CURITIBA, 31 DE OUTUBRO DE 1990.
Oi.
Pois é. Bem... quer
dizer... É. Eu liguei pra você hoje.
Foi preciso juntar
muita coragem, acredite. Eu tinha procurado o teu telefone da lista, e eram
cinco pessoas com teu sobrenome. Liguei pra dois que não atenderam, e o terceiro disse que te
conhecia, era teu tio. Foi ele quem me deu o número certo. Fiquei uma semana
ligando, em horários diferentes, e ninguém atendia: de manhã, ao meio dia, de
madrugada. Por isso resolvi ligar para a revista.
Eu não queria ligar
pra revista, porque achava que a secretária nunca ia me passar pra você. E foi
quase assim. Eu liguei e disse:
- Oi, eu queria falar
com o ***.
Ela perguntou:
- Da parte de quem?
Eu falei:
- Da minha parte,
mesmo.
- E qual o seu nome?
- ***.
Antes mesmo que ela
perguntasse quem eu era, eu já disse:
- Olha, eu não sou
ninguém, não. Eu só queria falar uma coisa com ele, bem rapidinho. Mas se não
der, tudo bem.
Ela falou “espere um
momento, senhorita” e eu fiquei esperando. Quando ouvi uma voz de homem (a sua)
comecei a tremer. Podia até ter desmaiado, mas eu não ia desistir, tendo
chegado tão perto. Eu inteira tremia, enquanto falava com você. Não sei se você
percebeu.
- Oi, meu nome é
***. Eu escrevi uma carta pra você e queria mandar pra tua casa, então
queria que você confirmasse o endereço que tem na lista telefônica.
A frase já tava
decorada, minha voz saiu, mas não foi fácil, não foi. Achei que você fosse
desligar na minha cara. Mas quando você disse:
- O endereço da minha
casa? Você não vai aparecer lá no meio da madrugada, vai?
Aí eu fiquei mais
calma. Pude dizer:
- Não, não. Eu sou uma
moça de família. E depois, eu moro em Curitiba.
Você riu com o “moça
de família”, mas não é engraçado, talvez seja triste. Enfim...
Quando eu peguei seu
endereço na lista, há um mês, escrevi algo que seria uma carta de apresentação.
Demorei muito pra mandar. Hoje ela está, digamos, obsoleta. Quando a acabei,
havia achado fantástica. Depois de ler de novo umas dez vezes, só conseguia pensar que era idiota.
“Está artificial,
deprimente.” Vou mandá-la, de qualquer jeito, caso você tenha alguma suposta
curiosidade. A parte que explica meu interesse por
você é verdade. Em termos. Quer dizer, foi mais ou
menos aquilo.
(essa é a carta que eu tinha escrito, antiga):
Estamos no final de
outubro. Não tenho aulas esta semana, estou em casa. Não há ninguém comigo.
Hoje eu acordei cedo
pra fazer o trabalho da feira de cultura do colégio, um painel sobre os
filósofos iluministas. A idéia é pôr o retrato de cada um com suas principais
idéias do lado: eu fazendo os desenhos, outra menina fazendo os textos. Eu não
estava com a menor vontade de gastar meu tempo nisso, mas a menina
que foi sorteada para a minha equipe não tem nada com isso, e não precisa
ficar com notas vermelhas por minha causa. Então eu acordei cedo hoje pra fazer
o trabalho.
Então estou em casa,
de manhã, sem fazer nada. A radiola está ligada, tocando Bill Halley e seus cometas.
Estou sentada no chão, na frente da janela. Tinha sol até as nove horas, e
então a paisagem estava bonita. Dava pra ver os pinheiros que ficam no jardim
do meu prédio, e uma construção alta no fundo. Agora o sol foi embora e a vista
bonita ficou cinza de chuva. De qualquer forma, ainda estou olhando pra fora.
Ontem fui na abertura
de uma exposição, da mãe de uma amiga minha que pinta umas aquarelas. Ela
desenha umas mulheres que são bonecos de madeira, e têm peitos mas não tem
cara, e sempre têm alguma parte do corpo que vira um pedaço de ave, alguma ave
típica do Brasil. São umas pinturas bonitas, até. Mas ir em vernissages é
horrível. Todo mundo parece chique e culto, e ficam falando um monte de coisas
que não falam normalmente.
Eu fiquei metade do
meu tempo lá conversando com um ex-professor, que estava com a mulher, grávida
de cinco meses. Mas a galeria era minúscula e estava lotada, e eu tenho um
pouco de claustrofobia, então saí e fui prum jardinzinho que dava para a rua.
A outra metade do meu
tempo gastei conversando com um cara que eu tinha conhecido quatro dias antes,
e que adorou o fato de eu usar no dedo um anel daqueles que vêm de
brinde em chicletes.
Eu não estou mais
acostumada a encontrar pessoas que gostem de mim. Fora minha família e duas
amigas, ninguém chega a gostar de mim. Na escola as meninas me olham espantadas
ou desconfiadas. Quando tiro nota alta, me olham respeitosas. Mas a verdade é
que, na maioria do tempo, nem me olham. Acho que eu sou inteligente demais.
Quer dizer: não estou dizendo isso porque sou convencida nem nada, é só uma
constatação. Na verdade, acho que se eu pudesse escolher, escolheria sem bem
bonita, bem bonita mesmo. Mas eu sou assim como eu nasci, então não tenho culpa
se minha vida social não é muito intensa. Quem dera eu pudesse explicar isso
pra minha mãe, assim ela parava de me incomodar com esse assunto.
Mas voltemos ao menino
que gostou do meu anel. O disco do Bill Halley acabou, e eu coloquei outro, de música sertaneja. Não é de bom gosto mas eu gosto porque meu avô gosta. Como estava dizendo, eu não estou
acostumada a encontrar pessoas que gostem de mim, então quando as encontro,
gosto delas também. A gente conversou bastante, e quando fui dar aqueles dois
beijinhos de despedida, ele beijou de leve o canto da minha boca.
“Eu ando tão sozinho e
não consigo esquecer que eu e você já fomos nós.” Esse é disco agora.
Ë triste escrever uma
coisa que ninguém vai ler. Quando eu escrevo alguma coisa, penso em juntar todas as pessoas que conheço numa
sala, dar uma cópia pra cada pessoa ler, e depois pedir pra quem gostou
levantar a mão. A pessoa que gosta do que você escreve, gosta de você.
Eu ia te explicar porque gosto do que você escreve. Mas agora minhas ideias fugiram, na próxima vez eu tento.
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