quarta-feira, 17 de junho de 2015

Um certo desajuste

"Descemos um quarteirão até a Pedroso de Moraes, depois seguimos um pouco pela Cardeal Arcoverde. A pastelaria ficava na esquina da Cunha Gago, quase em frente ao ponto de ônibus, a entrada estreita mas comprida para dentro, tudo de azulejo branco. A fachada, entre palmeiras e cocos verdes com canudinhos, dizia Pastelaria Brasileira.

Eu quase não conhecia Janaína, minha impressão sobre ela era ainda de espanto com seu entusiasmo pelos garotos do Heavy Metal. Entusiasmo de geração espontânea, independente da pouca correspondência deles e do pouco encanto que eles exibiam enquanto espécimes humanos. Eu esperava, em minha vaga antecipação daquela noite, que suas amigas fossem falantes, risonhas e avoadas como ela. Mas Diandra e Samara eram sérias, cada uma a seu modo.

As três tinham estudado juntas durante todo ensino primário, numa escola particular católica na zona leste. Eram melhores amigas desde a sétima série, quando a pré-adolescência começou a definir suas personalidades de preferências. Da escola traziam ainda amizades com um grupo de garotos, a quem se referiram bastante durante a noite. Um deles tinha tentado suicídio alguns meses antes, e ainda preocupava os amigos. Elas trocavam notícias recentes sobre esse rapaz, Diego, e seu amigo mais próximo, Murilo. Pelo que entendi, os dois tinham temperamento artístico e um histórico um pouco desajustado entre os outros colegas da escola. Samara e Diandra se sentiam especialmente ligadas a eles, admiravam e compartilhavam esse desajuste, um certo desprezo pelas ambições convencionais dos outros alunos. Samara foi apaixonada pelo garoto que tentou se matar. Eles ficaram algumas vezes ainda no colégio, mas não evoluiu porque o rapaz tinha uma fixação não correspondida por Diandra. Murilo era o contrário do amigo depressivo. Paquerador e um pouco cafajeste, depois de um tempo de conversa entendi que as três já tinham transado com ele.

Foi um pouco cansativo passar duas horas ouvindo esse debate sobre dramas do passado das três. Elas falavam um tanto passionais entre elas, depois se davam conta da minha presença e me explicavam um pouco do contexto. Mas parecia ao mesmo tempo que, principalmente Janaína, se exibia um pouco para mim, mostrando como ela e as amigas eram diferentes e profundas. Eu ouvia e as observava com certa distância, mas apesar dessa defesa o fascínio funcionava e eu gradualmente me seduzia por aquele universo."


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