terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Duas versões de um conto de Machado

Seguem trechos de um artigo que escrevi em 2008, em disciplina do prof. Helio Guimarães, analisando duas versões do conto Uma visita de Alcibíades, de Machado de Assis. A primeira versão, mais difícil de encontrar, está transcrita em seguida.

As editoras

A coletânea Papéis avulsos reúne doze contos que haviam sido publicados anteriormente em periódicos, entre 1875 e 1882. Teve sua primeira edição lançada em 1882 pela casa Lombaerts. O belga Jean-Baptiste Lombaerts e seu filho faziam impressões por encomenda e, como livreiros, lidavam principalmente com jornais e revistas. Eram os responsáveis pela revista A Estação, em que Machado de Assis colaborou com muitos contos e também com a seriação do romance Quincas Borba, entre 1886 e 1891. A casa publicou poucos livros, mas imprimiu algumas obras lançadas pela Garnier.

Durante as últimas décadas do século XIX, Garnier e Laemmert eram os principais editores de livros no país. Não exatamente concorrentes, pois concentravam seus interesses em áreas diferentes. Laemmert se dedicava principalmente a livros de história e ciência. Garnier era o mais importante editor de literatura brasileira no período ou, mais especificamente, o maior editor de livros de ficção de escritores brasileiros. Era de Garnier o Jornal das Famílias, periódico em que foi publicado pela primeira vez o conto Uma visita de Alcibíades, em 1876.

No início da década de 1880, Memórias Póstumas de Brás Cubas saiu em forma seriada na Revista Brasileira, de Laemmert. A versão em livro foi publicada pela Typographia Nacional em 1881. Seu próximo livro de contos, Histórias sem data, sairia pela Garnier em 1884 . O panorama um pouco confuso deixa clara a intensa atividade de Machado de Assis no período, como escritor e agente comercial de seus próprios trabalhos.


Os periódicos

O Jornal das Famílias era uma revista feminina, impressa em Paris, onde Garnier mantinha um leitor de provas em português. Era a continuação da publicação quinzenal ilustrada Revista Popular, lançada em 1859 e impressa no Brasil por Pinheiro & Cia. Três fatores contribuíram para a mudança do nome e do local de impressão: a regularidade das viagens de navio, o preço e a qualidade do produto europeu. O material realizado no Brasil utilizava máquinas e papel importado, e o custo de vida no Rio de Janeiro era pouco competitivo, devido aos altos impostos aplicados à mercadoria estrangeira. Além disso havia o gosto do público por tudo que era francês. A expressão “nitidamente impressa e suntuosamente encadernada em Pariz” era usual nos anúncios publicitários do período .

A revista apresentava ensinamentos religiosos, crônicas culinárias e dava bastante destaque para a moda, com ilustrações coloridas. Machado ali publicou setenta contos, entre 1854 e 1878 . Segundo John Gledson, ele era o espírito orientador da revista no aspecto literário. Havia uma relação entre seus textos e o público leitor do periódico: o público real que comprava a revista, e o gosto desse público, conforme Machado o observava e presumia .

A relação não era simples nem linear. Gledson sugere uma postura diferente de Machado nos três periódicos em que sua colaboração foi mais importante: o Jornal das Famílias, A Estação e a Gazeta de notícias. Segundo ele, os textos publicados na Gazeta eram mais variados, e ali apareceram muitos de seus contos mais memoráveis. A Gazeta era um jornal liberal, “politicamente independente, vivo e empenhado em apoiar boas produções literárias”. Seu fundador e redator-chefe, Ferreira de Araújo, era muito amigo de Machado.

O Jornal e a Estação eram voltados para o público feminino. Mas ainda assim haveria uma diferença entre as duas revistas: a Estação era mais moderna, argumentando que “as mulheres deviam ser instruídas e não se limitar tão completamente à vida do lar” . Seu primeiro número, lançado em janeiro de 1879 (logo depois que o Jornal deixou de ser publicado, em dezembro de 1878) seria talvez estranhamente simultâneo ao tão mencionado momento de inflexão na obra de Machado, entre o “romancista medíocre e o grande romancista” .

Segundo Lúcia Miguel Pereira, “em 1878 deixou Machado de Assis todas as suas colaborações da imprensa. A Semana Ilustrada já terminara desde 1876, e a Ilustração Brasileira foi suspensa em 1878 por dificuldades financeiras de Henrique Fleiuss (...) Também o Garnier cessou a publicação do Jornal das Famílias. No Cruzeiro ele ainda escreveu até setembro de 1878, mas nesse momento interromperam-se as colaborações de Eleazar.”

Duas versões do conto

O próprio Machado, na nota F de Papéis avulsos, diz que reformou “totalmente” o texto, “não aproveitando mais do que a idéia” . Declaração exagerada, já que não apenas a idéia, mas praticamente toda a ação narrada, algumas frases e expressões inteiras foram mantidas sem nenhuma alteração. Aliás, dependendo da interpretação do termo “idéia”, pode-se dizer que justamente nela está a alteração.

