terça-feira, 9 de março de 2010

Cinzas sobre São Paulo

Ando ausente nas últimas semanas. Além de algumas notícias tristes, estive concentrada num texto para meu doutorado.

Segue um trecho sobre as cenas finais de O grito (resumido, embora longo):

- - -

"No início do último capítulo, a criança morre: dormindo, em seu quarto. A testemunha é Socorro, esposa do zelador. Ele entra na reunião de condomínio e Marta adivinha a mensagem em seu olhar sofrido. No apartamento, todas as mulheres se reúnem para rezar. Marta é conduzida a uma cadeira e fica sentada, imóvel, ao som da oração coletiva.

Um longo flashback a mostra no convento. Ajoelhada diante de uma freira, ela conta sua história: quando vivia reclusa, ouvia os barulhos da cidade através dos muros. Decidiu sair e conhecer o mundo, pois não poderia compreender o sofrimento se não o tivesse experimentado. “Eu não podia sentir Deus, sem me sentir uma pessoa humana. Como não podia compreender, sem sentir na carne o sofrimento, a dor. Agora eu sinto. Como espinhos, circulando no meu sangue.”

O monólogo é recitado em tom sóbrio, com melancólico fundo musical. Não há margem para leviandades: Marta colheu o sofrimento do mundo, esta é sua missão. Com a morte do filho, ela se considera pronta para voltar ao convento e ser uma “verdadeira religiosa”. Diz: “Aqui é o meu lugar, depois que o meu filho morrer. Mas antes disso, eu quero deixá-lo um pouco dentro de cada um, como uma semente quando se joga na terra. Um dia ela germina, brota, cresce, dá flores e frutos”.

Este projeto leva à conclusão da narrativa. O menino é cremado e Marta espalha suas cinzas pela cidade. A cena no crematório dura onze minutos (o capítulo inteiro tem 34’30’’).

Os restos mortais começam a ser discutidos já durante o velório da criança:

Mário - Eu disse que Dona Marta não vai enterrar o filho, vai cremar.
Carmem - Cremar?
Mário - É, isto mesmo.
Carmem - Isso é horrível!
Laís - Horrível por quê?
Carmem - Por que os mortos a gente enterra, não queima.
Laís - Que diferença faz?
Carmem - A diferença é que a gente sabe onde vai no dia de finados.
Laís - Os mortos ficam na nossa lembrança, não num cemitério qualquer.


E também:

Lúcia - O que as pessoas fazem com as cinzas?
Gilberto - Eu também pensei nisso. Perguntei lá no crematório. Diz que muitos deixam as cinzas lá mesmo. Outros espalham no gramado, no canteiro das flores. E alguns jogam sobre as montanhas, ou sobre o mar. Usam helicóptero.

A longa cena da cremação alterna, através de fusões, uma sequência de rostos: Marta em hábito de freira, o menino doente (de olhos abertos), o padre recitando o evangelho. Os atores foram gravados em estúdio, e os closes sobrepostos a imagens do crematório de vila Alpina, que através de amplas janelas mostra o horizonte da cidade. Ao final, Marta recebe a caixa de cinzas e as espalha pelo ar, no gramado externo do crematório.

O roteiro previa cenas num helicóptero, em que Marta subiria para lançar de fato as cinzas sobre a cidade. Porém essas imagens não fazem parte do capítulo, talvez por questão de custos. A versão exibida sugere a ação através de fusões: planos de Marta no gramado do crematório, espalhando as cinzas pelo ar, são alternados com planos aéreos da cidade, através de fusão circular partindo do centro do quadro. Marta realiza sorrindo, nesse gesto, sua vontade de deixar parte do filho como semente.

Mas que semente seria essa? A novela termina logo após a cremação do menino. Gilberto, o arquiteto intelectual, aparece sozinho em seu apartamento. Ele caminha pensativo até a janela e observa a paisagem. São imagens de São Paulo: prédios, viadutos e fumaça, numa sequência de planos aéreos em movimento, sob tensos acordes musicais. A mesma cidade mostrada nos capítulos iniciais, quando o grito é ouvido pela primeira vez. Jorge Andrade a descreve assim no roteiro:

19 – A CIDADE ADORMECIDA – NOITE – EXT
Numa sequência de takes em fusão, aparece a cidade adormecida. Ruas escuras e vazias, prédios sem nenhuma janela iluminada. Vemos caminhões de lixo recolhendo latas nas ruas; uma mangueira esguichando água, ligada a um caminhão, passa lavando o asfalto. Mendigos, cobertos por jornais ou trapos, dormem em calçadas, embaixo de viadutos. A câmara focaliza a forma estranha do Minhocão, indo parar diante do Edifício Paraíso. Oswaldo [o faxineiro] dorme debruçado sobre a mesa. Outra sequência de takes mostra corredores, saguões, livings, tudo adormecido.
DE REPENTE, OUVE-SE UM GRITO TERRÍVEL, APAVORANTE, INUMANO.

(obs: grifo do autor)

Uma cidade escura, de lixo, asfalto, viadutos e mendigos. No capítulo final, depois de encerrada a trajetória do menino doente, a cidade continua ali. E ressurgem sobre ela os gritos já ouvidos tantas vezes, apavorantes e inumanos. Os gritos se prolongam por trinta e cinco segundos até que, sobreposta à ultima imagem (o lago do parque Ibirapuera), surge a mensagem bíblica: “E a semente vai germinar, brotar, crescer, florescer e dará frutos”.

A metáfora evangélica traz uma ambiguidade de origem: os frutos são uma compensação pela morte da semente, assim como a disseminação da palavra de Cristo recompensa seu sacrifício. Desse modo, o renascimento na vida eterna compensaria os sacrifícios terrenos do cristão.

A redenção pressupõe a morte ou a perda. Mas o texto de Jorge Andrade desfaz o já frágil equilíbrio: ao apresentar o sacrifício, ele não oferece consolo. Numa cidade poluída e imensa, ao som de gritos apavorantes, que frutos poderiam nascer? A morte do menino parece lançar uma maldição sobre a cidade: mesmo morto, mesmo incinerado, seu grito não desaparecerá."

2 comentários:

Anônimo disse...

Sombrio e bonito. Muito triste tb. Gostei do texto.

Paulodaluzmoreira disse...

Incrível pensar que novelas já foram assim tão ousadas.