quinta-feira, 7 de junho de 2012

Um dia escrevi um manifesto

Relendo coisas antigas, encontrei um manifesto literário (único) que escrevi em 2001.

Ainda mantenho algumas idéias (embora esta palavra hoje já não tenha acento):

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"É uma pena que eu não saiba escrever um manifesto, ou alguma coisa assim.

Pois eu gostaria que se escrevesse melhor. Eu gostaria que as pessoas fizessem coisas mais interessantes com suas vidas, e escrevessem e publicassem coisas mais interessantes.

Não vou desmerecer um escritor que nasceu pobre, teve que trabalhar duro para garantir os novecentos reais mensais que vão lhe pagar o aluguel e permitir que continue lendo em seu quarto apertado os livros de autores alemães que são o único lugar onde conseguiu encontrar uma manifestação estética que desse algum sentido à sua vida sacrificada e reprimida.

Mas: um escritor que usa toda sua energia e inteligência para dominar um formato que outro homem, em uma outra vida, sofreu pra concretizar, e se esforça pra fazer o que o outro já fez, isso tem alguma importância pra mim?

Eu não agüento mais escritores que falam da "Palavra". A palavra não é nada. Uma palavra de hoje pode não dizer nada a ninguém daqui a dez anos.

(tradução: me irritava, nessa época, e fetichização da palavra)

Não agüento mais as pessoas que dizem que o Brasil está errado, não agüento a crítica moral, nem a denúncia social. Não vou descrever as misérias de um cara pobre e culpar um cara rico, porque independente do que se faz com a riqueza que se consegue, e mesmo que se mate outros de fome por causa disso, tenho que dizer que me admira – e tenho alguma admiração – pelo cara que entende que o dinheiro é o valor que elegeram para esse mundo, e é preciso ter a coragem de consegui-lo.

Admiro as pessoas que admiram elementos decorativos metálicos e reluzentes. Admiro as roupas novas, os sapatos altos, a maquiagem, a tintura de cabelo, a cirurgia plástica, os implantes de silicone e o viagra. Não admiro o xenical porque faz as pessoas cagarem óleo com cheiro de merda, mas admito que precisa ter culhão pra tomar um troço desse sistematicamente. Admiro todas as tentativas que as pessoas fazem pra ficar bonitas.

Compreendo que ninguém quer olhar o rio Pinheiros sujo e poluído, com seu cheiro de esgoto e as dragas puxando entulho para a margem dia após dia. Compreendo que ninguém queira olhar aquele velho magro e sujo com roupas esfarrapadas e o pé cheio de feridas e uma camada de poeira preta lhe cobrindo o corpo enquanto pede esmola na rua pra qualquer um que se aproxime. As crianças que vão ficar daquele jeito se viverem para tanto. As mulheres que continuam parindo crianças que vão ficar daquele jeito. 

Entendo que ninguém queira olhar pra isso, e como a visão permanece e é impossível de desviar, entendo que alguns fiquem amargurados e cínicos na tentativa de esquecer o que viram, e outros deságüem sua frágil vontade de ajuda em conversas de sala de estar.

Mas voltando à literatura, também não é a descrição pura disso que vai ser interessante. A descrição disso, mesmo o julgamento disso, é pouco pra mim. Quem é que vai além disso? Quem vai ter a coragem de mergulhar nisso, e a força de voltar à tona com uma solução? Não uma solução social (impossível de realizar individualmente), mas uma solução estética, porque eu não agüento uma literatura que se acomoda num vazio sem soluções, e não tem o viço de apontar umazinha, mínima que seja. Uma solução estética que acene um caminho ou ao menos uma esperança para essa crueldade social em que vivemos.

A bela "Palavra" revela o medo de nossa pobreza medíocre. A palavra de denúncia joga a culpa aos outros, mas eu não quero repassar a responsabilidade; eu tenho a minha responsabilidade.

E entre tantas coisas que estou pensando, posso pelo menos montar uma frase, que seria: encontrar caminhos especiais, a partir dos fatos reais. Estou tentando descobrir quais são os caminhos especiais; e me esforço pra ser cada vez mais receptiva aos fatos reais.

São onze horas da manhã, no bairro da Vila Madalena, na cidade de São Paulo. Meu cachorrinho entrou no banheiro e revirou a cesta ao lado da privada, espalhando pedaços de papel higiênico sujos de merda e sangue de menstruação pelo chão. Se eu não o tivesse recolhido da carrocinha vinte dias atrás, minha cesta de papel higiênico estaria intocada e a merda e o sangue bem guardadinhos lá dentro. Mas se eu não o tivesse recolhido, eu estaria sozinha, ele teria sido morto pelo Centro de Controle de Zoonoses, e não poderíamos deitar juntos no sol, agora.

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Tradução: Não tenho paciência pra literatura como sublimação, e ou para a fetichização da vítima.

Gosto da uma literatura de superfície agradável, que encaminhe aos poucos à exposição crua do que existe de bom ou ruim. E gosto de nuance, quando ela é verdadeira: algumas coisas são complexas, outras não. Fatos e relações complexas merecem sua descrição cuidadosa. O que é simplesmente bom, ou simplesmente ruim, que se seja dito com clareza.

Mas o leitor, coitado, ele não tem culpa. É mais uma pessoa por aí, buscando num livro alguma iluminação e amparo.

O leitor é como um amigo que chega em visita casual, para tomar um chá. No meio da tarde agradável, toca o telefone da sua casa. É alguma história velha, algum parente ou questão romântica mal resolvida, a ligação te irrita e você começa a bater-boca ali na frente do seu amigo, não dá pra segurar. Você diz todas as coisas entaladas que precisava dizer, aquela ligação veio cutucar sua ferida, você quer acabar o assunto e diz claramente o que acha, pra nunca repetir de novo. Quando você desliga o telefone, seu amigo está assustado mas estranhamente compreensivo, porque provavelmente já passou por algo semelhante. Você está mais calmo, e pode demonstrar alguma consideração. Deixa o clima acalmar um pouco, retoma algum assunto agradável na medida do possível, e se despede com gentileza.



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