sábado, 8 de novembro de 2008

Teu destino

Gabriel era um uruguaio da nossa turma da faculdade em 93. Era visivelmente diferente de nós, porque já tinha 24 anos (um adulto), vestia botas de couro, calças jeans justas e desbotadas, camisa xadrez, fumava... o Lucky Luke materializado. Eu não estava apaixonada por ele: estava encantada num sentido mágico, hipnotizada por essa imagem inacreditável de Homem.

Ele simpatizava comigo e várias noites rodamos pela cidade com nossa amiga Carol, numa arranjo meio adolescente em que ela me ajudava a tentar de seduzi-lo, nos levando de carro para beber, oferecendo o whisky da mãe dela, já que éramos dois duros e estrangeiros na cidade. Conversávamos e conversávamos, e num desses momentos ele disse algo simpático sobre mim.

Não sei se disse exatamente isso, mas entendi assim: que, espontaneamente, eu começava a cantar algum trecho de música quando saíamos com a turma, e os versos tinham relação com o que acontecia no momento. Bem observado, bonito e inteligente, a história com o Gabriel termina agora para adiantar uns anos e dizer que isso me acontece até hoje, a mim e alguns amigos: você passa dias brigando com uma pessoa, e de repente acorda cantando Ataulfo Alves: "vai, vai mesmo... eu não quero você mais..."

A memória espontânea te traduz pra você mesmo e aqui caberia dizer "Freud explica", porque ele realmente o faz na "Psicopatologia da vida cotidiana".

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Pulo ainda várias informações para chegar ao seguinte: ouvi muita música caipira na infância e adolescência, porque era uma paixão comum de dois homens importantes na minha formação: meu pai e meu avô materno. Duas personalidades que eu tinha dificuldade para entender, porque minha visão era mediada pelos comentários de minha mãe e minhas tias. No caso do meu avô, dizendo para ele ir ao médico, tomar remédio, parar de beber, um excesso de cuidados que ele recusava, brincalhão, fugindo para mexer em sua horta. Sua personalidade só aparecia nas brechas, em piadas e "causos acontecidos" que ele contava, nos objetos estranhos que montava na garagem. Quando tentei entrevistá-lo, ao lado de minha avó, ele não quis dizer nada. Só ria, meio fugindo, como se fosse uma brincadeira.

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Por muitos anos lembrei de dois versos que ele cantava, de passagem pela cozinha, sempre os mesmos, nunca a música inteira: "na fazenda do lajeado... conheci um boi malhado".

Isso foi há uns vinte anos, mas em Brasília comentei com meu pai, e ele conhecia a música. Era uma canção famosa de Tonico e Tinoco. Encontrei uma gravação no You Tube.

Se os versos espontâneos querem dizer alguma coisa, talvez seja triste concluir.

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"Na manguera da fazenda do Lajeado
Conheci um boi maiado descaído como quê
Tempo de moço quando eu era candiero
Boi Maiado era ligero trabaiava com você.

Boi de carro hoje véio rejeitado
Seu congote calejado da canga que te prendeu
Boi de carro eu ainda sô teu cumpanheiro
Eu to véio sem dinheiro teu destino é iguá o meu

Boi de carro sem valia tá afrontado
De puxá carro pesado costume que os patrão fais
Eu trabaiei trinta ano e fui quebrado
Do lugá foi despachado diz que eu já não presto mais.

Boi de carro seu oiá triste parado
Ruminando já cansado cô desprezo do patrão
Boi de carro eu também to ruminando
Essa mágoa vô levando dos home sem coração.

Boi de carro o seu dia tá marcado
Pro corte foi negociado prá matá no fim do méis
Adeus maiado meu sentimento é profundo
Vou andando pelo mundo esperando a minha veis."

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Este é o vídeo.

3 comentários:

júlia disse...

puxa, sabina, eu conheço alguém que faz muito isso de cantar no momento a música que sente sem perceber. a mesma pessoa em que penso agora que fui ouvir vai, vai mesmo, eu não quero você mais,

snif

sabina anzuategui disse...

snif

Paulodaluzmoreira disse...

Linda a letra da musica. O texto ficou muito bom, tambem.