terça-feira, 17 de novembro de 2015

"Sexo anal dói menos / que ficar solteira"

"Olívia escreveu o texto com a história de Bruna na quinta-feira 29 de outubro, antes de almoço. Naquela manhã ela tivera prova de matemática e acabou rápido. Voltou cedo para casa, caminhando sozinha e organizando as ideias.

Na quinta-feira a avó cozinhava algum tipo de carne. Era o único dia em que comiam carne vermelha em casa, para manterem o nível de ferro. Inês cozinhava e Olívia lavava a louça, era esse o combinado. Olívia deu um beijo na avó e seguiu para o seu quarto, para descansar um pouco antes do almoço. No quarto de portas fechadas, ela ligou o computador e começou a escrever. Falava as frases em voz alta enquanto digitava, para encontrar o ritmo, os pontos de ênfase. Deixou o texto quase pronto, salvou em seu email e desceu para almoçar.

Ela publicou o vídeo na segunda-feira 2 de novembro, feriado de finados. Colocou o link em suas contas no facebook e twitter com uma pequena sinopse: "Conheçam a comovente história do namorado bonzinho que só quer fazer sexo anal, para preservar a virgindade de uma garota de 15 anos." Para ilustrar a abertura do vídeo, Olívia organizou uma seleção de memes sobre o tema: "Sexo anal dói menos / que ficar solteira." "Não há prova de amor maior / que sexo anal." "Aniversários: é quando você sonha com sexo anal, espera por sexo oral, se contentaria com sexo vaginal, e ganha uma punheta preguiçosa enquanto assiste a novela." Nos memes, o sexo anal quase sempre aparecia como prêmio, se o homem ia penetrar a mulher, e como castigo ou zombaria, se fosse o homem a ser penetrado.

A primeira parte da história de Bruna foi muito bem recebida. Dezenas de garotas agradeceram por ela abordar aquele assunto e pediram ansiosamente a continuação, sua opinião, o fim da história. Nos comentários as seguidoras de Caroline interagiam entre si, opinando e discutindo umas com as outras sobre virgindade, namorados sacanas, dificuldades sobre quando transar ou não. Olívia aproveitou a fase inspirada e publicou, na quinta-feira da mesma semana, a segunda parte da história. O segundo vídeo teve alcance dobrado e atingiu 4.000 visualizações em dez dias.

Esse era o primeiro vídeo em que Olívia se colocava com conselheira de suas seguidoras. Nas primeiras gravações, em agosto, ela se expressava isoladamente, como a adolescente desconhecida que era, tentando expor sua opinião minoritária e desvalorizada. Mas ela adquiriu uma nova segurança depois que seu canal ganhou centenas de assinantes, e se sentiu confortável para aconselhar as garotas que pediam sua ajuda. Era apenas por pudor que ela dizia, no primeiro vídeo, que talvez fosse muito jovem para orientar alguém. Na verdade ela se sentia capaz e cada vez mais confiante conforme aumentavam os emails e comentários de fãs com problemas íntimos e sentimentais.

Em três meses, do final de setembro a meados de dezembro, Olívia deixou de ser uma adolescente isolada que escrevia sozinha em seu quarto, e transformou-se numa formadora de opinião, numa jovem estrela nascente da web. Na virada do ano de 2010, seu canal tinha 1.632 seguidores e a soma das visualizações de todos os seus vídeos chegou a 98 mil. Ela permanecia anônima. Sua avó, sua ex-melhor amiga, seu ex-namorado e os colegas da escola ainda não tinham notícias do que acontecia."


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

"Garotas gostam de sexo anal?", por Caroline Cólera

29 de outubro de 2009

"Eu recebi um email com uma história chocante e eu fiquei o dia inteiro com isso na cabeça pensando no que dizer. É de uma garota que mora em Rio Claro e gostou dos meus vídeos, por isso ela me mandou a história dela achando que eu poderia ajudar. Ela tem quinze anos. Na verdade ela não  mora em Rio Claro, é uma outra cidade do interior de São Paulo, mas eu troquei os nomes porque essa é uma história muito íntima e eu prefiro que ninguém possa desconfiar da identidade dela.

Eu tenho dezessete anos. Eu nem sei se eu posso ajudar uma garota de quinze. Quer dizer, eu tinha quinze anos ontem, o que eu sei mais do que ela? Mas eu vou tentar dizer alguma coisa porque às vezes só de uma pessoa te ouvir e tentar te entender já ajuda um pouco.

