segunda-feira, 13 de junho de 2011

Pondé na Dinamarca

No dicionário Houaiss, há algumas explicações sobre a palavra orgulho.

1 - Sentimento de prazer, de grande satisfação sobre algo que é visto como alto, honrável, creditável de valor e honra; dignidade pessoal, altivez

2 -
Atitude moral ou psíquica que afasta o indivíduo de práticas desonestas ou desonrosas

3 -
Atitude prepotente ou de desprezo com relação aos outros; vaidade, insolência

É comum, nos debates ideológicos, que as pessoas sintam uma mistura de 2 e 3 pelo seu contrário. Por exemplo, se acho que o sr. Pondé demonstra uma misoginia antiquada, e considero isso uma "prática desonesta ou desonrosa", assumo "atitude de desprezo" em relação a ele.

(pensando bem, a misoginia do sr. Pondé não é desonesta; pelo contrário, é bastante clara)

Às vezes sou levada por esse tipo de orgulho, mas nem tanto. Para a versão adulta da criança educada como atéia desde muito pequena (eu) - com conhecimentos superficiais da filosofia ligada ao cristianismo - confesso que vejo muita verdade em certo pensamento cristão. Embora seja constrangedor admiti-lo, pois minha formação escolar associava o cristianismo à igreja católica e sua violenta história de poder, e as práticas políticas atuais demostram que o nome de Jesus Cristo é quase sempre usado pra justificar posições opressivas, egoístas e conservadoras.

Sr. Pondé hoje, na Folha de São Paulo:

- - -

LUIZ FELIPE PONDÉ

Meu irmão Kierkegaard


Somos um nada que ama. Tanto a angústia como o amor são "virtudes práticas" que demandam coragem

QUANDO VOCÊ estiver lendo esta coluna, estarei em Copenhague, Dinamarca, terra do filósofo Soren Kierkegaard (1813-1855), pai do existencialismo. Ao falarmos em existencialismo, pensamos em gente como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, tomando vinho em Paris, dizendo que a vida não tem sentido, fumando cigarros Gitanes.

O ancestral é Pascal, francês do século 17, para quem a alma vive numa luta entre o "ennui" (angústia, tédio) e o "divertissement" (divertimento, distração, este, um termo kierkegaardiano).
O filósofo dinamarquês afirma que nós somos "feitos de angústia" devido ao nada que nos constitui e à liberdade infinita que nos assusta.

A ideia é que a existência precede a essência, ou seja, tudo o que constitui nossa vida em termos de significado (a essência) é precedido pelo fato que existimos sem nenhum sentido a priori.
Como as pedras, existimos apenas. A diferença é que vivemos essa falta de sentido como "condenação à liberdade", justamente por sabermos que somos um nada que fala. A liberdade está enraizada tanto na indiferença da pedra, que nos banha a todos, quanto no infinito do nosso espírito diante de um Deus que não precisa de nós.

O filósofo alemão Kant (século 18) se encantava com o fato da existência de duas leis. A primeira, da mecânica newtoniana, por manter os corpos celestes em ordem no universo, e a segunda, a lei moral (para Kant, a moral é passível de ser justificada pela razão), por manter a ordem entre os seres humanos.

Eu, que sou uma alma mais sombria e mais cética, me encanto mais com outras duas "leis": o nada que nos constitui (na tradição do filósofo dinamarquês) e o amor de que somos capazes.
Somos um nada que ama.

A filosofia da existência é uma educação pela angústia. Uma vez que paramos de mentir sobre nosso vazio e encontramos nossa "verdade", ainda que dolorosa, nos abrimos para uma existência autêntica.

Deste "solo da existência" (o nada), tal como afirma o dinamarquês em seu livro "A Repetição", é possível brotar o verdadeiro amor, algo diferente da mera banalidade.

É conhecida sua teoria dos três estágios como modos de enfrentamento desta experiência do nada. O primeiro, o estético, é quando fugimos do nada buscando sensações de prazer. Fracassamos. O segundo, o ético, quando fugimos nos alienando na certeza de uma vida "correta" (pura hipocrisia). Fracassamos. O terceiro, o religioso, quando "saltamos na fé", sem garantias de salvação. Mas existe também o "abismo do amor".

Sua filosofia do amor é menos conhecida do que sua filosofia da angústia e do desespero, mas nem por isso é menos contundente.

Seu livro "As Obras do Amor, Algumas Considerações Cristãs em Forma de Discursos" (ed. Vozes), traduzido pelo querido colega Álvaro Valls, maior especialista no filósofo dinamarquês no Brasil, é um dos livros mais belos que conheço.

A ideia que abre o livro é que o amor "só se conhece pelos frutos". Vê-se assim o caráter misterioso do amor, seguido de sua "visibilidade" apenas prática.
Angústia e amor são "virtudes práticas" que demandam coragem.

Kierkegaard desconfia profundamente das pessoas que são dadas à felicidade fácil porque, para ele, toda forma de autoconhecimento começa com um profundo entristecimento consigo mesmo.
Numa tradição que reúne Freud, Nietzsche e Dostoiévski (e que se afasta da banalidade contemporânea que busca a felicidade como "lei da alma"), o dinamarquês acredita que o amor pela vida deita raízes na dor e na tristeza, afetos que marcam o encontro consigo mesmo.
Deixo com você, caro leitor, uma de suas pérolas:

"Não, o amor sabe tanto quanto qualquer um, ciente de tudo aquilo que a desconfiança sabe, mas sem ser desconfiado; ele sabe tudo o que a experiência sabe, mas ele sabe ao mesmo tempo que o que chamamos de experiência é propriamente aquela mistura de desconfiança e amor... Apenas os espíritos muito confusos e com pouca experiência acham que podem julgar outra pessoa graças ao saber."

(FPS, 13 jun. 2011)

- - -

Mas não resisto a comentar: sr. Pondé vai para a Dinamarca. Bem poderia ficar por lá.

- - -

Ou também: sr. Pondé vai para a Dinamarca. Como dizia Shakespeare, sobre esse reino...

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi Sá
Tudo bem?
Adorei o texto do Pondé (a idade vai trazendo um reacionarismo -rs), que por coincidência tinha acabado de ler e até mandar para uma amiga. MAs amei tambem suas observações sobre ele. São inteligentes e um ótimo diálogo, contraponto, ao texto. Um prazer de ler numa manhã, de segunda, fria como essa.
Beijos!
Claudio Yosida