* contribuindo com os Diários do Paulo
"Havia duas crianças negras no condomínio: Juliana e Aramis. Os meninos não gostavam de Aramis porque ele usava kichutes. Era um tênis barato e as crianças não gostavam de coisas baratas. Quando o provocavam, ele reagia com raiva e batia nos outros. Uma vez mordeu um menino e começaram a chamá-lo de Canibal.
(...)
Juliana nunca saía para brincar. Na janela da lavanderia aparecia pouco e rápido. Era magra: eu imaginava que fosse um ano mais velha, porque tinha seios pequenos. Usava os cabelos sempre presos num coque. Eu ouvia dizer que ela era filha só da mulher, não do Damasceno, mas não era claro pra mim como isso teria acontecido. Eu ainda não relacionava informações recentes sobre o ato sexual e a condição civil das pessoas. Identificava em teoria algumas etapas do processo, mas estava apegada a uma explicação que minha mãe dera quando eu era bem pequena. Havia perguntado se era possível ter filho antes de casar. Eu era criança, estava preocupada com a ordem das coisas: queria saber se uma ação precisava necessariamente vir antes da outra. Ela disse que não: não era possível ter filhos antes de casar. Sua resposta, a julgar por seu comportamento habitual, era de natureza mais preventiva que moral, mas eu não tinha como avaliar.
Sempre que descia ao jardim eu via as janelas do apartamento de Juliana, que ficavam ao nível do gramado. Durante o dia a luz do sol refletia nos vidros e eu não conseguia enxergar o que havia dentro. Apenas quando estava nublado eu via partes de uma estante escura, com fileiras de livros de capas vermelhas, todos do mesmo tom e altura. Eu olhava apenas um momento, esperando que nesse rápido olhar, que podia ser interpretado como casual, eu pudesse enxergar o que faziam. Depois sentia medo que percebessem e seguia em frente.
Às vezes cruzava Juliana na calçada do condomínio, quando voltávamos da escola. Via-a sempre quieta, de olhos baixos, carregando sua pasta. Nos cumprimentávamos com um aceno de cabeça mas nunca nos falávamos. Eu via seu jeito quieto e solitário mas não considerava que fossem atributos seus, da mesma maneira que reconhecia, em Paula, a timidez como uma qualidade. No caso de Juliana me parecia que seu comportamento tinha uma causa; ela não poderia agir de modo diferente, sendo quem era, sua família, sua diferença em relação ao condomínio. O silêncio parecia a única reação possível para ela, assim como, em Aramis, a violência era a única possibilidade diante da provocação dos outros. Eu nunca pensava em me aproximar; quando cruzava com ela, diante de seu silêncio, de seus olhos baixos e seu cabelo preso, minha reação habitual era sentir por um instante uma vergonha, a mesma vergonha que eu imaginava ser dela. Durante um momento me encontrava num vazio, frente àquele isolamento, sua pobreza. Depois que ela se afastava, eu ficava aliviada em ver o sentimento passar. Eu às vezes pensava nesses momentos que não éramos amigas só por causa das meninas do Colibri. Elas agiam assim, eu estava do lado delas, então fazia do mesmo modo - mas talvez, se morássemos sozinhas num lugar distante, se fôssemos apenas nós duas, eu gostaria de ser sua amiga. Eu até simpatizava com ela, pensava: se não conversávamos era por culpa dos outros, não por mim. A injustiça vinha de fora."
3 comentários:
Adorei o texto, Sabina. Me identifiquei em muitas coisas; acho que não é muito diferente da minha experiência em Belo Horizonte. Será coisa de vida na província ou será que era a infância pequeno-burguesa em Brasil de fim de ditadura militar? Bom, aí não sei, porque acho que sou mais velho que vc...
Fico feliz que você gostou. Quebrei a cabeça pra escrever esse último parágrafo... não é fácil descrever esse tipo de sensação.
É um desses textos que depois de pronto dá uma tristeza, porque o resultado final parece tão simples e não revela o trabalho que custou.
É para você ver que "O que é facíl de ler é difícil de escrever" como dizia Fernando Sabino.
O mesmo vale para aqueles roteiros do Jorge Furtado, ele deve penar para conseguir aquela fluência.
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