Então. Vou inventar um nome pra essa garota. Eu vou chamar ela de Bruna. Mas só inventei o nome e a cidade, toda a história é verdadeira, foi a Bruna que escreveu e me contou.

A Bruna tem um namorado desde os catorze anos. Eu vou chamar ele de Lucas. Ele tem vinte anos e é o segundo namorado dela. Antes ela namorou um garoto da escola, mas depois ela conheceu o Lucas, que é amigo dos primos dela. Ela diz que eles são tipo Agroboy, têm uma boa vida, fazendas, carrão tipo pick-up, gostam de rodeio, essas coisas. E ela disse que na escola dela é muito comum as meninas namorarem um cara mais velho. É tipo um orgulho ter um namorado de 20, 25 anos.

Então a Bruna começou a namorar o Lucas, ela tava super feliz. Ela disse que era semi-virgem. Quer dizer, tinha feito umas brincadeiras mas nunca penetração de fato. E no começo com o Lucas também foi assim, ele disse que respeitava muito ela, que era uma menina de família e tal.

Depois que o namoro foi esquentando, eles foram fazendo cada vez mais coisas. A Bruna não disse exatamente o quê, mas eles começaram a ir num drive in e ficavam se pegando no carro do Lucas. Até aí tecnicamente ela ainda era virgem, quer dizer, ainda não tinha penetração. Tudo isso ela fazia escondido dos pais dela. Ela dizia que ia pra um barzinho, alguma balada, mas eles ficavam um tempo no bar e depois antes de voltar pra casa eles paravam no drive in.

Um dia o Lucas disse que queria fazer uma noite romântica. Ele deu um presente pra ela e eles foram num motel de verdade, no sábado à noite. Como sempre, com aquela história de dizer para os pais que iam num barzinho, e iriam voltar lá pela meia-noite. A Bruna nunca tinha ido num motel, mas ele disse que era só usar bastante maquiagem, que ninguém ia desconfiar que ela era menor de idade. Ela fez isso e ninguém pediu documento mesmo.

No quarto o Lucas fez uma super declaração de amor, disse que ele sempre sonhou em conhecer uma garota como ela, que ela era a mulher da vida dele, e ela estava super feliz e apaixonada. Ela achou que nesse dia ela ia perder a virgindade. Que ele tinha feito tudo aquilo pra ser um momento especial pra ela. Eles começaram a se beijar e tal e quando ela achou que ia acontecer, ele disse que queria proteger ela, que queria proteger a virgindade dela, então ele ia fazer de um jeito que ela continuaria virgem.

Ela não entendeu direito o que estava acontecendo. Ela achou que ele estava só se esfregando na bunda dela, que ele ia gozar daquele jeito meio por fora. Ela foi deixando porque ela estava apaixonada e só se deu conta quando começou a doer. Mesmo nessa hora ela não entendeu direito, ela achou que entendeu, mas não acreditava que ele pudesse fazer isso, então ao mesmo tempo ela tentava achar que era outra coisa, que não era aquilo.

Depois dessa noite ela disse que não queria mais ir pro motel com ele. Mas ele respondeu que se ela não fosse ele ia terminar o namoro. E ele ia contar para os primos e os irmãos dela tudo o que ela tinha feito. Depois ele pediu desculpas, chorou, disse que estava arrependido. Que só disse aquilo porque ficou desesperado e achou que ela queria terminar com ele. Então eles continuaram indo para o motel e transando daquele jeito. Já faz dois meses que isso está acontecendo.

Ela diz que não consegue contar essa história pra ninguém que ela conheça. Que as amigas dela acham que o Lucas é o namorado perfeito. Ela tem vergonha de contar e elas digam que é culpa dela.

Ela não sabe o que fazer, porque ela gosta dele. Ele é carinhoso, elogia ela, dá presentes. Todos os amigos dela gostam dele, e as amigas dela namoram o caras da mesma turma, eles são todos amigos. Ela não quer terminar o namoro.

Ela acha que seria melhor eles transarem normal, mas ele diz que é muito perigoso. Que ela pode engravidar. Que a camisinha pode estourar. Que se ela tomar pílula ela vai engordar e a mãe dela vai descobrir. Então eles continuam fazendo daquele jeito e ela já se acostumou. Dói um pouco mas ela pediu pra ele ir devagar, então ela já sabe como é. Ela às vezes até gosta um pouco.