A versão publicada em Papéis avulsos não apresenta o desembargador de um ponto de vista externo, como o primeiro texto. Na coletânea, o conto tem a forma de uma carta que este escreve ao chefe de polícia da corte, datada de 20 de setembro de 1875. Nela se desculpa pelo “tremido da letra e o desgrenhado do estilo” e narra praticamente a mesma cena, com alguma mudança de estilo, supressão e ampliação de passagens. Ao final solicita que o chefe de polícia “se digne de expedir suas respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao necrotério, e se proceda ao corpo de delito”. Conclui pedindo que seja dispensado de ir pessoalmente àquela hora da noite, em atenção ao profundo abalo por que acaba de passar.

Mesmo antes de detalhar alguns trechos incorporados à segunda versão, fica evidente a diferença de tom entre as duas. Embora o caso seja sempre narrado pelo desembargador (função equivalente a um juiz), a primeira situação é cotidiana e despretensiosa. É noite de Natal – uma das “noites de festa anual” - e o homem é “figura obrigada de tais festas” por ser “conversado”, “tão amável conviva”. Contando uma história para moças que “talvez não saibam que Plutarco é um autor grego”, ele toma inclusive o cuidado de advertir que este, embora “profano e pagão”, “tem muitos merecimentos”.

O papel do desembargador, nessa versão, é paralelo ao papel do próprio Machado que, como escritor, também está apresentando uma anedota para as moças leitoras da revista. Também ele supõe que essas leitoras desconheçam Plutarco. O paralelismo é ressaltado pela simpática ironia na primeira frase do personagem: a história que se segue não é dessas de “redatores de folhinhas”, mas realmente aconteceu. Truque usual de contadores de causos, conhecido dos ouvintes: afirmar enfaticamente a veracidade do absurdo que se seguirá. Ao mesmo tempo, no plano real e editorial, é de fato uma anedota de folhinha, os leitores sabem disso e o escritor também. Mas, sendo Machado de Assis, a ironia se transforma numa espécie de verdade, já que o conto foi recuperado com pretensões maiores, revisado, reimpresso em forma de livro, e sobreviveu na coletânea hoje considerada notável.

O estilo da segunda versão é mais sóbrio, e o discurso põe ênfase em aspectos cultos, dignos de um desembargador em posição oficial. O chefe de polícia é tratado de Vossa Excelência, a leitura do livro de Plutarco e explicada por uma “antiga devoção do grego”, e lido no original (“loqüela ática”, em vez de “tradução de Amyot”). Explicando sua adesão ao espiritismo, o desembargador comenta que esse credo, no futuro, poderá ser “útil à solução de problemas históricos”, em vez de apenas recreativo ou jovial. Está bem evidente o novo estilo de discurso, que nunca chega a ser sisudo, mas perde muito de sua descontração anterior.

Na segunda versão, diz-se: “Sou espírita desde alguns meses”. No texto anterior, está “Não sei se sabem que sou um tanto espiritista. Não se riam; sou até muito. Posso dizer que vivo, como, durmo, passeio, converso, bebo café e espero morrer na fé de Alan Kardec”. Difícil disfarçar uma simpatia pela primeira versão. Embora a ironia continue presente na versão do livro, quando se propõe o uso do espiritismo no estudo da história pois “é mais sumário evocar o espírito dos mortos do que gastar as forças críticas (...) em pura perda, porque não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o próprio autor” - ainda assim, essa ironia refinada parece um tanto pesada. A enumeração das banalidades na primeira frase (conversar e beber café na fé de Alan Kardec) reduz o espiritismo a quase nada, assim como Plutarco e Alcibíades, aliás, no restante da narrativa. A ironia permanece na segunda versão, mas não com a mesma leveza.

Plutarco e Alcibíades

Cumpre dizer que Alcibíades, conforme descrito por Plutarco, não é exatamente um exemplo de ateniense sábio. Interessava-se por roupas, meio afeminado, passeando pela cidade vestido em púrpura. Sua atuação era política e militar, homem astuto, vaidoso, um tanto desleal. Machado não esconde essa personalidade. O grego estava ali “como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão” e se menciona que “também houvesse pataus [indivíduos ignorantes] em Atenas”. No episódio sugerido, Alcibíades corta a cauda de um cão para criar motivo concreto à maledicência: era um “cão notável pelo tamanho e beleza”, e todos na cidade o criticam pelo ato; ele responde “Estão fazendo (...) o que eu queria; eu queria que falassem disso em Atenas, para não dizerem de mim coisas piores.” (Plutarco, p. 110-111)

Não é uma Grécia idealizada, mas o leitor desavisado de Machado talvez entendesse assim: por seu próprio senso comum, que o conto não se esforça a desmentir.


Bibliografia

Assis, M. d. (2000). Papéis avulsos. Rio de Janeiro - Belo Horizonte: Livraria Garnier.

Gledson, J. (2006). Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras.

Guimarães, H. d. (2004). Os leitores de Machado de Assis. São Paulo: Nankin Editorial ; Edusp.

Hallewell, L. (2005). O livro no Brasil. São Paulo: Edusp.

Magalhães Júnior, R. (1956). Prefácio. In: M. d. Assis, Contos esparsos (pp. 1-12). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Pereira, L. M. (1988). Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Belo Horizonte - São Paulo: Itatiaia ; Edusp.

Plutarco. (1963). Vidas. (J. Bruna, Trad.) São Paulo: Cultrix.

Rocha, J. C. (2006). "Rosebud" e o Santo Graal: uma hipótese para a leitura dos contos de Machado de Assis. Teresa (6/7), 164-184.

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