexta-feira, 5 de março de 2010
Quien habra inventado el reloj, caramba?
Assisti pela primeira vez a um filme do Carlos Gardel, Tango na Broadway. Nunca imaginei que ele fosse tão maroto, cantando.
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