segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Carta (quase) verdadeira

CURITIBA, 31 DE OUTUBRO DE 1990.


Oi.


     Pois é. Bem... quer dizer... É. Eu liguei pra você hoje.

     Foi preciso juntar muita coragem, acredite. Eu tinha procurado o teu telefone da lista, e eram cinco pessoas com teu sobrenome. Liguei pra dois que não atenderam, e o terceiro disse que te conhecia, era teu tio. Foi ele quem me deu o número certo. Fiquei uma semana ligando, em horários diferentes, e ninguém atendia: de manhã, ao meio dia, de madrugada. Por isso resolvi ligar para a revista.

     Eu não queria ligar pra revista, porque achava que a secretária nunca ia me passar pra você. E foi quase assim. Eu liguei e disse:

     - Oi, eu queria falar com o ***.

     Ela perguntou:

     - Da parte de quem?

     Eu falei:

     - Da minha parte, mesmo.

     - E qual o seu nome?

     - ***.

     Antes mesmo que ela perguntasse quem eu era, eu já disse:

     - Olha, eu não sou ninguém, não. Eu só queria falar uma coisa com ele, bem rapidinho. Mas se não der, tudo bem.

     Ela falou “espere um momento, senhorita” e eu fiquei esperando. Quando ouvi uma voz de homem (a sua) comecei a tremer. Podia até ter desmaiado, mas eu não ia desistir, tendo chegado tão perto. Eu inteira tremia, enquanto falava com você. Não sei se você percebeu.

     - Oi, meu nome é ***. Eu escrevi uma carta pra você e queria mandar pra tua casa, então queria que você confirmasse o endereço que tem na lista telefônica.

     A frase já tava decorada, minha voz saiu, mas não foi fácil, não foi. Achei que você fosse desligar na minha cara. Mas quando você disse:

     - O endereço da minha casa? Você não vai aparecer lá no meio da madrugada, vai?

     Aí eu fiquei mais calma. Pude dizer:

     - Não, não. Eu sou uma moça de família. E depois, eu moro em Curitiba.

     Você riu com o “moça de família”, mas não é engraçado, talvez seja triste. Enfim...

     Quando eu peguei seu endereço na lista, há um mês, escrevi algo que seria uma carta de apresentação. Demorei muito pra mandar. Hoje ela está, digamos, obsoleta. Quando a acabei, havia achado fantástica. Depois de ler de novo umas dez vezes, só conseguia pensar que era idiota.

     “Está artificial, deprimente.” Vou mandá-la, de qualquer jeito, caso você tenha alguma suposta curiosidade. A parte que explica meu interesse por você é verdade. Em termos. Quer dizer, foi mais ou menos aquilo. 



(essa é a carta que eu tinha escrito, antiga):


     Estamos no final de outubro. Não tenho aulas esta semana, estou em casa. Não há ninguém comigo. 

     Hoje eu acordei cedo pra fazer o trabalho da feira de cultura do colégio, um painel sobre os filósofos iluministas. A idéia é pôr o retrato de cada um com suas principais idéias do lado: eu fazendo os desenhos, outra menina fazendo os textos. Eu não estava com a menor vontade de gastar meu tempo nisso, mas a menina que foi sorteada para a minha equipe não tem nada com isso, e não precisa ficar com notas vermelhas por minha causa. Então eu acordei cedo hoje pra fazer o trabalho. 

     Então estou em casa, de manhã, sem fazer nada. A radiola está ligada, tocando Bill Halley e seus cometas. Estou sentada no chão, na frente da janela. Tinha sol até as nove horas, e então a paisagem estava bonita. Dava pra ver os pinheiros que ficam no jardim do meu prédio, e uma construção alta no fundo. Agora o sol foi embora e a vista bonita ficou cinza de chuva. De qualquer forma, ainda estou olhando pra fora.

     Ontem fui na abertura de uma exposição, da mãe de uma amiga minha que pinta umas aquarelas. Ela desenha umas mulheres que são bonecos de madeira, e têm peitos mas não tem cara, e sempre têm alguma parte do corpo que vira um pedaço de ave, alguma ave típica do Brasil. São umas pinturas bonitas, até. Mas ir em vernissages é horrível. Todo mundo parece chique e culto, e ficam falando um monte de coisas que não falam normalmente.

     Eu fiquei metade do meu tempo lá conversando com um ex-professor, que estava com a mulher, grávida de cinco meses. Mas a galeria era minúscula e estava lotada, e eu tenho um pouco de claustrofobia, então saí e fui prum jardinzinho que dava para a rua.

     A outra metade do meu tempo gastei conversando com um cara que eu tinha conhecido quatro dias antes, e que adorou o fato de eu usar no dedo um anel daqueles que vêm de brinde em chicletes.

     Eu não estou mais acostumada a encontrar pessoas que gostem de mim. Fora minha família e duas amigas, ninguém chega a gostar de mim. Na escola as meninas me olham espantadas ou desconfiadas. Quando tiro nota alta, me olham respeitosas. Mas a verdade é que, na maioria do tempo, nem me olham. Acho que eu sou inteligente demais. Quer dizer: não estou dizendo isso porque sou convencida nem nada, é só uma constatação. Na verdade, acho que se eu pudesse escolher, escolheria sem bem bonita, bem bonita mesmo. Mas eu sou assim como eu nasci, então não tenho culpa se minha vida social não é muito intensa. Quem dera eu pudesse explicar isso pra minha mãe, assim ela parava de me incomodar com esse assunto.

     Mas voltemos ao menino que gostou do meu anel. O disco do Bill Halley acabou, e eu coloquei outro, de música sertaneja. Não é de bom gosto mas eu gosto porque meu avô gosta. Como estava dizendo, eu não estou acostumada a encontrar pessoas que gostem de mim, então quando as encontro, gosto delas também. A gente conversou bastante, e quando fui dar aqueles dois beijinhos de despedida, ele beijou de leve o canto da minha boca.

     “Eu ando tão sozinho e não consigo esquecer que eu e você já fomos nós.” Esse é disco agora.

     Ë triste escrever uma coisa que ninguém vai ler. Quando eu escrevo alguma coisa, penso em juntar todas as pessoas que conheço numa sala, dar uma cópia pra cada pessoa ler, e depois pedir pra quem gostou levantar a mão. A pessoa que gosta do que você escreve, gosta de você.

     Eu ia te explicar porque gosto do que você escreve. Mas agora minhas ideias fugiram, na próxima vez eu tento.


Nenhum comentário: