quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Milagre na cela

Jorge Andrade foi muito criticado por essa peça. Publicada em 1977, sem ter sido encenada, Milagre na cela faria parte de seu "ciclo do presente", encerrando o "ciclo do passado". Joana é uma freira, que trabalha como educadora. É presa, acusada de subversão, e sofre pressão e tortura do encarregado, doutor Daniel. A peça foi acusada de simplificar demais a situação política da época, criando um retrato melodramático.

O discurso de Joana, assumindo para si as culpas do mundo, parece muito com a postura de Marta, na novela O grito.

Eis o final do primeiro ato:

- - -

JOANA - (ainda rindo) Nunca matou ninguém! Então, que é vida pra você? Que entende da vida, se vive morto? Se anda pelo mundo como a própria morte?

DANIEL - Posso mostrar agora mesmo que não estou morto. Como você também não está. Os mortos não gritam de dor!

JOANA - Pois mostre! Como? (insinua) Violentando-me?

DANIEL - (retesado) Posso violentar você com um cabo de vassoura, com um instrumento qualquer.

(...)

JOANA - (provocante) Use o seu instrumento natural para isto!

DANIEL - Como?!

(...)

DANIEL - Desistiu de ser freira? Ou nunca foi?

JOANA - Não desisti. Mas como freira também posso dar vida. O que não posso é dar morte. Tome o meu corpo! Ele não me pertence mais. Agora... deve pertencer a uma causa!

DANIEL - À causa da subversão, não é?

JOANA - À causa de Deus neste mundo abondonado. Use o seu instrumento! Não um cabo de vassoura. Se fizer isto, será a própria morte. Nunca poderá chegar a ser um homem. Venha! Transforme meu corpo de freira, no corpo da mulher que deseja. Seja um homem, um instrumento da vida, não da morte.

DANIEL - (dominado pelo desejo) Vou fazer você gemer, gritar de prazer!

JOANA - Se eu o transformar num homem... terei feito muito a Deus, a todos que agonizam nesta prisão. Venha!... e prove que ainda pode ser um homem.

(Subitamente, Daniel agarra os cabelos de Joana e a beija com violência, possessivo. Angustiada, Joana se entrega.)

JOANA - Meu Deus! É o único caminho... o único!

(Os dois caem no chão)

CORRE A CORTINA.

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(ANDRADE, Jorge. Milagre na cela. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1977.)

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