Houve uma época em que eu lia biografias e procurava reportagens sobre os artistas que admirava.
E como admirava Almodóvar... esse tropicalismo ríspido em espanhol. Seu primeiros filmes, feitos entre amigos, nos fins de semana, movida madrileña, eram o modelo que eu sugeria nos corredores da faculdade, aos dezoito anos.
Mas faltavam provavelmente os jovens desocupados, as bandas de rock e os travestis: alunos deprimidos, de pele embraquecida por falta de sol depois de enfrentar a Fuvest, não eram matéria-prima pra a movida no Butantã.
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
Papel, sabão e calças sujas
Talvez a preocupação com o lixo esteja me causando resfriados.
Há algum tempo parei de secar as mãos com toalhas de papel, na faculdade. Pensei: pra que gastar papel só para isso? Posso secar as mãos na calça. Não é muito elegante (aliás, NADA elegante), mas evita o desperdício de celulose.
Mas, paralelamente, tive uns quatro resfriados neste ano. Algo errado. Pensei em tomar vitaminas, rever minha alimentação... mas não houve nenhuma mudança tão radical nos meus hábitos alimentares que explicasse uma fragilidade de nutrientes.
Procurando na internet, entre várias dicas para evitar resfriados, uma delas me surpreende: lavar as mãos com sabonete, e usar toalhas descartáveis.
Penso: vou para a faculdade de metrô, expondo minhas calças a todos os tipos de germes. Depois lavo as mãos e enxugo... nas calças! Meu deus.
A consciência ecológica pode ser perigosa.
Há algum tempo parei de secar as mãos com toalhas de papel, na faculdade. Pensei: pra que gastar papel só para isso? Posso secar as mãos na calça. Não é muito elegante (aliás, NADA elegante), mas evita o desperdício de celulose.
Mas, paralelamente, tive uns quatro resfriados neste ano. Algo errado. Pensei em tomar vitaminas, rever minha alimentação... mas não houve nenhuma mudança tão radical nos meus hábitos alimentares que explicasse uma fragilidade de nutrientes.
Procurando na internet, entre várias dicas para evitar resfriados, uma delas me surpreende: lavar as mãos com sabonete, e usar toalhas descartáveis.
Penso: vou para a faculdade de metrô, expondo minhas calças a todos os tipos de germes. Depois lavo as mãos e enxugo... nas calças! Meu deus.
A consciência ecológica pode ser perigosa.
domingo, 18 de setembro de 2011
Janela miserável
Pelo blog de Antonio Cícero, lembrei de algumas canções napolitanas.
Fenesta vascia
Finestra bassa (o misera)
Fenesta vascia 'e padrona crudele,
quanta suspire mm'haje fatto jettare!...
Mm'arde stu core, comm'a na cannela,
bella, quanno te sento annommenare!
Oje piglia la 'sperienza de la neve!
La neve è fredda e se fa maniare...
e tu comme si' tanta aspra e crudele?!
Muorto mme vide e nun mme vuó' ajutare!?...
Vorría addeventare no picciuotto,
co na langella a ghire vennenn'acqua,
Pe' mme ne jí da’ chisti palazzuotte:
Belli ffemmene meje, ah! Chi vó' acqua...
Se vota na nennella da llá 'ncoppa:
Chi è 'sto ninno ca va vennenn'acqua?
E io responno, co parole accorte:
Só' lacreme d'ammore e non è acqua!...
Tradução a partir do italiano, segundo este link.
Janela baixa (ou miserável)
Janela baixa de uma dona cruel,
quantos suspiros me fez jogar fora.
Me arde o coração como uma vela,
bela, quando ouço teu nome.
Pois veja o exemplo da neve,
A neve é fria mas se deixa tocar.
Mas você, como é tão dura e cruel,
morto me vê e não quer me ajudar.
Queria virar um menino,
que com o jarro vende água,
e poder gritar entre essas casas:
"Ah, lindas senhoras, quem quer água?"
E aparece uma garota no alto:
"Quem é esse lindo rapaz que vende água?"
E respondo com poucas palavras:
"São lágrimas de amor, não é água".
Fenesta vascia
Finestra bassa (o misera)
Fenesta vascia 'e padrona crudele,
quanta suspire mm'haje fatto jettare!...
Mm'arde stu core, comm'a na cannela,
bella, quanno te sento annommenare!
Oje piglia la 'sperienza de la neve!
