Seguem trechos de um artigo que escrevi em 2008, em disciplina do prof. Helio Guimarães, analisando duas versões do conto Uma visita de Alcibíades, de Machado de Assis. A primeira versão, mais difícil de encontrar, está transcrita em seguida.
As editoras
A coletânea Papéis avulsos reúne doze contos que haviam sido publicados anteriormente em periódicos, entre 1875 e 1882. Teve sua primeira edição lançada em 1882 pela casa Lombaerts. O belga Jean-Baptiste Lombaerts e seu filho faziam impressões por encomenda e, como livreiros, lidavam principalmente com jornais e revistas. Eram os responsáveis pela revista A Estação, em que Machado de Assis colaborou com muitos contos e também com a seriação do romance Quincas Borba, entre 1886 e 1891. A casa publicou poucos livros, mas imprimiu algumas obras lançadas pela Garnier.
Durante as últimas décadas do século XIX, Garnier e Laemmert eram os principais editores de livros no país. Não exatamente concorrentes, pois concentravam seus interesses em áreas diferentes. Laemmert se dedicava principalmente a livros de história e ciência. Garnier era o mais importante editor de literatura brasileira no período ou, mais especificamente, o maior editor de livros de ficção de escritores brasileiros. Era de Garnier o Jornal das Famílias, periódico em que foi publicado pela primeira vez o conto Uma visita de Alcibíades, em 1876.
No início da década de 1880, Memórias Póstumas de Brás Cubas saiu em forma seriada na Revista Brasileira, de Laemmert. A versão em livro foi publicada pela Typographia Nacional em 1881. Seu próximo livro de contos, Histórias sem data, sairia pela Garnier em 1884 . O panorama um pouco confuso deixa clara a intensa atividade de Machado de Assis no período, como escritor e agente comercial de seus próprios trabalhos.
Os periódicos
O Jornal das Famílias era uma revista feminina, impressa em Paris, onde Garnier mantinha um leitor de provas em português. Era a continuação da publicação quinzenal ilustrada Revista Popular, lançada em 1859 e impressa no Brasil por Pinheiro & Cia. Três fatores contribuíram para a mudança do nome e do local de impressão: a regularidade das viagens de navio, o preço e a qualidade do produto europeu. O material realizado no Brasil utilizava máquinas e papel importado, e o custo de vida no Rio de Janeiro era pouco competitivo, devido aos altos impostos aplicados à mercadoria estrangeira. Além disso havia o gosto do público por tudo que era francês. A expressão “nitidamente impressa e suntuosamente encadernada em Pariz” era usual nos anúncios publicitários do período .
A revista apresentava ensinamentos religiosos, crônicas culinárias e dava bastante destaque para a moda, com ilustrações coloridas. Machado ali publicou setenta contos, entre 1854 e 1878 . Segundo John Gledson, ele era o espírito orientador da revista no aspecto literário. Havia uma relação entre seus textos e o público leitor do periódico: o público real que comprava a revista, e o gosto desse público, conforme Machado o observava e presumia .
A relação não era simples nem linear. Gledson sugere uma postura diferente de Machado nos três periódicos em que sua colaboração foi mais importante: o Jornal das Famílias, A Estação e a Gazeta de notícias. Segundo ele, os textos publicados na Gazeta eram mais variados, e ali apareceram muitos de seus contos mais memoráveis. A Gazeta era um jornal liberal, “politicamente independente, vivo e empenhado em apoiar boas produções literárias”. Seu fundador e redator-chefe, Ferreira de Araújo, era muito amigo de Machado.
O Jornal e a Estação eram voltados para o público feminino. Mas ainda assim haveria uma diferença entre as duas revistas: a Estação era mais moderna, argumentando que “as mulheres deviam ser instruídas e não se limitar tão completamente à vida do lar” . Seu primeiro número, lançado em janeiro de 1879 (logo depois que o Jornal deixou de ser publicado, em dezembro de 1878) seria talvez estranhamente simultâneo ao tão mencionado momento de inflexão na obra de Machado, entre o “romancista medíocre e o grande romancista” .
Segundo Lúcia Miguel Pereira, “em 1878 deixou Machado de Assis todas as suas colaborações da imprensa. A Semana Ilustrada já terminara desde 1876, e a Ilustração Brasileira foi suspensa em 1878 por dificuldades financeiras de Henrique Fleiuss (...) Também o Garnier cessou a publicação do Jornal das Famílias. No Cruzeiro ele ainda escreveu até setembro de 1878, mas nesse momento interromperam-se as colaborações de Eleazar.”
