terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Uma visita de Alcibíades, de Machado de Assis

A pedido de um leitor do blog, segue a primeira versão do conto, diferente daquela publicada em Papéis avulsos. O texto foi transcrito a partir da coletânea Contos esparsos, com organização e prefácio de R. Magalhães Júnior (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1956, pps. 203-207).

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Uma visita de Alcibíades

in Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1876, p. 305-308


O desembargador Alvares bebeu a última gota de genuíno café, limpou os bigodes ao guardanapo e dispôs-se a obedecer às moças que lhe pediam uma anedota. Era noite de Natal; e o comendador costumava a reunir alguns amigos. O desembargador era figura obrigada de tais festas. Conversado, galhofeiro, palrador, trazendo sempre no alforje da memória boa cópia de anedotas que distribuía às meninas e rapazes curiosos, não era possível passar sem êle naquelas noites de festa anual. A única alteração que havia era uma chícara de café que o desembargador não dispensava nunca, alegando que o chá ia levando a humanidade para a total extinção.

- Carlos Magno não bebia chá e podia com a sua célebre espada, dizia êle; se bebesse café não sei o que teria deixado de fazer.

Mas uma chícara de café era fraco preço para tão amável conviva. Por isso, a dona da casa mandara vir da fazenda de um tio um excelente saco de café de que bebia, a qualquer hora, o desembargador, quando ali ia, e ia sempre. Nas noites de festas fartava-se o desembargador daquela bebida favorita.

Afiaram todos o ouvido, e o desembargador começou:

"- Não contarei uma anedota mentirosa, dessas que os redatores de folhinhas aumentam ou remendam para regalo dos fregueses. Vou referir o que me aconteceu sábado passado.

Sábado passado, logo depois do jantar, estirei-me no divã e abri uma página de Plutarco. Estas meninas talvez não saibam que Plutarco é um autor grego. Pois fiquem sabendo. É autor profano e pagão. Sem embargo disso, tem muitos merecimentos.

Lia Plutarco, acontecendo-me o que sempre me acontece quando abro um livro da antiguidade. Passo todo em espírito para o tempo do livro. Depois de jantar é excelente; e acompanhado de um bom charuto de Havana não há nada melhor. O fumo envolve a imaginação numa espécie de nimbo extremamente favorável às evocações mentais. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a rua do Ouvidor, e o Circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga por trezentos réis, termo médio, que é o preço do charuto. Uma verdadeira digestão literária.

Ora, foi isso o que aconteceu sábado passado. A página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades; deixei-me ir ao sabor da tradução de Amyot. Daí a pouco estava nos jogos olímpicos, a contemplar o elegante ateniense, guiando os seus sete carros, com a firmeza e o donaire com que havia de reger mais tarde as armadas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imaginem se vivi! Mas não há bem que sempre dure. Acabou o charuto, desfez-se o nimbo, a antiga Atenas volveu ao cemitério da história e cairam-me os olhos no casaco branco, que então vestia, e nos sapatos de cordovão que me resguardavam os pés.

Súbito pensei comigo:

- Que impressão faria ao ateniense Alcibíades o nosso vestuário moderno?

Não sei se sabem que sou um tanto espiritista. Não se riam; sou até muito. Posso dizer que vivo, como, durmo, passeio, converso, bebo café e espero morrer na fé de Alan Kardec. Convencido de que todos os sistemas são pura niilidade, adotei o mais jovial de todos.

Sendo espiritista, lembrei-me de evocar Alcibíades; o que imediatamente fiz, convidando-o a comparecer na minha casa, rua de tal, número tantos (placa). Alcibíades é polido e benévolo; não se fez esperar muito. Cinco minutos depois tínhamos ambos aproximado duas civilizações; o tempo e a eternidade conversavam amigàvelmente como pessoas da mesma família.

- Que me queres, curioso mortal?

