Escrever o que é subjetivo: um problema.
A linguagem se ajusta bem ao que é simples: coisas e ações visíveis. Uma palavra que descreve o abstrato é uma descoberta cognitiva. Muitas coisas não existem antes da palavra existir.
Mas quem tem paciência para isso? Vou e venho entre meu encanto pelo mundo da percepção, e meu medo de escrever o que não interesse a ninguém.
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No conto Uma história ao modo quase clássico, o narrador lembra de sua adolescência, filho adotivo de um casal divorciado. A mãe tem câncer e despeja sobre ele (único restante ao seu lado) toda frustração, dor física e amargura.
A mãe repete: "Você não entende o que eu sinto.", "Você não imagina o que é estar na minha pele." Chavões de psicologia barata, chantagem sentimental. Mas, acuado, o garoto decide que é o único caminho. Realmente - concretamente - imaginar como seria estar na pele da mãe.
Ele vai para um bosque nos limites da cidade e, sozinho, começa a imaginar. De início, parece difícil demais se imaginar como uma mulher de meia idade. Então ele começa como uma jovem.
"De supetão, imaginei-me uma garota, uma da minha idade; era uma façanha dúbia, muito peculiar - evidentemente sentia um medo mortal ao fazer isso. Mas fiz umas duas vezes sem dar tempo para o que eu era como menina: apenas executava o feito, entrava e saía daquilo. Então, impelido pela confiança, parei e fui uma garota por um segundo, mas era tão aniquilador, tão chocante, que não pude aguentar. Fiquei enojado. O sentimento de obliteração, de castração era perturbador como o diabo.
Tinha mais de uma vez me imaginado com seios. Outros meninos e eu discutíramos como deveria ser possuí-los: imitávamos a maneira de caminhar das garotas; púnhamos livros dentro de nossas camisetas para simular o peso. Mas não imaginava seios como parte de uma realidade física plena. Daí, repentinamente, quase como um tipo de excitação - bom, como uma insípida excitação feito a de escrever uma resposta à questão de um teste, desenvolvendo um esquema, uma estrutura, vendo algo encorpar - de repente entrevi quão tímido tinha sido diante da perspectiva física, e com uma ousadia que me pareceu inacreditável (e ao mesmo tempo me sentindo sujo, cheio de sujeira), imaginei meus quadris como ombros: dificilmente utilizava os quadris para o que quer que fosse; e meus ombros, que eram meio que o centro do equilíbrio de pressão para a maioria de meus movimentos e de minha força, como sendo os quadris. Senti um grande calor; estava ruborizado - e humilhado. Então, depois de pensar por um instante, quase cego de vergonha - e suor - pus meu traseiro no tórax. Daí golpeei minha coisa com presteza e removia-a por inteiro, movendo meu buraco para a virilha. Pensei que seria difícil levantar-me, caminhar, mexer-me; senti-me encoberto de embaraço, impropriedades, de transgressões que não quietavam, mas flutuavam feito véus; cada parte de mim era sexual e salientava-se de uma ou de outra forma. Eu de fato estava infinitamente constrangido - não tinha uma parte de mim que não fosse suja, que não fosse interferir nos pensamentos de alguém e fazer insinuações. Senti-me premido, prensado, amarrado àquilo, e numa carne extra. Viver requeria uma infinita impudência se eu fosse assim. E de repente me sentia de muito má índole... (É possível que me lembrasse de sonhos, de idéias que tivera em sonhos.)"
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(Quatro histórias ao modo quase clássico, Harold Broadkey. Ed. Imago, 1998. Tradução: Ruy Vasconcelos)
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