Trabalhei dezoito anos escrevendo roteiros para vídeos institucionais, comerciais de TV, programas infantis, documentários, seriados e até uma telenovela. Escrevia rápido, com prazos curtos. Muita coisa mal revisada para chefes menos geniais do que se achavam. Aguentei reuniões e vaidades e falsas simpatias. Antes de orientar um aluno, pergunto se ele está escrevendo para si mesmo, se tem algum ideal artístico, ou se pretende ter uma carreira como roteirista. Assim vou parcelando as doses de realidade, conforme o aluno me pareça disposto a receber.
Quando comecei a dar aulas, a escola oferecia apenas cursos livres de roteiro. Oficinas de oito aulas para curiosos sobre a área. Agora há um curso de graduação em Dramaturgia, e os formados recebem um diploma universitário. Precisei estudar novamente, meu diploma de bacharel não era suficiente para dar aulas na graduação. Mas não voltei à faculdade de Artes e Comunicação. Meu pai tinha registros antigos de família e procurei o departamento de História.
Minha bisavó nasceu em 1902, numa antiga fazenda de café em Cabreúva, no distrito hoje chamado Bom Fim do Bom Jesus. Era filha sem pai de uma negra livre. Trabalhou toda vida como cozinheira de famílias ricas em São Paulo. Aprendeu a ler e escrever sozinha depois de adulta. Quando morreu, aos sessenta anos, deixou para meu pai uma dúzia de cadernos, suas memórias. A professora do departamento de História ficou admirada com esse material.
Eu me matriculei no mestrado aos quarenta anos, para estudar a história dos negros em São Paulo. Minha dissertação está quase pronta. Usei os cadernos de minha avó como ponto de partida.
Quando meus alunos brancos escrevem num exercício que um personagem é negro, eu geralmente pergunto: por que ele é negro, isso faz diferença na história?
No meu bairro, a dona do mercadinho é branca. O mendigo que ganhou a cerveja era negro. Minha vizinha, com o cachorro emburrado, eu não sei. Seu rosto é inchado, provavelmente por causa do álcool. Sua pele é desbotada. Eu poderia presumir, pela forma de suas bochechas e lábios. Mas me pergunto se faz diferença na história.
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