La neve è fredda e se fa maniare...
e tu comme si' tanta aspra e crudele?!
Muorto mme vide e nun mme vuó' ajutare!?...
Vorría addeventare no picciuotto,
co na langella a ghire vennenn'acqua,
Pe' mme ne jí da’ chisti palazzuotte:
Belli ffemmene meje, ah! Chi vó' acqua...
Se vota na nennella da llá 'ncoppa:
Chi è 'sto ninno ca va vennenn'acqua?
E io responno, co parole accorte:
Só' lacreme d'ammore e non è acqua!...
Tradução a partir do italiano, segundo este link.
Janela baixa (ou miserável)
Janela baixa de uma dona cruel,
quantos suspiros me fez jogar fora.
Me arde o coração como uma vela,
bela, quando ouço teu nome.
Pois veja o exemplo da neve,
A neve é fria mas se deixa tocar.
Mas você, como é tão dura e cruel,
morto me vê e não quer me ajudar.
Queria virar um menino,
que com o jarro vende água,
e poder gritar entre essas casas:
"Ah, lindas senhoras, quem quer água?"
E aparece uma garota no alto:
"Quem é esse lindo rapaz que vende água?"
E respondo com poucas palavras:
"São lágrimas de amor, não é água".
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
Oh, mother dear, we're not the fortunate ones
Desde minha separação, no começo do ano, tenho pensado muito em relações conjugais.
Quando eu era nova, minha preocupação era apenas "ter alguém". Eram as prioridades: (a) encontrar alguém que gostasse de mim; (b) que esse alguém fosse interessante. Eu nem mesmo precisava "gostar" realmente, desde que me sentisse segura (amada) por alguém aceitável conforme meus critérios flutuantes.
Depois de um primeiro namoro - por sugestão da minha avó materna, e pela experiência de conviver com alguém absolutamente caótico na vida prática - atualizei minhas prioridades, incluindo no item (b) o gosto pelo trabalho. Estavam riscados da minha lista quaisquer pretendentes irresponsáveis, preguiçosos, infantis na vida profissional.
Depois de alguns anos de análise - diante da insistência dos analistas no tema "desejo" - me dei conta da falha surpreendente: por que mesmo eu queria "ser gostada" em vez de "gostar"?
Era a essência da passividade sentimental, que eu suspeitava mas não podia detectar.
Para me defender frente aos analistas, eu argumentava que, sim, eu desejava alguma coisa: mas isso se manifestava nas entrelinhas das minhas escolhas.
Lembro claramente dos momentos em que me apaixonei pelos homens com quem convivi. Os cenários, as situações, os gestos marcantes.
No primeiro namorado, me comoveu a liberdade de se emocionar. O sentimento visível, profundo, exposto. Para uma mente matemática (a minha), foi encantador.
No segundo, a coragem mundana. A agressividade diante das coisas do mundo: relações, viagens, negócios. Para meu temperamento contemplativo, estimulante.
As fantasias sociais se esvaziam ao passar dos anos.
Lar, filhos, família? Hoje prefiro um índice muito baixo desses ingredientes. Um bafo de vermute no dry martini.
Uma amiga me diz: namorar é passear.
Tenho pensado nisso: o que é uma relação conjugal, pra quem não se interessa pelos principais acessórios da instituição casamento?
Compartilhar o tempo livre. Fazer coisas agradáveis nos intervalos que dispomos para escolher.
Tão anos 80. Cindy Lauper, Madonna, new wave, besteirol, la movida madrileña.
Quando eu era nova, minha preocupação era apenas "ter alguém". Eram as prioridades: (a) encontrar alguém que gostasse de mim; (b) que esse alguém fosse interessante. Eu nem mesmo precisava "gostar" realmente, desde que me sentisse segura (amada) por alguém aceitável conforme meus critérios flutuantes.
Depois de um primeiro namoro - por sugestão da minha avó materna, e pela experiência de conviver com alguém absolutamente caótico na vida prática - atualizei minhas prioridades, incluindo no item (b) o gosto pelo trabalho. Estavam riscados da minha lista quaisquer pretendentes irresponsáveis, preguiçosos, infantis na vida profissional.
Depois de alguns anos de análise - diante da insistência dos analistas no tema "desejo" - me dei conta da falha surpreendente: por que mesmo eu queria "ser gostada" em vez de "gostar"?
