segunda-feira, 12 de maio de 2008

Aquele casal

Voltei a escrever o livro. Estou feliz.

Mudei o início e retirei a oficina literária, para evitar qualquer sinal de metalinguagem. A revisão é um processo doido - dar liberdade ao preciosismo. Por exemplo, resolvi inverter os gêneros de dois personagens, o terapeuta e a professora. Viraram uma só figura: uma psicóloga. Por quê? Acho que simplesmente para afastar de minha memória meu primeiro psicanalista, lembrança que me incomoda.

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"Talvez eu estivesse errada quando decidi interromper o tratamento com a psicóloga. Meu irmão disse, ela era inteligente. Seria provavelmente mais capaz de interpretar o que não consegui.

Quando eu não queria falar, ela improvisava brincadeiras. Havia uma mesa larga no fundo do consultório, onde atendia as crianças. Um dia me chamou e colocou folhas de papel branco à minha frente. Me deu lápis coloridos e tinta guache. Pediu que eu desenhasse alguma coisa, qualquer coisa que passasse pela minha cabeça. Eu não sabia bem, demorei um pouco, envergonhada. Por fim pensei em desenhar o quintal da casa vizinha, onde morava minha amiga, que eu via da janela. Sempre que acordava e abria as cortinas, eu via esse quintal descuidado, com plantas e mato crescendo sem nenhuma ordem. Fiz o contorno do terreno e desenhei minha amiga cuidando das plantas, grávida. Eu tinha sua imagem muito clara na memória, não foi difícil. Então a psicóloga pediu que eu explicasse o que havia feito.

Comecei a falar sobre minha vizinha, sua relação com o marido que era militante de esquerda, como tomávamos café-da-manhã aos sábados e me impressionava tanto aquele casal, a barriga de minha amiga crescendo, essa criança que iria nascer mas nunca era mencionada, apenas crescia naquela barriga enquanto eles discutiam a relação da imprensa com o Movimento dos Sem-Terra.

A psicóloga perguntou por que eu havia desenhado um muro à esquerda do papel, colocando minha amiga no centro desenho e minha casa no outro canto, somente um pedaço, o bico do telhado e a janela. Eu não soube responder. Ela repetiu a pergunta: por que havia uma janela e um muro separando meu quarto do quintal e minha amiga?

Eu pensei num resposta, mas não disse. Parecia óbvio e tive vergonha de dizer. A gravidez significaria qualquer coisa que talvez não importe, mas eu percebia o sentimento: a sensação de que aquilo não era meu.

Aquilo - o que fosse - era dos outros."

Um comentário:

ELISA MARCONI disse...

Sabina cara, eu gosto tanto de receber os seus posts porque liga em mim um botão da necessidade de escrever que tenho e me escapole de vez em quando. Hoje atravessei a Consolação pela passagem subterrânea. Talvez fosse a soma da exposição de roupas antigas com os livros do sebo e com a música tão esquisita quanto alegre que tocava no canto direito lá no fundo. Talvez tenha sido a baforada gelada que recebi na cara quando cheguei ao outro lado da avenida. O fato é que me senti ABSOLUTAMENTE, TOTALMENTE 100%MENTE em São Paulo. Na São Paulo que não é minha e que como meus textos me escapole entre os dedos. Nesse exato momento pensei em você e na alegria que é ter um blog onde postar essas coisas tão fugazes.... Um beijo carinhoso.