domingo, 15 de fevereiro de 2009

Meus ombros não doem mais

Até quarta-feira tenho os dias cheios. Segue o início de "Meus amigos", de Emmanuel Bove:

- - -

"Quando acordo, minha boca está aberta. Meus dentes estão sujos: escová-los à noite seria melhor, mas nunca tenho coragem. Lágrimas secaram nos cantos de minhas pálpebras. Meus ombros não doem mais. Cabelos hirsutos cobrem minha testa. Com meus dedos abertos afasto-os para trás. É inútil: como as páginas de um livro novo, rebelam-se e voltam a cair sobre meus olhos.

Baixando a cabeça, sinto que minha barba cresceu: ela pica meu pescoço.

A nuca aquecida, fico de costas, de olhos abertos, os lençóis até o queixo para que a cama não esfrie.

O teto está manchado de umidade: fica tão próximo do telhado. Aqui e ali, venta sob o papel de parede. Meus móveis parecem os dos belchior, nas calçadas. O cano de meu pequeno aquecedor está enfaixado com um trapo, como um joelho. No alto da janela um estore já sem serventia pende de lado.

(...)

Quando chove, o quarto é frio. Parece que ninguém dormiu ali. A água, que escorre por toda a largura dos vidros, corrói a massa de vidraceiro e forma uma poça, no chão.

Quando o sol, solitário no céu, flameja, projeta sua luz dourada no meio do cômodo. Então as moscas traçam no assoalho mil linhas retas."

2 comentários:

Paulodaluzmoreira disse...

Poderosa a auto-descrição e posta assim, como um fragmento, ela fica cheia de mistérios interessantes, que atiçam a curiosidade para ler mais. A coisa está preta para esse sujeito, evidentemente...

Anônimo disse...

Um Atlas aposentado :)