Era a essência da passividade sentimental, que eu suspeitava mas não podia detectar.
Para me defender frente aos analistas, eu argumentava que, sim, eu desejava alguma coisa: mas isso se manifestava nas entrelinhas das minhas escolhas.
Lembro claramente dos momentos em que me apaixonei pelos homens com quem convivi. Os cenários, as situações, os gestos marcantes.
No primeiro namorado, me comoveu a liberdade de se emocionar. O sentimento visível, profundo, exposto. Para uma mente matemática (a minha), foi encantador.
No segundo, a coragem mundana. A agressividade diante das coisas do mundo: relações, viagens, negócios. Para meu temperamento contemplativo, estimulante.
As fantasias sociais se esvaziam ao passar dos anos.
Lar, filhos, família? Hoje prefiro um índice muito baixo desses ingredientes. Um bafo de vermute no dry martini.
Uma amiga me diz: namorar é passear.
Tenho pensado nisso: o que é uma relação conjugal, pra quem não se interessa pelos principais acessórios da instituição casamento?
Compartilhar o tempo livre. Fazer coisas agradáveis nos intervalos que dispomos para escolher.
Tão anos 80. Cindy Lauper, Madonna, new wave, besteirol, la movida madrileña.
terça-feira, 13 de setembro de 2011
David Angell, por João Pereira Coutinho
(espero que não me considerem uma neoconservadora, por citar novamente sr. Coutinho)
Um nome entre milhares
(FSP, 13 set. 2011)
"Gostava de ser David Angell, dizia eu, anos atrás, quando assistia a "Frasier" na televisão. Admito que, para espíritos mais sofisticados, os ídolos sejam outros. Kafka. Borges. Talvez Saramago, o parente pobre dos dois.
Sou um rapaz modesto. David Angell chegava e sobrava.
Quem é Angell? Digamos apenas isto: encarnação moderna de Noel Coward na capacidade narcótica de escrever diálogos como Cole Porter escrevia canções. Não existe nada de cerebral na obra de Angell -por exemplo, um homem que acorda inseto e, sei lá, revela ao leitor a grotesca inadaptação do homem contemporâneo.
David Angell não é bicho de profundezas; é bicho de sutilezas. E as frases dele eram cinzeladas de tal forma que se diluíam no ar depois de escutadas. Puro prazer efêmero.
Basta assistir ao trabalho de Angell para televisão. Alguns especialistas citam "Archie Bunker's Place" e "Cheers" como exemplos maiores de uma pena maior.
Não nego. Quem não ri com as colocações do reacionário Archie Bunker deve analisar rapidamente o seu estado neurológico. O mesmo em relação a "Cheers", essa série de camaradagem etílica que quase fez de mim um alcoólatra feliz.
Mas a Capela Sistina é mesmo "Frasier" e sempre que posso volto a ela. Como voltei agora, nos dez anos dos atentados de 11 de Setembro. Coisa bizarra: o mundo repete o mesmo circo midiático sobre o horror -fotos, documentários, declarações, alguns delírios- e eu, deitado no sofá, com um sorriso de orelha a orelha, acompanhando as aventuras e desventuras do dr. Frasier Crane em Seattle. Terei desculpa?
Talvez tenha. Parafraseando a velha sabedoria judaica, se é verdade que salvar uma vida significa salvar a humanidade inteira, não deixa de ser igualmente verdade que relembrar uma vida é relembrar todas as outras.
Os fatos: se o avião da American Airlines onde David Angell viajava naquela manhã de setembro não tivesse batido contra a torre norte do World Trade Center, talvez não estivesse aqui assistindo a "Frasier".
Mas estou. Na contabilidade macabra do 11 de Setembro, temos números que nada dizem de essencial. O que são 3.000 vítimas quando nada sabemos de cada uma delas? A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística, dizia o camarada Stálin, que nesse particular sempre preferiu contribuir para as estatísticas.
Eu prefiro dar a minha contribuição para as tragédias. Como a morte de David Angell. Como a morte de cada vida inocente naquela manhã infame -vidas que David Angell retratou de forma magistral no seu trabalho.
Por isso "Frasier" merece ser visto e revisto. Não apenas para saborearmos -"saborear" é o verbo- o humor, a criatividade verbal, o espantoso ritmo de tramas e diálogos que a televisão americana nunca mais voltou a exibir.