Duas versões do conto
O próprio Machado, na nota F de Papéis avulsos, diz que reformou “totalmente” o texto, “não aproveitando mais do que a idéia” . Declaração exagerada, já que não apenas a idéia, mas praticamente toda a ação narrada, algumas frases e expressões inteiras foram mantidas sem nenhuma alteração. Aliás, dependendo da interpretação do termo “idéia”, pode-se dizer que justamente nela está a alteração.
A versão publicada em Papéis avulsos não apresenta o desembargador de um ponto de vista externo, como o primeiro texto. Na coletânea, o conto tem a forma de uma carta que este escreve ao chefe de polícia da corte, datada de 20 de setembro de 1875. Nela se desculpa pelo “tremido da letra e o desgrenhado do estilo” e narra praticamente a mesma cena, com alguma mudança de estilo, supressão e ampliação de passagens. Ao final solicita que o chefe de polícia “se digne de expedir suas respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao necrotério, e se proceda ao corpo de delito”. Conclui pedindo que seja dispensado de ir pessoalmente àquela hora da noite, em atenção ao profundo abalo por que acaba de passar.
Mesmo antes de detalhar alguns trechos incorporados à segunda versão, fica evidente a diferença de tom entre as duas. Embora o caso seja sempre narrado pelo desembargador (função equivalente a um juiz), a primeira situação é cotidiana e despretensiosa. É noite de Natal – uma das “noites de festa anual” - e o homem é “figura obrigada de tais festas” por ser “conversado”, “tão amável conviva”. Contando uma história para moças que “talvez não saibam que Plutarco é um autor grego”, ele toma inclusive o cuidado de advertir que este, embora “profano e pagão”, “tem muitos merecimentos”.
O papel do desembargador, nessa versão, é paralelo ao papel do próprio Machado que, como escritor, também está apresentando uma anedota para as moças leitoras da revista. Também ele supõe que essas leitoras desconheçam Plutarco. O paralelismo é ressaltado pela simpática ironia na primeira frase do personagem: a história que se segue não é dessas de “redatores de folhinhas”, mas realmente aconteceu. Truque usual de contadores de causos, conhecido dos ouvintes: afirmar enfaticamente a veracidade do absurdo que se seguirá. Ao mesmo tempo, no plano real e editorial, é de fato uma anedota de folhinha, os leitores sabem disso e o escritor também. Mas, sendo Machado de Assis, a ironia se transforma numa espécie de verdade, já que o conto foi recuperado com pretensões maiores, revisado, reimpresso em forma de livro, e sobreviveu na coletânea hoje considerada notável.
O estilo da segunda versão é mais sóbrio, e o discurso põe ênfase em aspectos cultos, dignos de um desembargador em posição oficial. O chefe de polícia é tratado de Vossa Excelência, a leitura do livro de Plutarco e explicada por uma “antiga devoção do grego”, e lido no original (“loqüela ática”, em vez de “tradução de Amyot”). Explicando sua adesão ao espiritismo, o desembargador comenta que esse credo, no futuro, poderá ser “útil à solução de problemas históricos”, em vez de apenas recreativo ou jovial. Está bem evidente o novo estilo de discurso, que nunca chega a ser sisudo, mas perde muito de sua descontração anterior.
Na segunda versão, diz-se: “Sou espírita desde alguns meses”. No texto anterior, está “Não sei se sabem que sou um tanto espiritista. Não se riam; sou até muito. Posso dizer que vivo, como, durmo, passeio, converso, bebo café e espero morrer na fé de Alan Kardec”. Difícil disfarçar uma simpatia pela primeira versão. Embora a ironia continue presente na versão do livro, quando se propõe o uso do espiritismo no estudo da história pois “é mais sumário evocar o espírito dos mortos do que gastar as forças críticas (...) em pura perda, porque não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o próprio autor” - ainda assim, essa ironia refinada parece um tanto pesada. A enumeração das banalidades na primeira frase (conversar e beber café na fé de Alan Kardec) reduz o espiritismo a quase nada, assim como Plutarco e Alcibíades, aliás, no restante da narrativa. A ironia permanece na segunda versão, mas não com a mesma leveza.
