No dia seguinte, Marta chega ao crematório e “os moradores do prédio já estão esperando, espalhados pelas laterais do edifício”. Ela caminha e “todos acompanham, formando uma espécie de procissão”. Todos se reúnem em torno do lugar onde surgirá o caixão, elevado quando o padre aperta um botão. “A tampa do elevador começa a se abrir. Lentamente, o caixão do filho de Marta sobe até ficar no meio de todos”.
Em seguida, serão três páginas de roteiro, alternando o discurso do padre, os rostos em close dos moradores, e imagens de crianças, algumas correndo, outras representando cenas da lembrança dos personagens.
O discurso do padre é uma passagem literal do Evangelho de João, capítulo 11, que descreve cenas de Jesus na aldeia de Betânia, onde estava o doente Lázaro, irmão de suas seguidoras Marta e Maria. O texto bíblico descreve cenas estranhas. Jesus ficou dois dias acompanhando o enfermo na aldeia, depois decidiu partir para a Judéia. Na Judéia, sentiu que Lázaro havia morrido, e anunciou aos discípulos que voltaria para despertá-lo do sono. Chegando novamente na aldeia, é recebido por Marta, que tem com ele o diálogo citado no roteiro. Marta chama sua irmã Maria, e as duas levam Jesus à sepultura de Lázaro, morto há quatro dias. É uma caverna coberta de pedras. Jesus manda tirar as pedras, e ordena que Lázaro saia. O defunto aparece com o rosto, mãos e pés enrolados em faixas.
O trecho citado no roteiro é este:
"Naquele tempo, Marta disse a Jesus: Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não estaria morto! E, no entanto, eu sei, tudo que pedires a Deus, Deus te concederá! Jesus lhe disse: Teu irmão ressuscitará! Marta lhe disse: Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição do último dia. Jesus lhe disse: Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, mesmo se houver morrido viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá para sempre. Crês nisto? Marta respondeu: Sim, ó Senhor, eu creio que tu és o Messias, o Filho de Deus vivo, aquele que deve vir a este mundo." (ANDRADE, 1976b, cap. 134)
O trecho é citado nessa ordem, exatamente, dividido por seis falas ao longo de três páginas.
O discurso do padre se encerra, ao fim da cena, com uma passagem do capítulo 12 do Evangelho de João: “Chegou a hora em que o Filho do homem deve ser glorificado. Em verdade, em verdade, eu vos digo: se o grão de trigo não cai na terra e não morre, ele fica sozinho; mas, se morre, produzirá muito fruto”. Tais frases vêm de um discurso de Jesus ao chegar a Jerusalém, acompanhado de Lázaro ressuscitado. A multidão vem encontrá-lo, tendo ouvido sobre o milagre. Entre as pessoas há alguns gregos, e Jesus comenta, ao ouvir a notícia de sua presença: “Chegou a hora em que o Filho do homem deve ser glorificado”.
Mesmo sem conhecimento de estudos bíblicos, a interpretação dessa passagem sugere que Jesus reconhece o efeito da ressurreição de Lázaro: é por isso que a multidão se aproxima, para ver o homem milagroso que faz reviver os mortos. A partir dessa constatação, Jesus concluiria que é preciso sacrificar a vida terrena, pois o sacrifício atrai seguidores (ouvinte, público): “Quem ama sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo odeia a sua vida, guarda-la-á para a vida eterna” .
Jesus, como Jorge Andrade, sabe que a multidão gosta de sangue. Numa estratégia engenhosa, ele oferece o próprio sangue (oferece-se aos carrascos, provoca a própria morte) para chamar atenção à sua mensagem de paz.
Jorge Andrade resgata com solenidade esse mito cristão, para celebrar o fim de sua novela. Também são trechos da bíblia relacionados a temas recorrentes em sua obra: uma cena de cadáver, e um voto de sacrifício.
4 comentários:
Parabéns pelo seu trabalho tão instigante, Sabina!
Parabéns! Como diz um colega meu: "a ´¨nica tese que presta é a que está terminada."
Que interessante.
Parabéns! =)
Obrigada! =D
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