Mas também porque acompanhar a vida de Frasier, psiquiatra e estrela radiofônica; as suas tempestuosas relações com o pai aposentado (e colega de casa); as suas competições profissionais e emocionais com o irmão Niles; as suas homéricas ilusões e desilusões amorosas -tudo isso é uma celebração gentil, urbana, por vezes absurda e absurdamente cômica, que sempre foi anátema para a mentalidade dos fanáticos.
O Ocidente é "Frasier": essa cultura de "perdão" e "ironia", como explicava o filósofo Roger Scruton tempos atrás. Uma cultura onde recusamos a literariedade do fundamentalismo para acomodarmos a imperfeição de que somos feitos. Para nos rirmos dela. E, pelo riso, para perdoarmos e nos perdoarmos a nós.
Sem "perdão" e "ironia", explicava Scruton, as liberdades da civilização ocidental teriam sido inalcançáveis. Como são inalcançáveis em culturas dominadas pela violência e pela intransigência de quem aplica comandos sagrados aos outros.
David Angell mostrou o que somos em cada episódio de "Frasier". E mostrou que a nossa salvação não está no martírio; está na ironia.
Lembrá-lo, nos dez anos do 11 de Setembro, não é apenas evocar uma das vítimas mais famosas daquela manhã.
É retirá-lo daquele avião funesto e permitir-lhe uma última gargalhada sobre o ódio e a escuridão."
- - -
OBS: Simpatizo com Frasier, mas não tanto assim. Já Cheers, adorava.
Um nome entre milhares
(FSP, 13 set. 2011)
"Gostava de ser David Angell, dizia eu, anos atrás, quando assistia a "Frasier" na televisão. Admito que, para espíritos mais sofisticados, os ídolos sejam outros. Kafka. Borges. Talvez Saramago, o parente pobre dos dois.
Sou um rapaz modesto. David Angell chegava e sobrava.
Quem é Angell? Digamos apenas isto: encarnação moderna de Noel Coward na capacidade narcótica de escrever diálogos como Cole Porter escrevia canções. Não existe nada de cerebral na obra de Angell -por exemplo, um homem que acorda inseto e, sei lá, revela ao leitor a grotesca inadaptação do homem contemporâneo.
David Angell não é bicho de profundezas; é bicho de sutilezas. E as frases dele eram cinzeladas de tal forma que se diluíam no ar depois de escutadas. Puro prazer efêmero.
Basta assistir ao trabalho de Angell para televisão. Alguns especialistas citam "Archie Bunker's Place" e "Cheers" como exemplos maiores de uma pena maior.
Não nego. Quem não ri com as colocações do reacionário Archie Bunker deve analisar rapidamente o seu estado neurológico. O mesmo em relação a "Cheers", essa série de camaradagem etílica que quase fez de mim um alcoólatra feliz.
Mas a Capela Sistina é mesmo "Frasier" e sempre que posso volto a ela. Como voltei agora, nos dez anos dos atentados de 11 de Setembro. Coisa bizarra: o mundo repete o mesmo circo midiático sobre o horror -fotos, documentários, declarações, alguns delírios- e eu, deitado no sofá, com um sorriso de orelha a orelha, acompanhando as aventuras e desventuras do dr. Frasier Crane em Seattle. Terei desculpa?
Talvez tenha. Parafraseando a velha sabedoria judaica, se é verdade que salvar uma vida significa salvar a humanidade inteira, não deixa de ser igualmente verdade que relembrar uma vida é relembrar todas as outras.
Os fatos: se o avião da American Airlines onde David Angell viajava naquela manhã de setembro não tivesse batido contra a torre norte do World Trade Center, talvez não estivesse aqui assistindo a "Frasier".
Mas estou. Na contabilidade macabra do 11 de Setembro, temos números que nada dizem de essencial. O que são 3.000 vítimas quando nada sabemos de cada uma delas? A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística, dizia o camarada Stálin, que nesse particular sempre preferiu contribuir para as estatísticas.
Eu prefiro dar a minha contribuição para as tragédias. Como a morte de David Angell. Como a morte de cada vida inocente naquela manhã infame -vidas que David Angell retratou de forma magistral no seu trabalho.
Por isso "Frasier" merece ser visto e revisto. Não apenas para saborearmos -"saborear" é o verbo- o humor, a criatividade verbal, o espantoso ritmo de tramas e diálogos que a televisão americana nunca mais voltou a exibir.
