Dizem que existe uma "culpa da sobrevivência" nas pessoas que perdem alguém próximo. Morre um filho, os pais, um amor... o tempo passa e a pessoa realimenta a dor da perda num círculo vicioso, por culpa de esquecer. Esquecer seria uma traição ao vínculo passado.
A culpa, dizem os psicanalistas, é uma defesa contra acasos dolorosos. Ao assumir a responsabilidade que não teve, a pessoa sente o conforto do controle. Eu sofri, mas foi minha culpa. Ninguém fez isso: fui eu mesmo.
A teoria é ótima, mas o sentimento difuso da culpa nem sempre tem o carimbo: "sinto culpa".
A pessoa fica se perguntando: o que fiz de errado, o que poderia ter sido evitado... Parece uma racionalização das possibilidades perdidas, não culpa.
Mas é.
Sendo uma defesa contra a fragilidade passada, a culpa também age contra a felicidade futura.
Como posso ser feliz, depois de ter sofrido? Como esquecer meu pequeno eu, frágil e choroso, e substituí-lo por um outro eu feliz? Que ingratidão pelo passado, de que sou fruto e filho.
Abandonar o ninho.
É impossível crescer sem ferir os pais, dizem.
Há gente que se arrasta pela vida sem nunca dizer: não sou mais seu filho. Esqueça aquela criança que você amava e protegia, porque ela não existe mais: sou outro agora, se quiser me amar ou não, é sua escolha.
Mas os pais são pessoas reais: feri-los pode ser uma ingratidão real.
Nada disso ocorre com nossas fantasias de sofrimento. Elas podem ser decapitadas, empurradas de um precipício, jogadas aos tubarões. Assassinadas com frieza, sem consequências legais ou morais.
Abandonar num deserto, sem água ou comida, a memória dolorida que amamos e protegemos: pobrezinha, seu tempo acabou.
3 comentários:
Excelente o texto, Sabina. Eu sempre tinha pensado nesse assunto numa outra direção, talvez mais fatalista. Ironicamente é agora, como pai, que essas coisas de que você fala no seu texto fazem mais sentido. Dói ver os filhos crescerem, mas é preciso ter coragem e deixar-los ir!
mas teus filhos ainda são pequenos! pode segurar mais um pouco, =)
Que nada, Sabina, esse processo começa muito, muito cedo. Desde os três anos eles vão se descolando da gente devagarinho. Com dez anos meu filho já vive para brincar com os amigos e fazer as coisas dele. A gente tem que saber o lugar da gente e aceitar. E acho que muita gente não dá conta.
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