Plutarco e Alcibíades
Cumpre dizer que Alcibíades, conforme descrito por Plutarco, não é exatamente um exemplo de ateniense sábio. Interessava-se por roupas, meio afeminado, passeando pela cidade vestido em púrpura. Sua atuação era política e militar, homem astuto, vaidoso, um tanto desleal. Machado não esconde essa personalidade. O grego estava ali “como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão” e se menciona que “também houvesse pataus [indivíduos ignorantes] em Atenas”. No episódio sugerido, Alcibíades corta a cauda de um cão para criar motivo concreto à maledicência: era um “cão notável pelo tamanho e beleza”, e todos na cidade o criticam pelo ato; ele responde “Estão fazendo (...) o que eu queria; eu queria que falassem disso em Atenas, para não dizerem de mim coisas piores.” (Plutarco, p. 110-111)
Não é uma Grécia idealizada, mas o leitor desavisado de Machado talvez entendesse assim: por seu próprio senso comum, que o conto não se esforça a desmentir.
Bibliografia
Assis, M. d. (2000). Papéis avulsos. Rio de Janeiro - Belo Horizonte: Livraria Garnier.
Gledson, J. (2006). Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras.
Guimarães, H. d. (2004). Os leitores de Machado de Assis. São Paulo: Nankin Editorial ; Edusp.
Hallewell, L. (2005). O livro no Brasil. São Paulo: Edusp.
Magalhães Júnior, R. (1956). Prefácio. In: M. d. Assis, Contos esparsos (pp. 1-12). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Pereira, L. M. (1988). Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Belo Horizonte - São Paulo: Itatiaia ; Edusp.
Plutarco. (1963). Vidas. (J. Bruna, Trad.) São Paulo: Cultrix.
Rocha, J. C. (2006). "Rosebud" e o Santo Graal: uma hipótese para a leitura dos contos de Machado de Assis. Teresa (6/7), 164-184.
terça-feira, 17 de janeiro de 2012
Uma visita de Alcibíades, de Machado de Assis
A pedido de um leitor do blog, segue a primeira versão do conto, diferente daquela publicada em Papéis avulsos. O texto foi transcrito a partir da coletânea Contos esparsos, com organização e prefácio de R. Magalhães Júnior (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1956, pps. 203-207).
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Uma visita de Alcibíades
in Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1876, p. 305-308
O desembargador Alvares bebeu a última gota de genuíno café, limpou os bigodes ao guardanapo e dispôs-se a obedecer às moças que lhe pediam uma anedota. Era noite de Natal; e o comendador costumava a reunir alguns amigos. O desembargador era figura obrigada de tais festas. Conversado, galhofeiro, palrador, trazendo sempre no alforje da memória boa cópia de anedotas que distribuía às meninas e rapazes curiosos, não era possível passar sem êle naquelas noites de festa anual. A única alteração que havia era uma chícara de café que o desembargador não dispensava nunca, alegando que o chá ia levando a humanidade para a total extinção.
- Carlos Magno não bebia chá e podia com a sua célebre espada, dizia êle; se bebesse café não sei o que teria deixado de fazer.
Mas uma chícara de café era fraco preço para tão amável conviva. Por isso, a dona da casa mandara vir da fazenda de um tio um excelente saco de café de que bebia, a qualquer hora, o desembargador, quando ali ia, e ia sempre. Nas noites de festas fartava-se o desembargador daquela bebida favorita.
Afiaram todos o ouvido, e o desembargador começou:
"- Não contarei uma anedota mentirosa, dessas que os redatores de folhinhas aumentam ou remendam para regalo dos fregueses. Vou referir o que me aconteceu sábado passado.
Sábado passado, logo depois do jantar, estirei-me no divã e abri uma página de Plutarco. Estas meninas talvez não saibam que Plutarco é um autor grego. Pois fiquem sabendo. É autor profano e pagão. Sem embargo disso, tem muitos merecimentos.
Lia Plutarco, acontecendo-me o que sempre me acontece quando abro um livro da antiguidade. Passo todo em espírito para o tempo do livro. Depois de jantar é excelente; e acompanhado de um bom charuto de Havana não há nada melhor. O fumo envolve a imaginação numa espécie de nimbo extremamente favorável às evocações mentais. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a rua do Ouvidor, e o Circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga por trezentos réis, termo médio, que é o preço do charuto. Uma verdadeira digestão literária.
