quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Eduardinho Valente

No última revisão do livro, coloquei este parágrafo:

"Alguns anos mais tarde, quando estava no cursinho, comecei a andar com uns garotos de esquerda. Confessávamos nossas culpas burguesas enquando bebíamos cerveja e discutíamos as injustiças históricas do país. Todos orgulhosos de nossa consciência política, devoção absolutamente sincera."

A idéia estava clara, em teoria, mas havia um cliché nesses jovens militantes de boteco. Também um anacronismo: eu não bebia cerveja aos dezesseis anos. A personagem do livro menos ainda, pois ela aglutina o lado certinho da minha infância.

Resolvi dar mais detalhes, e mudar o sentido da cena:

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"Aos dezesseis anos, quando estava no cursinho, conheci Eduardinho Valente, amigo de uma amiga. Era filho de Eduardo Valente, deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores; sua mãe também era vereadora. Foram as primeiras pessoas filiadas a um partido que conheci. Uma esquerda organizada e diferente do humanismo vago dos meus pais. Num domingo ele nos convidou para ouvir música em sua casa, ficamos na sala seis ou sete amigos do cursinho enquanto seus pais discutiam um assunto na copa, tomando café. Parecia um trabalho, um encontro que haveria na próxima semana, mas em meio à conversa apareciam comentários irônicos e interrupções súbitas; falavam alto, eu ouvia o nome de figuras públicas, algumas frases se interrompiam com olhares. Balançavam o rosto, gesticulavam, repetiam muito as expressões: "não é desse jeito", "assim não pode ser". Depois desse dia passei a ter vergonha de nossas conversas na lanchonete do cursinho, quando almoçávamos em turma esperando a aula da tarde, bebendo refrigerante e rindo depois de terminar os sanduíches. Às vezes discutíamos as injustiças sociais do país, a corrupção e o absurdo da última eleição presidencial, e ríamos e repetíamos frases ouvidas na TV. Só Eduardinho Valente ficava quieto. Parei de falar nessas ocasiões, com medo de dizer algo errado na frente dele."

5 comentários:

Paulodaluzmoreira disse...

Não se fie tanto nessa conversa - esse pessoal quer fazer a cabeça das pessoas para que elas cuidem bem dos seus cães e exageram no tom e no conteúdo. Cachorros são sobreviventes natos, acima de tudo. Eu adoro um romance de um russo [Bulgakov] chamado "Heart of a Dog" [não sei se foi traduzido para o português] que ele abre com a "voz" de um cão abandonado nas ruas de Moscou no inverno. Um cozinheiro tinha jogado água fervendo para espantar o pobre do cão e uma hora o cão diz assim:
"My side hurts dreadfully, and I can see my future quite clearly: tomorrow I’ll have sores, and, I ask you, what am I going to cure them with? In summertime, you can run down to Sokolniki Park. There is a special kind of grass there, excellent grass. Besides you can gorge yourself on free sausage ends. And there’s the greasy paper left all over by the citizens – lick it to your heart’s content! And if it weren’t for that nuisance who sings “Celeste Aida” in the field under the moon so that your heart sinks, it would be altogether perfect. But where can you go now? Were you kicked with a boot? You were. Were you hit with a brick in the ribs? Time and again. I’ve tasted everything, but I’ve made peace with my fate, and if I’m whining now, it’s only because of the pain and the cold – because my spirit hasn’t yet gone out of my body…. A dog is hard to kill, his spirit clings to life."

júlia disse...

sabina, acho o nome "eduardinho valente" tão explícito que me incomoda. beijo.

sabina anzuategui disse...

Sim, acho que você tem razão.
Vou pensar em outro nome, apenas parcialmente explicito. Mais no fim do livro há referência a outro político, "Carlos Antonio Magalhães". Horroroso, né? Meu eu queria por os nomes verdadeiros e não sei como fazer exatamente, até que ponto dissimular.

júlia disse...

acho desnecessariamente perigoso colocar os nomes verdadeiros, ainda mais no caso do segundo, que mesmo morto é um perigo de homem. no caso do eduardinho valente eu não sei, mas alguma coisa que vá pra sonoridade? tipo: Antonio Sardos Guimarães. se tiver contexto, qualquer brasileiro sabe de quem você está falando.

sabina anzuategui disse...

Troquei "Valente" por "Lima". Queria manter um sobrenome com sentido real. Quanto ao ACM, substituí por "um senador pelo Sergipe". Não precisa dizer um nome.