Mas ela acha que é errado e queria saber a minha opinião.

Eu respondi pra ela por email.

Eu contei essa história toda aqui porque talvez isso aconteça com outras garotas.

Na semana que vem vou fazer outro vídeo, contando uma história que aconteceu comigo.

A minha opinião é muito simples. Esse Lucas é um sacana. A conversa dele é um papo furado. Bruna, termina com esse cara. E se ele contar pra todo mundo, sai dessa cidade horrorosa e vai morar em outro lugar. Nem que seja um colégio interno.

Você tem quinze anos. Você vai encontrar mil pessoas na sua vida. Esse cara é um mentiroso e tá te enganando pra você fazer o que ele quer.

Talvez você goste dele, mas não vale a pena gostar de uma pessoa assim.

Na próxima semana eu vou tentar explicar melhor o que eu penso.

Em teoria eu não sou contra sexo anal.

Mas não com essa chantagem e esse papo furado e esse monte de mentira que esse cara tá contando."

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Caroline em segredo

"A versão feminista do escândalo do chip, por ter no título os termos de pesquisa do original viralizado, teve quase duas mil visualizações em uma semana, e centenas de comentários. Os comentários se dividiam em deboches, manifestações de ódio e declarações de apoio. A cabeça de Olívia disparou, ela queria rebater as acusações, agradecer os elogios, responder todas as perguntas, dizer mais coisas que agora lhe ocorriam. Durante duas semanas ela teve dificuldade para pegar no sono, mesmo depois que Inês vinha ao seu quarto exigir que ela desligasse o computador e deitasse. Ficava na cama alerta, com o pensamento disparado, articulando como e o quê devia escrever e responder. Finalmente apagava por exaustão, mas acordava de repente no meio da madrugada e a agitação recomeçava. Duas vezes levantou e ligou o computador às três da manhã para escrever e mandar alguma resposta que lhe parecia urgente. Mas na terceira noite a avó ouviu a vibração baixa do computador, quando levantou para ir ao banheiro, e bateu na porta para saber o que estava acontecendo. Inês deu uma bronca, no dia seguinte fez muitas perguntas, por que ela estava tão agitada, por que tanto tempo na internet, o que fazia no computador de madrugada, e para evitar mais suspeitas Olívia decidiu se controlar.

Desse momento em diante ela tentou criar uma ordem para suas publicações, apesar da dificuldade enorme para domar seus impulsos. Decidiu criar uma regularidade e se manter fiel a ela, para que sua cabeça não pirasse e, principalmente, sua avó não descobrisse. Era importante que ela se acalmasse e reservasse um horário para escrever, sem atrapalhar a escola e as notas, porque Inês não deveria perceber nada. Os textos e vídeos eram seus, ela queria fazer aquilo livremente sem explicar nada a ninguém.

A partir dessa primeira repercussão, o número de espectadores frequentes dos vídeos de Caroline Cólera passou de algumas dezenas para várias centenas. Antes o número de inscrições no seu canal estava em 54. Depois subiu para 903. As novas inscrições, na maioria jovens e adolescentes, formaram um público fiel e simpático aos relatos de Olivia.  

Olivia tinha um conjunto coerente de perfis em várias redes sociais para divulgar seus textos e vídeos e interagir como Caroline. Tinha email, facebook, twitter, blog e canal do youtube, todos conectados com as mesmas informações. Era nesses perfis que ela gastava suas horas livres, e não em seu perfil familiar com seu nome verdadeiro. Para os colegas da escola que reclamavam que ela nunca estava conectada, Olívia dizia que "não gostava de internet". No computador em seu quarto ela não deixava nenhuma senha gravada. Sempre apagava o histórico de navegação antes de desligar o computador. Não salvava nenhum texto ou imagem no HD, ficavam todos no email e no arquivo do blog. Sua avó nunca ameaçara vasculhar seu computador, mas ela imaginava que era eventualmente possível e preferia se precaver.

Havia muitas fotos no perfil de Caroline no facebook, mas sempre recortes e detalhes, nunca seu rosto inteiro. Ela percebera que fotos sensuais atraíam curtidas e seguidores, por isso produzia imagens de seu corpo - o encontro dos seios, o pescoço, pernas estendidas e dobradas em várias posições, os pés nus."