Ora, foi isso o que aconteceu sábado passado. A página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades; deixei-me ir ao sabor da tradução de Amyot. Daí a pouco estava nos jogos olímpicos, a contemplar o elegante ateniense, guiando os seus sete carros, com a firmeza e o donaire com que havia de reger mais tarde as armadas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imaginem se vivi! Mas não há bem que sempre dure. Acabou o charuto, desfez-se o nimbo, a antiga Atenas volveu ao cemitério da história e cairam-me os olhos no casaco branco, que então vestia, e nos sapatos de cordovão que me resguardavam os pés.
Súbito pensei comigo:
- Que impressão faria ao ateniense Alcibíades o nosso vestuário moderno?
Não sei se sabem que sou um tanto espiritista. Não se riam; sou até muito. Posso dizer que vivo, como, durmo, passeio, converso, bebo café e espero morrer na fé de Alan Kardec. Convencido de que todos os sistemas são pura niilidade, adotei o mais jovial de todos.
Sendo espiritista, lembrei-me de evocar Alcibíades; o que imediatamente fiz, convidando-o a comparecer na minha casa, rua de tal, número tantos (placa). Alcibíades é polido e benévolo; não se fez esperar muito. Cinco minutos depois tínhamos ambos aproximado duas civilizações; o tempo e a eternidade conversavam amigàvelmente como pessoas da mesma família.
- Que me queres, curioso mortal?
Não respondi logo; fiquei boquiaberto a contemplá-lo. Não era uma sombra impalpável que eu tinha diante de mim, era um homem de carne e ossos, o próprio Alcibíades, tal qual se fôra de vida, ainda, trajado como se estivera prestes a arengar aos patáus de Atenas.
- De que te espantas? perguntou êle.
- De te ver qual eras antes de mudar de domicílio.
Alcibíades sorriu desta metáfora cansada como se me dissesse que não valia a pena incomodar um membro ilustre do povo mais espirituoso da terra para lhe repetir uma figura já desprezada dos mais pífios retóricos. Sorriu; e sentou-se benèvolamente na cadeira de balanço que ficava defronte de mim. Começamos então uma conversa singularmente interessante. Dei-lhe notícias do século; contei-lhe o que ia pela pátria; falei-lhe do parlamento grego, instituição que êle não compreendeu muito - e referi-lhe a facilidade com que Bulgaris e Comondoura, estadistas seus patrícios, andavam a cair e a subir ao ministério.
- Sempre atenienses! murmurou êle. Mas, afinal por que motivo me mandaste chamar?
- Queria propôr-te uma coisa.
- Dize.
- Queres ir comigo a uma soirée?
A idéia de soirée não podia entrar fàcilmente na cabeça de um grego. Expliquei-lhe conforme pude; e Alcibíades ficou curiosíssimo de ver a coisa de perto.
- Já agora, disse êle, não volto à eternidade sem ver alguma coisa do teu século, disse êle. Onde fica isso?
- Devagar, repliquei eu. Para ires lá é preciso que deixes aqui a roupa que trazes, e vistas outra que te vou emprestar. Aliás imaginarás que representas uma comédia de Aristófanes. Anda comigo.
- Não seja essa a dúvida. Só te peço que te vistas primeiro.
Levantei-me, o meu hóspede ficou imensamente admirado de me ver as calças, que êle chamou canudos de pano. Respondi que usavamos isto por maior comodidade; que o nosso século, mais recatado que estético, determinara trajar de um modo compatível com seu decôro e gravidade. Alcibíades refletiu um instante, abanou a cabeça e seguiu-me ao quarto de vestir.
Mudei de toilette o mais depressa que pude, com grande pasmo do ateniense. As calças pretas, por exemplo, excitaram uma gargalhada que ofendeu o meu melindre de homem moderno.
- Canudos pretos! exclamou êle. Por que motivo preferes essa côr escura e feia?
- Feia, mas séria. Vê, entretanto, a graça do corte. Afianço-te que é obra da melhor tesoura do Rio de Janeiro. Demais, é uso.
O pasmo de Alcibíades aumentou quando me viu atar a gravata. Correu para mim, supondo que ia enforcar-me. Tranqüilizei-o, e vesti o colete.