Mas também porque acompanhar a vida de Frasier, psiquiatra e estrela radiofônica; as suas tempestuosas relações com o pai aposentado (e colega de casa); as suas competições profissionais e emocionais com o irmão Niles; as suas homéricas ilusões e desilusões amorosas -tudo isso é uma celebração gentil, urbana, por vezes absurda e absurdamente cômica, que sempre foi anátema para a mentalidade dos fanáticos.
O Ocidente é "Frasier": essa cultura de "perdão" e "ironia", como explicava o filósofo Roger Scruton tempos atrás. Uma cultura onde recusamos a literariedade do fundamentalismo para acomodarmos a imperfeição de que somos feitos. Para nos rirmos dela. E, pelo riso, para perdoarmos e nos perdoarmos a nós.
Sem "perdão" e "ironia", explicava Scruton, as liberdades da civilização ocidental teriam sido inalcançáveis. Como são inalcançáveis em culturas dominadas pela violência e pela intransigência de quem aplica comandos sagrados aos outros.
David Angell mostrou o que somos em cada episódio de "Frasier". E mostrou que a nossa salvação não está no martírio; está na ironia.
Lembrá-lo, nos dez anos do 11 de Setembro, não é apenas evocar uma das vítimas mais famosas daquela manhã.
É retirá-lo daquele avião funesto e permitir-lhe uma última gargalhada sobre o ódio e a escuridão."
- - -
OBS: Simpatizo com Frasier, mas não tanto assim. Já Cheers, adorava.
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
A letra é de minha mulher
"Com o dinheiro que um dia você me deu, comprei uma cadeira na praça da Bandeira."
Canção linda, e lindo Itamar.
Canção linda, e lindo Itamar.
terça-feira, 6 de setembro de 2011
Homens de classe, de João Pereira Coutinho
O católico Waugh nunca entendeu como um ateu, como Orwell, defendeu posições morais absolutas
Esquerda, direita: há coisas mais importantes na vida. Vamos lendo, vamos vivendo. E então percebemos que a distinção fundamental não é entre esquerda e direita. Até porque existem várias esquerdas e várias direitas.
A diferença resume-se em duas palavras: liberdade individual. Ou estamos dispostos a ceder essa liberdade a um poder político único e centralizado; ou, simplesmente, não estamos.
Deve ser por isso que George Orwell tem lugar eterno na minha estante. Evelyn Waugh também. E, ao lado deles, prometo colocar um livro notável sobre ambos: "O Mesmo Homem" (Difel), de David Lebedoff. Chegou com três anos de atraso ao Brasil. Chegou a tempo. Lebedoff foi sagaz. Partiu de uma coincidência biográfica -o esquerdista Orwell e o conservador Waugh nasceram em 1 903- para mostrar como ambos foram, na verdade, "o mesmo homem". Confrontaram-se com os mesmos problemas da modernidade. Responderam a eles alicerçados na mesma posição moral.
Mas, antes dos problemas modernos, convém visitar um problema especificamente britânico. Anos atrás, em Oxford, um velho professor dizia-me que não havia nada mais cruel do que ter nascido na classe média antes da Segunda Guerra Mundial. Era o caso dele. Numa sociedade rigidamente estratificada, como a inglesa, habitar o meio da tabela era levar por tabela. Era viver na angústia de poder cair no fundo da ladeira. Era viver na angústia de desejar subir até ao topo.
Orwell e Waugh, produtos do meio, experimentaram pressões dos extremos. Responderam a eles como Disraeli e Marx, numa interpretação de Isaiah Berlin, responderam ao seu judaísmo um século antes: procurando suplantar o "defeito" de origem pela identificação com os de cima (aristocracia) e os de baixo (proletariado).
Para Orwell, os anos de terror na "escola pública" ("pública", na Inglaterra, significa "privada") imprimiram-lhe um sentido inapagável de marginalização e injustiça que definiu um percurso: o percurso descendente de quem prefere descer a escala social para lhe roubar todos os seus terrores. O estoicismo de Orwell; a sua pobreza autoimposta; o seu recuo estratégico para as favelas de Paris ou Londres são marcas de uma opção. A opção pela queda.
