"Atrás do nosso prédio, depois do gramado dos fundos, ficava o muro da escola estadual. Ninguém mais do condomínio estudava ali, apenas Juliana e Aramis. Era um muro alto e, quando estávamos no jardim, não se via o outro lado. Só se ouvia o sinal, na hora da entrada, no intervalo, na saída. Era uma campainha alta que soava por todo o condomínio.
Da janela da despensa, por trás de uma árvore, eu podia ver o pátio. Tinha uma quadra com traves sem rede, uma tabela de basquete quebrada. Calçada de cimento, o prédio com pintura descascada e janelas basculantes. Alguns vidros estavam quebrados e sobravam lascas na esquadria de ferro.
Havia aulas à noite. O pátio ficava invisível e a luz marcava os alunos por trás das janelas. Na despensa, eu observava o interior das salas. As cadeiras eram voltadas na minha direção, eu via todos os corpos juntos, olhando um professor que eu não enxergava, escondido pela parede. Tinha medo mas não parava de olhar. Eles não eram crianças nem adultos. Teriam talvez quinze anos mas não os mesmos quinze anos dos alunos da minha escola. Eram velhos em outro sentido que eu não sabia identificar e me parecia perigoso."
2 comentários:
Esse trecho sempre me lembra um semi movimento que fiz quando estava na oitava série e, no dia da internacional solidariedade, minha escola pública foi visitada por uma comitiva dos "melhores" alunos da única escola particular da cidade. Meu discurso foi que considerar a simples presença daquelas pessoas um ato de caridade era o mesmo que nos considerar inferiores e a presença deles uma espécie de iluminação. Convenci meus colegas que aquilo não podia acontecer sem nossos protestos e a professora ficou espantada com a minha revolta. rs...
Outra lembrança que me vem à mente é de quando fui chamada pra uma entrevista para a escolha de estagiários num banco dessa mesma minha antiga cidade. A diretora da escola pública (que tb era vice na escola particular) foi quem indicou todo mundo que participaria da entrevista e eu era a única aluna da escola pública presente. O gerente do banco perguntou como que já afirmando se eu estudava no colégio. Informalmente, na cidade, 'colégio' era o termo usado para identificar a escola particular e 'escola' para identificar a pública. Eu estava no terceiro ano do Ensino Médio, estudando pra vestibular, com a cabeça toda voltada para o exterior daquele mundo, então esqueci desse detalhe e disse que sim, que eu estudava no colégio. Daí vi ele marcar um quadrinho e sorrir. Quando percebi meu erro, corrigi e vi ele mudar a expressão e apagar o x do quadrinho para refazê-lo em outro. Depois disso,a moça contratada, obviamente, estudava no colégio.
Nossa, Tata, que história. Incrível também sua percepção dos detalhes.
No livro eu tentei narrar essa sensação do ponto de vista de quem exclui, porque acho isso menos explorado na literatura brasileira. Em geral os escritores (de origem pobre ou não) falam dos excluídos sem esmuiuçar como acontece a exclusão (do ponto de vista emocional e subjetivo).
Mas escrevi de modo muito discreto, eu acho... sei lá, as pessoas me dizem que o livro é "delicado", então imagino que disfarcei tanto a violência que precisaria de um olhar muito atento (ou seja, raro) pra perceber.
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