- Por Vênus! exclamou êle. És a coisa mais singular que jamais vi. Estás todo côr da noite - uma noite com três estrêlas apenas, - continuou apontando para os botões da camisa. O mundo deve estar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma côr tão morta e triste. Nós eramos mais alegres; vivíamos...
Não pôde concluir a frase; eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi indescritível. Os braços cairam-lhe, e uma espécie de sufocação embargou-lhe a voz. Seus olhos estavam cravados em mim; o peito arfava-lhe. Enfim pôde suspirar:
- Estás completo?
- Ainda não; falta o chapéu.
- Oh! Venha alguma coisa que possa corrigir o resto! disse êle. Assim pois, tôda a elegância que nós vos legamos, está reduzida a dois canudos fechados e dois canudos abertos e tudo dessa côr enfadonha e negativa! Não, não posso crê-lo. Alguma coisa há de vir que corrija semelhante coisa. Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.
Obedeci. Fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades olhou para êle e para mim, empalideceu e cambaleou. Corri ao ilustre ateniense; era tarde. Tinha caído no chão. Quando lhe pus a mão no peito, vi que estava diante de um cadáver. Que havia de fazer? Mandei-lhe para o necrotério."
Victor de Paula
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Uma visita de Alcibíades
in Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1876, p. 305-308
O desembargador Alvares bebeu a última gota de genuíno café, limpou os bigodes ao guardanapo e dispôs-se a obedecer às moças que lhe pediam uma anedota. Era noite de Natal; e o comendador costumava a reunir alguns amigos. O desembargador era figura obrigada de tais festas. Conversado, galhofeiro, palrador, trazendo sempre no alforje da memória boa cópia de anedotas que distribuía às meninas e rapazes curiosos, não era possível passar sem êle naquelas noites de festa anual. A única alteração que havia era uma chícara de café que o desembargador não dispensava nunca, alegando que o chá ia levando a humanidade para a total extinção.
- Carlos Magno não bebia chá e podia com a sua célebre espada, dizia êle; se bebesse café não sei o que teria deixado de fazer.
Mas uma chícara de café era fraco preço para tão amável conviva. Por isso, a dona da casa mandara vir da fazenda de um tio um excelente saco de café de que bebia, a qualquer hora, o desembargador, quando ali ia, e ia sempre. Nas noites de festas fartava-se o desembargador daquela bebida favorita.
Afiaram todos o ouvido, e o desembargador começou:
"- Não contarei uma anedota mentirosa, dessas que os redatores de folhinhas aumentam ou remendam para regalo dos fregueses. Vou referir o que me aconteceu sábado passado.
Sábado passado, logo depois do jantar, estirei-me no divã e abri uma página de Plutarco. Estas meninas talvez não saibam que Plutarco é um autor grego. Pois fiquem sabendo. É autor profano e pagão. Sem embargo disso, tem muitos merecimentos.
Lia Plutarco, acontecendo-me o que sempre me acontece quando abro um livro da antiguidade. Passo todo em espírito para o tempo do livro. Depois de jantar é excelente; e acompanhado de um bom charuto de Havana não há nada melhor. O fumo envolve a imaginação numa espécie de nimbo extremamente favorável às evocações mentais. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a rua do Ouvidor, e o Circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga por trezentos réis, termo médio, que é o preço do charuto. Uma verdadeira digestão literária.
Ora, foi isso o que aconteceu sábado passado. A página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades; deixei-me ir ao sabor da tradução de Amyot. Daí a pouco estava nos jogos olímpicos, a contemplar o elegante ateniense, guiando os seus sete carros, com a firmeza e o donaire com que havia de reger mais tarde as armadas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imaginem se vivi! Mas não há bem que sempre dure. Acabou o charuto, desfez-se o nimbo, a antiga Atenas volveu ao cemitério da história e cairam-me os olhos no casaco branco, que então vestia, e nos sapatos de cordovão que me resguardavam os pés.
Súbito pensei comigo:
- Que impressão faria ao ateniense Alcibíades o nosso vestuário moderno?
Não sei se sabem que sou um tanto espiritista. Não se riam; sou até muito. Posso dizer que vivo, como, durmo, passeio, converso, bebo café e espero morrer na fé de Alan Kardec. Convencido de que todos os sistemas são pura niilidade, adotei o mais jovial de todos.