Evelyn Waugh optou pela ascensão: se existia o mesmo "pecado de classe", era necessário redimi-lo casando bem e vivendo melhor. Waugh agiu em conformidade e, ainda antes dos 40, era a encarnação perfeita, alguns dirão caricatural, do "squire" inglês. David Lebedoff narra com mestria a história desses percursos. Mas o melhor do livro está nas aproximações entre eles: na forma como Orwell, a partir de baixo, e Waugh, a partir de cima, foram respondendo aos desafios sombrios do tempo.
E respondendo de igual forma: não apenas elegendo a literatura, e a clareza inegociável da língua inglesa, como instrumento de reflexão e transformação social. Mas vislumbrando na modernidade a presença insidiosa do relativismo moral -uma sombra de irracionalismo que, ao viciar o pensamento (e até a linguagem), permitia o abandono de um sentido primordial de decência comum e abria as portas para os totalitarismos do século 20.
George Orwell acabaria por morrer em 1950. Tinha 46 anos. E, meses antes do fim, receberia no hospital a visita de Evelyn Waugh. Sabemos pouco sobre o conteúdo dessa visita -e Lebedoff não acrescenta muito. Daria o meu dedo mindinho para recuar no tempo e ser uma mosca no quarto daquele hospital de Londres.
Mas sabemos que ela foi antecedida por cartas de admiração mútua. Verdade: o católico Waugh nunca entendeu como era possível a um ateu, como Orwell, defender posições morais absolutas.
Mas o mistério talvez se possa resolver com uma suprema ironia: o fato de Orwell e Waugh terem abandonado a "classe média" não significa que a "classe média" os tenha abandonado a eles.
No gosto de ambos pela moderação e pela prudência; e na defesa "burguesa" da liberdade individual face aos autoritarismos dos extremos, Orwell e Waugh não foram apenas "o mesmo homem"; foram também esse homem que, depois de todas as viagens, nunca realmente saiu do mesmo lugar.
(FSP, 6/9/11)
Esquerda, direita: há coisas mais importantes na vida. Vamos lendo, vamos vivendo. E então percebemos que a distinção fundamental não é entre esquerda e direita. Até porque existem várias esquerdas e várias direitas.
A diferença resume-se em duas palavras: liberdade individual. Ou estamos dispostos a ceder essa liberdade a um poder político único e centralizado; ou, simplesmente, não estamos.
Deve ser por isso que George Orwell tem lugar eterno na minha estante. Evelyn Waugh também. E, ao lado deles, prometo colocar um livro notável sobre ambos: "O Mesmo Homem" (Difel), de David Lebedoff. Chegou com três anos de atraso ao Brasil. Chegou a tempo. Lebedoff foi sagaz. Partiu de uma coincidência biográfica -o esquerdista Orwell e o conservador Waugh nasceram em 1 903- para mostrar como ambos foram, na verdade, "o mesmo homem". Confrontaram-se com os mesmos problemas da modernidade. Responderam a eles alicerçados na mesma posição moral.
Mas, antes dos problemas modernos, convém visitar um problema especificamente britânico. Anos atrás, em Oxford, um velho professor dizia-me que não havia nada mais cruel do que ter nascido na classe média antes da Segunda Guerra Mundial. Era o caso dele. Numa sociedade rigidamente estratificada, como a inglesa, habitar o meio da tabela era levar por tabela. Era viver na angústia de poder cair no fundo da ladeira. Era viver na angústia de desejar subir até ao topo.
Orwell e Waugh, produtos do meio, experimentaram pressões dos extremos. Responderam a eles como Disraeli e Marx, numa interpretação de Isaiah Berlin, responderam ao seu judaísmo um século antes: procurando suplantar o "defeito" de origem pela identificação com os de cima (aristocracia) e os de baixo (proletariado).
Para Orwell, os anos de terror na "escola pública" ("pública", na Inglaterra, significa "privada") imprimiram-lhe um sentido inapagável de marginalização e injustiça que definiu um percurso: o percurso descendente de quem prefere descer a escala social para lhe roubar todos os seus terrores. O estoicismo de Orwell; a sua pobreza autoimposta; o seu recuo estratégico para as favelas de Paris ou Londres são marcas de uma opção. A opção pela queda.
Evelyn Waugh optou pela ascensão: se existia o mesmo "pecado de classe", era necessário redimi-lo casando bem e vivendo melhor. Waugh agiu em conformidade e, ainda antes dos 40, era a encarnação perfeita, alguns dirão caricatural, do "squire" inglês. David Lebedoff narra com mestria a história desses percursos. Mas o melhor do livro está nas aproximações entre eles: na forma como Orwell, a partir de baixo, e Waugh, a partir de cima, foram respondendo aos desafios sombrios do tempo.