Não respondi logo; fiquei boquiaberto a contemplá-lo. Não era uma sombra impalpável que eu tinha diante de mim, era um homem de carne e ossos, o próprio Alcibíades, tal qual se fôra de vida, ainda, trajado como se estivera prestes a arengar aos patáus de Atenas.

- De que te espantas? perguntou êle.
- De te ver qual eras antes de mudar de domicílio.

Alcibíades sorriu desta metáfora cansada como se me dissesse que não valia a pena incomodar um membro ilustre do povo mais espirituoso da terra para lhe repetir uma figura já desprezada dos mais pífios retóricos. Sorriu; e sentou-se benèvolamente na cadeira de balanço que ficava defronte de mim. Começamos então uma conversa singularmente interessante. Dei-lhe notícias do século; contei-lhe o que ia pela pátria; falei-lhe do parlamento grego, instituição que êle não compreendeu muito - e referi-lhe a facilidade com que Bulgaris e Comondoura, estadistas seus patrícios, andavam a cair e a subir ao ministério.

- Sempre atenienses! murmurou êle. Mas, afinal por que motivo me mandaste chamar?
- Queria propôr-te uma coisa.
- Dize.
- Queres ir comigo a uma soirée?

A idéia de soirée não podia entrar fàcilmente na cabeça de um grego. Expliquei-lhe conforme pude; e Alcibíades ficou curiosíssimo de ver a coisa de perto.

- Já agora, disse êle, não volto à eternidade sem ver alguma coisa do teu século, disse êle. Onde fica isso?
- Devagar, repliquei eu. Para ires lá é preciso que deixes aqui a roupa que trazes, e vistas outra que te vou emprestar. Aliás imaginarás que representas uma comédia de Aristófanes. Anda comigo.
- Não seja essa a dúvida. Só te peço que te vistas primeiro.

Levantei-me, o meu hóspede ficou imensamente admirado de me ver as calças, que êle chamou canudos de pano. Respondi que usavamos isto por maior comodidade; que o nosso século, mais recatado que estético, determinara trajar de um modo compatível com seu decôro e gravidade. Alcibíades refletiu um instante, abanou a cabeça e seguiu-me ao quarto de vestir.

Mudei de toilette o mais depressa que pude, com grande pasmo do ateniense. As calças pretas, por exemplo, excitaram uma gargalhada que ofendeu o meu melindre de homem moderno.

- Canudos pretos! exclamou êle. Por que motivo preferes essa côr escura e feia?
- Feia, mas séria. Vê, entretanto, a graça do corte. Afianço-te que é obra da melhor tesoura do Rio de Janeiro. Demais, é uso.

O pasmo de Alcibíades aumentou quando me viu atar a gravata. Correu para mim, supondo que ia enforcar-me. Tranqüilizei-o, e vesti o colete.

- Por Vênus! exclamou êle. És a coisa mais singular que jamais vi. Estás todo côr da noite - uma noite com três estrêlas apenas, - continuou apontando para os botões da camisa. O mundo deve estar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma côr tão morta e triste. Nós eramos mais alegres; vivíamos...

Não pôde concluir a frase; eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi indescritível. Os braços cairam-lhe, e uma espécie de sufocação embargou-lhe a voz. Seus olhos estavam cravados em mim; o peito arfava-lhe. Enfim pôde suspirar:

- Estás completo?
- Ainda não; falta o chapéu.
- Oh! Venha alguma coisa que possa corrigir o resto! disse êle. Assim pois, tôda a elegância que nós vos legamos, está reduzida a dois canudos fechados e dois canudos abertos e tudo dessa côr enfadonha e negativa! Não, não posso crê-lo. Alguma coisa há de vir que corrija semelhante coisa. Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.

Obedeci. Fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades olhou para êle e para mim, empalideceu e cambaleou. Corri ao ilustre ateniense; era tarde. Tinha caído no chão. Quando lhe pus a mão no peito, vi que estava diante de um cadáver. Que havia de fazer? Mandei-lhe para o necrotério."

Victor de Paula


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