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O público de Caroline Cólera no YouTube

O vídeo "Me dá meu chip - Visão Feminista", por ter no título os termos de pesquisa do original viralizado, teve quase duas mil visualizações em uma semana, e centenas de comentários. O número de inscrições no seu canal, que estava em 54, subiu para 903. Os comentário se dividiam em deboches, manifestações de ódio e declarações de apoio. A partir dessa repercussão, o número de espectadores frequentes dos vídeos de Caroline Cólera passou de algumas dezenas para várias centenas.

As novas inscrições em seu canal, na maioria garotas adolescentes, formaram um público fiel e simpático aos relatos de Olivia. Desse momento em diante ela assumiu um projeto regular de publicações. Toda segunda-feira ela postava um vídeo de conteúdo inédito (séries e temas que escolhia por motivação própria) e às quintas-feiras publicava vídeos mais curtos, respondendo a perguntas e sugestões de suas seguidoras. Para todos os vídeos, ela escrevia e revisava o texto antes de gravar. Depois decorava e ensaiava algumas vezes. Em geral ela pensava e desenvolvia os textos mentalmente, em casa, nos intervalos das aulas, caminhando para o colégio ou outros lugares. Os temas ficavam girando em sua cabeça até ela encontrar uma forma que a agradasse. Ela gravava o material bruto na sexta-feira, quando sua avó ia para a aula de yoga. Era sua tarde mais livre, pois nos outros dias da semana tinha aulas de inglês e preparação para o vestibular. Olívia editava as imagens no sábado ou domingo, conforme encontrava algumas horas livres, e esperava os horários escolhidos para postar (porque percebeu, nas primeiras experiências, que a regularidade era boa para cativar seu público)."

terça-feira, 3 de novembro de 2015

"Me dá meu chip - Visão Feminista"

"No início o blog de Olívia tinha poucas visitas, trinta ou quarenta leitores que ela conquistou comentando e colaborando com outros blogs de contos e poesia, escritos por jovens e adolescentes. Seus vídeos talvez seguissem o mesmo rumo, permanecendo restritos às poucas amizades virtuais com quem ela trocava ideias regularmente, se não fosse o acaso de Olivia se manifestar sobre um tema de repercussão viral.

Em setembro de 2009, alguém gravou de uma janela, de madrugada, uma mulher raivosa diante do muro de um prédio gritando para um tal Pedro que devolvesse seu chip de celular. Em uma semana, o vídeo teve mais de dois milhões de acessos e ficou conhecido como "Me dá meu chip, Pedro". O original gerou montagens cômicas, paródias musicais e fãs. Alguns blogueiros de Vitória, no Espírito Santo, localizaram Pedro em seu edifício. Ele foi tema de reportagens e deu entrevistas em programas de televisão. A história despertou tanto encanto que até o taxista que conduziu a mulher raivosa apareceu na TV.

Olívia não conseguiu rir, desde a primeira vez que assistiu a cena. Ela tinha ouvido o assunto na escola, todos os garotos riam à beça, mas ela só conseguiu ver em casa, depois do almoço. A imagem noturna, a mulher sozinha na calçada escura, a voz transtornada gritando "Abre essa porta. Eu vou gritar a noite inteira aqui. Você roubou o que é meu. Me dá o que é meu." Ela pensou, por que ele não desce e devolve o chip para ela? Todos vão rir enquanto essa mulher agoniza em vexame público? Olívia assistiu os outros vídeos relacionados, os blogueiros que localizaram Pedro, os programas de televisão, a entrevista com o taxista. Todos achavam a história divertidíssima. Somente três pessoas manifestavam alguma compaixão: a apresentadora de um programa sensacionalista vespertino, o taxista e um velho psicanalista. O psicanalista tentou defender a exposição da dor, lembrando uma parábola contada por um padre num romance de Kafka e falando das "portas fechadas" que todos encontramos.

Mas Olivia não queria defender a mulher. Ela queria contestar quem ria. Queria reclamar da crueldade de todos os seus colegas que elegiam como herói um homem que não fez nada, que simplesmente ficou trancado em casa ignorando a mulher que se debatia à sua porta. Naquela mesma tarde ela se vestiu como Caroline Cólera e gravou um vídeo que chamou "Me dá meu chip - Visão Feminista". E esse vídeo se tornou uma piada involuntária quase tão famosa quanto o barraco do chip."