Trecho de Graciliano: retrato fragmentado, livro de memória de Ricardo Ramos (também escritor e comunista) sobre o pai.
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"Um dos seus moldes, entretanto, me confundiu bastante durante anos, tanto que o aceitei como verdadeiro, quase emblema pessoal. Ensimesmado, sim, à margem das mais corriqueiras referências ao redor. E principalmente quanto a dinheiro. Nesse capítulo, se não deixava de ser metódico (ia à Caixa Econômica diariamente, sacando só para as imediatas despesas miúdas), mostrava-se incapaz, desamparado, nada prático. Um homem perdido, atarantado a tropeçar nele mesmo.
Era o que eu pensava, confesso que admirando. Ele dava importância ao seu trabalho e mandava o resto para o inferno. Se de normal aceitamos ganhar dinheiro como prioridade, ou pelo menos interesse, por que não admitir a contramão?
Vim assim, afeito ao que tomavam por esquisitice de meu pai, até 1951. Eu havia gramado um ano de Exército, conseguira me manter na faculdade às custas de meu irmão Márcio, odiava a ideia de voltar a jornal, trabalhar em um, dois, três, para ganhar aquela miséria. (...) Uma encruzilhada. Aí desabafei com o Velho:
- Só volto a jornal amarrado.
E passei em revista meus problemas, pai é para essas coisas. Ele sentiu o casamento adiado, comentou, jornalismo não dava nem quarto de pensão no Catete. Já viu? Pioramos, ninguém se iluda. E quando eu imaginava que ficaríamos por ali, chorando as mágoas, ele me perguntou:
- Por que você não tenta propaganda?
- O quê?
- Propaganda. Isso de anúncio. Tem muito amigo fazendo. Homem, que ideia! Capaz de dar certo. Se quiser, e pagam bem, pode ser uma solução. Procure Emil Farhat, na McCann. Ou Orígenes Lessa, na Thompson. São meus camaradas, diga que é meu filho. Eles atendem.
Espantado, calei-me. Os nomes e firmas, português e inglês, prontamente. Interpretou mal o silêncio:
- Você tem problemas com empresa americana?
- Eu? Meu problema é dinheiro.
- Então, vá."
(em "Graciliano: retrato fragmentado", de Ricardo Ramos. Editora Globo, 2011, p. 154)
3 comentários:
Qto mais eu conheço do Graciliano, mais eu o admiro.
Você já leu esse livro? Foi reeditado recentemente. É maravilhoso como o filho relata as lembranças esparsas de Graciliano.
Vou dar uma conferida, deve ter aqui na biblioteca. Estou gostando muito do seu livro, que tenho lido no tempo livre que eu não tenho... ;)
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