terça-feira, 16 de março de 2010

Vestido azul, II

Novo trecho do conto em construção.

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"Tenho pouca familiaridade com a moda, é verdade. Mas acho agradável visitar lojas e escolher peças bonitas quando meus cabides se mostram deprimidos pelo excesso de tecido desbotado. Minhas roupas novas costumam ser versões revisadas de modelos antigos: gosto sinceramente dos tons castanhos. Nos dias mais alegres me bastam o amarelo claro, um pouco de azul ou rosa. As coleções passam mas consigo manter meu estilo - deve existir uma parcela constante de mulheres tímidas, que movimenta o modesto mercado das roupas inofensivas.

Minha prima, entretanto, marcou seu casamento numa época desconfortável para mim. Eu decidira comprar o pequeno apartamento em que morava, por isso trabalhava muito e sobrava pouco: as parcelas do financiamento custavam metade do meu salário. Pensei então em procurar algo barato numa loja popular. Os pobres quando casam também convidam seus parentes, existem bairros inteiros dedicados a tal comércio. Eu poderia me contentar com algo meio vagabundo: era suficiente para usar entre tias e tios e a mãe do cunhado do meu irmão. Fazia quatro anos que não via essa prima. Só precisava acompanhar minha mãe, que adora rever a família em batizados, formaturas e missas de sétimo dia.

Mas não sei que espírito demoníaco inventou o poliéster, nem por que resolveu martirizar os pobres. Fui a uma loja em Santo Amaro, e percebi aterrorizada que nem um cão farejador encontraria um mísero retalho de algodão. Se havia alguma cor discreta, estava escondida debaixo das lantejoulas. O criador dos modelos parecia ignorar que duas partes de tecido pudessem se unir sem a interferência de um babado. O pavor criou uma falência súbita nos meus nervos óticos e desnorteadamente, entre ondas de angústia, procurei meu caminho até a porta de saída."

2 comentários:

Paulodaluzmoreira disse...

Uma estrofe perfeita com minha métrica preferida [redondilhas e versos de nove sílabas]:

Uma parcela constante
de mulheres tímidas
movimenta o modesto mercado
das roupas inofensivas.

Posso "roubar"?

sabina anzuategui disse...

=)

pode, claro.