E respondendo de igual forma: não apenas elegendo a literatura, e a clareza inegociável da língua inglesa, como instrumento de reflexão e transformação social. Mas vislumbrando na modernidade a presença insidiosa do relativismo moral -uma sombra de irracionalismo que, ao viciar o pensamento (e até a linguagem), permitia o abandono de um sentido primordial de decência comum e abria as portas para os totalitarismos do século 20.
George Orwell acabaria por morrer em 1950. Tinha 46 anos. E, meses antes do fim, receberia no hospital a visita de Evelyn Waugh. Sabemos pouco sobre o conteúdo dessa visita -e Lebedoff não acrescenta muito. Daria o meu dedo mindinho para recuar no tempo e ser uma mosca no quarto daquele hospital de Londres.
Mas sabemos que ela foi antecedida por cartas de admiração mútua. Verdade: o católico Waugh nunca entendeu como era possível a um ateu, como Orwell, defender posições morais absolutas.
Mas o mistério talvez se possa resolver com uma suprema ironia: o fato de Orwell e Waugh terem abandonado a "classe média" não significa que a "classe média" os tenha abandonado a eles.
No gosto de ambos pela moderação e pela prudência; e na defesa "burguesa" da liberdade individual face aos autoritarismos dos extremos, Orwell e Waugh não foram apenas "o mesmo homem"; foram também esse homem que, depois de todas as viagens, nunca realmente saiu do mesmo lugar.
(FSP, 6/9/11)
domingo, 4 de setembro de 2011
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
Verniz cultural
É difícil pronunciar nomes de autores estrangeiros.
Estudei algumas línguas estrangeiras na adolescência, mas as dúvidas continuam.
Peter Handke, autor austríaco, deveria ser pronunciado provavelmente assim: pê-tâ hând-kê. Mas ficaria cabotino, e escolho a pronúncia em inglês, arbitrária. Por que dizer píter seria mais correto que péter ou pêter? Ambas igualmente distantes da pronúncia original. Abrasileirar é caipira, então americanizamos.
E as autoras americanas? Alison Bechdel. Lembrando as aulas de alemão, imaginei a pronúncia Bék-déu (em alemão seria bérr-déu). Conversando com uma estudante de Miami, eu disse baixinho, envorganhada. Ela compreendeu: "Ah, Betch-déu".
Mas o Google Tradutor traz outra pronúncia.
- - -
Minha mãe dizia a seus alunos, a respeito de nomes estrangeiros: "Se não querem estudar línguas, ao menos aprendam o básico, pra ter algum verniz cultural."
Mas o que é mais cafona? Dizer co-pó-la ou có-po-la? Iu-túbe ou iu-tíube? Wikipédia ou wikipidia?
Meu verniz cultural não é suficientemente impermeável.
Estudei algumas línguas estrangeiras na adolescência, mas as dúvidas continuam.
Peter Handke, autor austríaco, deveria ser pronunciado provavelmente assim: pê-tâ hând-kê. Mas ficaria cabotino, e escolho a pronúncia em inglês, arbitrária. Por que dizer píter seria mais correto que péter ou pêter? Ambas igualmente distantes da pronúncia original. Abrasileirar é caipira, então americanizamos.
E as autoras americanas? Alison Bechdel. Lembrando as aulas de alemão, imaginei a pronúncia Bék-déu (em alemão seria bérr-déu). Conversando com uma estudante de Miami, eu disse baixinho, envorganhada. Ela compreendeu: "Ah, Betch-déu".
Mas o Google Tradutor traz outra pronúncia.
- - -
Minha mãe dizia a seus alunos, a respeito de nomes estrangeiros: "Se não querem estudar línguas, ao menos aprendam o básico, pra ter algum verniz cultural."
Mas o que é mais cafona? Dizer co-pó-la ou có-po-la? Iu-túbe ou iu-tíube? Wikipédia ou wikipidia?
Meu verniz cultural não é suficientemente impermeável.
quinta-feira, 1 de setembro de 2011
Poemas que eu amava na adolescência
LIBERDADE
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por Dom Sebastião,
Quer venha ou não!
QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por Dom Sebastião,
Quer venha ou não!
QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
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