sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Graciliano pai, o jornalismo e a publicidade

Trecho de Graciliano: retrato fragmentado, livro de memória de Ricardo Ramos (também escritor e comunista) sobre o pai.

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"Um dos seus moldes, entretanto, me confundiu bastante durante anos, tanto que o aceitei como verdadeiro, quase emblema pessoal. Ensimesmado, sim, à margem das mais corriqueiras referências ao redor. E principalmente quanto a dinheiro. Nesse capítulo, se não deixava de ser metódico (ia à Caixa Econômica diariamente, sacando só para as imediatas despesas miúdas), mostrava-se incapaz, desamparado, nada prático. Um homem perdido, atarantado a tropeçar nele mesmo.

Era o que eu pensava, confesso que admirando. Ele dava importância ao seu trabalho e mandava o resto para o inferno. Se de normal aceitamos ganhar dinheiro como prioridade, ou pelo menos interesse, por que não admitir a contramão?

Vim assim, afeito ao que tomavam por esquisitice de meu pai, até 1951. Eu havia gramado um ano de Exército, conseguira me manter na faculdade às custas de meu irmão Márcio, odiava a ideia de voltar a jornal, trabalhar em um, dois, três, para ganhar aquela miséria. (...) Uma encruzilhada. Aí desabafei com o Velho:

- Só volto a jornal amarrado.

E passei em revista meus problemas, pai é para essas coisas. Ele sentiu o casamento adiado, comentou, jornalismo não dava nem quarto de pensão no Catete. Já viu? Pioramos, ninguém se iluda. E quando eu imaginava que ficaríamos por ali, chorando as mágoas, ele me perguntou:

- Por que você não tenta propaganda?
- O quê?
- Propaganda. Isso de anúncio. Tem muito amigo fazendo. Homem, que ideia! Capaz de dar certo. Se quiser, e pagam bem, pode ser uma solução. Procure Emil Farhat, na McCann. Ou Orígenes Lessa, na Thompson. São meus camaradas, diga que é meu filho. Eles atendem.

Espantado, calei-me. Os nomes e firmas, português e inglês, prontamente. Interpretou mal o silêncio:

- Você tem problemas com empresa americana?
- Eu? Meu problema é dinheiro.
- Então, vá."

(em "Graciliano: retrato fragmentado", de Ricardo Ramos. Editora Globo, 2011, p. 154)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Jardim Adalgisa, Osasco

Há dois anos tenho pensado em fazer uma história em quadrinhos. A ideia só fica mais forte, e cria seus contornos. No início pensei em trabalhar com um desenhista, agora decidi desenhar eu mesma.

Não sei desenhar, mas até os 13 anos desenhava, era meu sonho fazer quadrinhos. Nessa idade conheci uma amiga e, por algum motivo, considerei que ela desenhava melhor que eu. Parei e a partir de então só escrevi.

Depois de anos escrevendo, percebo os limites do texto. Coisas que a expressão verbal não traduz, parecendo forçadas as tentativas.

Espaços, vazios, registros documentais.

O exercício sensorial paralelo ao mundo verbal.

Além disso, os quadrinhos são traduzíveis. Com menos texto, é possível fazer versão em outras línguas sem muito custo.

Desenhar é descansar e brincar, escrever raramente é.

Começando a organizar os espaços, procurei imagens de casas e interiores em Osasco, cidade de nascimento da minha personagem.

Desenhar a partir de fotos, quadrinhos documentais.



sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Tese depositada

No dia seguinte, Marta chega ao crematório e “os moradores do prédio já estão esperando, espalhados pelas laterais do edifício”. Ela caminha e “todos acompanham, formando uma espécie de procissão”. Todos se reúnem em torno do lugar onde surgirá o caixão, elevado quando o padre aperta um botão. “A tampa do elevador começa a se abrir. Lentamente, o caixão do filho de Marta sobe até ficar no meio de todos”.

Em seguida, serão três páginas de roteiro, alternando o discurso do padre, os rostos em close dos moradores, e imagens de crianças, algumas correndo, outras representando cenas da lembrança dos personagens.