Sendo espiritista, lembrei-me de evocar Alcibíades; o que imediatamente fiz, convidando-o a comparecer na minha casa, rua de tal, número tantos (placa). Alcibíades é polido e benévolo; não se fez esperar muito. Cinco minutos depois tínhamos ambos aproximado duas civilizações; o tempo e a eternidade conversavam amigàvelmente como pessoas da mesma família.
- Que me queres, curioso mortal?
Não respondi logo; fiquei boquiaberto a contemplá-lo. Não era uma sombra impalpável que eu tinha diante de mim, era um homem de carne e ossos, o próprio Alcibíades, tal qual se fôra de vida, ainda, trajado como se estivera prestes a arengar aos patáus de Atenas.
- De que te espantas? perguntou êle.
- De te ver qual eras antes de mudar de domicílio.
Alcibíades sorriu desta metáfora cansada como se me dissesse que não valia a pena incomodar um membro ilustre do povo mais espirituoso da terra para lhe repetir uma figura já desprezada dos mais pífios retóricos. Sorriu; e sentou-se benèvolamente na cadeira de balanço que ficava defronte de mim. Começamos então uma conversa singularmente interessante. Dei-lhe notícias do século; contei-lhe o que ia pela pátria; falei-lhe do parlamento grego, instituição que êle não compreendeu muito - e referi-lhe a facilidade com que Bulgaris e Comondoura, estadistas seus patrícios, andavam a cair e a subir ao ministério.
- Sempre atenienses! murmurou êle. Mas, afinal por que motivo me mandaste chamar?
- Queria propôr-te uma coisa.
- Dize.
- Queres ir comigo a uma soirée?
A idéia de soirée não podia entrar fàcilmente na cabeça de um grego. Expliquei-lhe conforme pude; e Alcibíades ficou curiosíssimo de ver a coisa de perto.
- Já agora, disse êle, não volto à eternidade sem ver alguma coisa do teu século, disse êle. Onde fica isso?
- Devagar, repliquei eu. Para ires lá é preciso que deixes aqui a roupa que trazes, e vistas outra que te vou emprestar. Aliás imaginarás que representas uma comédia de Aristófanes. Anda comigo.
- Não seja essa a dúvida. Só te peço que te vistas primeiro.
Levantei-me, o meu hóspede ficou imensamente admirado de me ver as calças, que êle chamou canudos de pano. Respondi que usavamos isto por maior comodidade; que o nosso século, mais recatado que estético, determinara trajar de um modo compatível com seu decôro e gravidade. Alcibíades refletiu um instante, abanou a cabeça e seguiu-me ao quarto de vestir.
Mudei de toilette o mais depressa que pude, com grande pasmo do ateniense. As calças pretas, por exemplo, excitaram uma gargalhada que ofendeu o meu melindre de homem moderno.
- Canudos pretos! exclamou êle. Por que motivo preferes essa côr escura e feia?
- Feia, mas séria. Vê, entretanto, a graça do corte. Afianço-te que é obra da melhor tesoura do Rio de Janeiro. Demais, é uso.
O pasmo de Alcibíades aumentou quando me viu atar a gravata. Correu para mim, supondo que ia enforcar-me. Tranqüilizei-o, e vesti o colete.
- Por Vênus! exclamou êle. És a coisa mais singular que jamais vi. Estás todo côr da noite - uma noite com três estrêlas apenas, - continuou apontando para os botões da camisa. O mundo deve estar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma côr tão morta e triste. Nós eramos mais alegres; vivíamos...
Não pôde concluir a frase; eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi indescritível. Os braços cairam-lhe, e uma espécie de sufocação embargou-lhe a voz. Seus olhos estavam cravados em mim; o peito arfava-lhe. Enfim pôde suspirar:
- Estás completo?
- Ainda não; falta o chapéu.
- Oh! Venha alguma coisa que possa corrigir o resto! disse êle. Assim pois, tôda a elegância que nós vos legamos, está reduzida a dois canudos fechados e dois canudos abertos e tudo dessa côr enfadonha e negativa! Não, não posso crê-lo. Alguma coisa há de vir que corrija semelhante coisa. Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.
Obedeci. Fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades olhou para êle e para mim, empalideceu e cambaleou. Corri ao ilustre ateniense; era tarde. Tinha caído no chão. Quando lhe pus a mão no peito, vi que estava diante de um cadáver. Que havia de fazer? Mandei-lhe para o necrotério."
Victor de Paula
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