sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Caroline Cólera

"Na casa da rua Perdigão havia um jardim de inverno desde 1997, ano em que morreu Rafaela, filha de Inês e mãe da pequena Olivia, de quatro anos de idade. Inês tinha quarenta e sete anos e Rafaela, aos vinte e dois, afogou-se enquanto surfava com amigos em Maresias. O mar estava agitado, ela tombou numa onda de um metro, a praia estava sem salva-vidas. Um amigo viu e correu para resgatá-la, mas a ambulância demorou demais e ela não sobreviveu. O pai de Olivia era australiano e seguia sua vida em algum lugar do mundo. Depois do afogamento, Inês assumiu a neta e fez o possível para criá-la sem a sombra dessa tragédia. Doou as roupas da filha e esvaziou a edícula no fundo de sua casa na Granja Viana, onde Rafaela e Olivia moravam (pois quando engravidou, aos dezoito anos, Rafaela ainda estava no primeiro ano da faculdade). Sem mudar de escolinha, com mínimas alterações em sua rotina, Olívia voltou para a casa principal, e Inês transformou a edícula num jardim de inverno.

A casa tinha 248 m2 de área construída e valia 850 mil reais no início de 2010, quando Inês decidiu vendê-la e mudar-se para um apartamento na zona oeste de São Paulo. Olivia começaria em fevereiro a faculdade na Avenida Paulista e Inês pensou que as duas seriam mais felizes morando na cidade, num bairro agradável, perto do metrô. Olivia iria para a aula e Inês ao cinema e exposições. As duas começariam uma vida nova, mais leve, mais móvel e mais urbana. Inês sentiu-se aliviada de poder finalmente deixar para trás a vida afastada e silenciosa na natureza, que idealizara quando Rafaela era pequena, e que trouxera tantas dificuldades e tristezas.

Em janeiro, depois do ano novo, Inês e Olivia passaram alguns dias numa praia perto de Florianópolis. Depois voltaram para a Granja Viana, Inês começou os contatos com imobiliárias para vender o imóvel e comprar o novo apartamento. Olivia ficava em seu quarto aguardando o início das aulas, assistindo seriados de TV, lendo quadrinhos e escrevendo em seu blog. No último ano do colégio, ela havia rompido com seu namorado e sua melhor amiga. Ela não queria mais se apegar a ninguém na Granja e esperava ansiosa conhecer os novos colegas na faculdade de Comunicação. Embora, nessa fase de sua vida, andasse resistente e desdenhosa com os jovens de sua idade. Suas melhores relações eram virtuais, três garotas de outras cidades que escreviam e comentavam seus textos no blog e também odiavam a sociedade e as pessoas comuns.

Olivia escrevia com pseudônimo para que sua avó e colegas da escola não a identificassem. Usava o nome Caroline Cólera, uma personagem de quadrinhos adultos franceses da década de 1970, escrita por Danie Dubos e ilustrada por George Pichard. Ela se identificava com os corpos sinuosos desenhados por Pichard e acreditava que as imagens justificavam seu próprio corpo, que não era magro como ambicionavam para si mesmas as garotas da escola. Olivia escolheu o nome de Caroline porque lhe soava melhor em português, mas suas personagens preferidas de Pichard eram Blanche Épiphanie, que tentava defender sua virtude num mundo de vilões sádicos, e Paulette, que herdou uma fortuna, tornou-se comunista e foi raptada por sujos capitalistas. Olívia também seria herdeira (do patrimônio de sua avó) e, enquanto esse tempo não chegava, tentava defender sua virtude espiritual, ignorando a culpa que talvez devesse sentir quando à noite se masturbava deitada em sua cama, no escuro, visualizando de olhos fechados as cenas de tortura sexual e imaginando-se no papel do velho sádico dos quadrinhos."

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