O discurso do padre é uma passagem literal do Evangelho de João, capítulo 11, que descreve cenas de Jesus na aldeia de Betânia, onde estava o doente Lázaro, irmão de suas seguidoras Marta e Maria. O texto bíblico descreve cenas estranhas. Jesus ficou dois dias acompanhando o enfermo na aldeia, depois decidiu partir para a Judéia. Na Judéia, sentiu que Lázaro havia morrido, e anunciou aos discípulos que voltaria para despertá-lo do sono. Chegando novamente na aldeia, é recebido por Marta, que tem com ele o diálogo citado no roteiro. Marta chama sua irmã Maria, e as duas levam Jesus à sepultura de Lázaro, morto há quatro dias. É uma caverna coberta de pedras. Jesus manda tirar as pedras, e ordena que Lázaro saia. O defunto aparece com o rosto, mãos e pés enrolados em faixas.

O trecho citado no roteiro é este:

"Naquele tempo, Marta disse a Jesus: Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não estaria morto! E, no entanto, eu sei, tudo que pedires a Deus, Deus te concederá! Jesus lhe disse: Teu irmão ressuscitará! Marta lhe disse: Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição do último dia. Jesus lhe disse: Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, mesmo se houver morrido viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá para sempre. Crês nisto? Marta respondeu: Sim, ó Senhor, eu creio que tu és o Messias, o Filho de Deus vivo, aquele que deve vir a este mundo." (ANDRADE, 1976b, cap. 134)

O trecho é citado nessa ordem, exatamente, dividido por seis falas ao longo de três páginas.
O discurso do padre se encerra, ao fim da cena, com uma passagem do capítulo 12 do Evangelho de João: “Chegou a hora em que o Filho do homem deve ser glorificado. Em verdade, em verdade, eu vos digo: se o grão de trigo não cai na terra e não morre, ele fica sozinho; mas, se morre, produzirá muito fruto”. Tais frases vêm de um discurso de Jesus ao chegar a Jerusalém, acompanhado de Lázaro ressuscitado. A multidão vem encontrá-lo, tendo ouvido sobre o milagre. Entre as pessoas há alguns gregos, e Jesus comenta, ao ouvir a notícia de sua presença: “Chegou a hora em que o Filho do homem deve ser glorificado”.

Mesmo sem conhecimento de estudos bíblicos, a interpretação dessa passagem sugere que Jesus reconhece o efeito da ressurreição de Lázaro: é por isso que a multidão se aproxima, para ver o homem milagroso que faz reviver os mortos. A partir dessa constatação, Jesus concluiria que é preciso sacrificar a vida terrena, pois o sacrifício atrai seguidores (ouvinte, público): “Quem ama sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo odeia a sua vida, guarda-la-á para a vida eterna” .
Jesus, como Jorge Andrade, sabe que a multidão gosta de sangue. Numa estratégia engenhosa, ele oferece o próprio sangue (oferece-se aos carrascos, provoca a própria morte) para chamar atenção à sua mensagem de paz.

Jorge Andrade resgata com solenidade esse mito cristão, para celebrar o fim de sua novela. Também são trechos da bíblia relacionados a temas recorrentes em sua obra: uma cena de cadáver, e um voto de sacrifício.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Revista Lado7

Sai pela 7Letras o número três da revista Lado7. Com poemas de Heitor Ferraz Mello e um conto meu, "Lésbicas procuram apartamento".


TRECHO DO CONTO:

"Nós precisávamos de um lugar. Fazia três meses que eu estava na república das enfermeiras e já tinha percebido que não ia rolar. Elas não eram virgens nem nada, traziam às vezes namorados para dormir na sala, mas namorados normais, enfim, eu não ia criar toda uma discussão filosófica e acabar despejada. A empregada da Rafaela ainda não havia nos denunciado, mas até quando? Saíamos da aula no fim da manhã, entrávamos no apartamento, trancadas no quarto o dia inteiro escapando eventualmente pra buscar comida na cozinha. No fim da tarde ligávamos o chuveiro, aparecíamos limpinhas e lavadas pra assistir a novela das seis. Tão inocente. A empregada já estava me olhando torto, era crente, não ia tolerar a safadeza. Rafaela queria que eu alugasse um apartamento só pra mim.

- Está louca? Com que dinheiro?
- Eu te ajudo - ela dizia.

Eu não ia assinar um contrato e depender do dinheiro dela. Apesar de nosso entusiasmo, eu considerava importante manter as portas desobstruídas e sinalizadas com barras antipânico. Tínhamos que encontrar algo que eu pudesse pagar sozinha, o que não era fácil. Sendo realista, nada fácil mesmo."