quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O mercadinho

Da minha janela, na Bela Vista, eu vejo o que foi o vale do córrego Saracura um século atrás. Hoje o vale é um mosaico de prédios subindo a encosta até o Parque Trianon. Eu moro na parte baixa, onde nasce o córrego, uma mina de água que brota nos fundos de um grande condomínio. A água passa por canos no muro e escorre sobre a calçada até as calhas de esgoto. O córrego segue canalizado até a praça 14 Bis e continua subterrâneo à avenida Nove de Julho até o centro da cidade. Na época do Império, a praça 14 Bis era um brejo cercado de bambuzais onde escravos fugidos se escondiam. A saracura é um pássaro de brejo, de canto estridente e repetitivo. Quando eu era criança e choramingava, minha mãe brincava: "Canta, minha saracura."


Na frente do meu prédio há cinco sobrados antigos. Num deles há um terreiro de candomblé, o pai de santo alto e gordo tem um jipe moderno. Ao lado há uma lojinha familiar de bolachas e salgadinhos, e um bar que serve apenas cerveja, aos mesmos frequentadores, meia dúzia de homens no fim da tarde em volta de duas mesas de plástico.

No único sobrado de dois andares mora uma mulher velha, magra, sempre fumando na soleira, em shorts justos de ginástica. De chinelos, camiseta velha, os cabelos mal pintados com longas raízes brancas, ela acompanha as pessoas que passam com um olhar meio debochado. Ao seu pé fica um cachorro velho, preso por uma coleira, que levanta o pescoço às vezes, mas não late. A mulher é provavelmente casada com um senhor que fica à janela o dia todo de cara fechada. De manhã cedo ele varre a calçada e deixa o monte num canto, esperando o lixeiro passar. Se alguma criança mexe, ele reclama.

Eu passo dias inteiros no apartamento. Saio apenas de manhã para caminhar, compro alguma comida na feira ou algum mercado, depois volto e fico o resto do dia no meu canto, os meus trinta metros quadrados. Meu único rendimento e trabalho fixo é numa escola de teatro na Lapa, terças e quintas das sete às dez da noite. Terça tenho aulas, quinta oriento os projetos dos alunos. É uma escola particular de formação de atores, fundada por uma atriz que faleceu em 1992.


Quando vou para a Lapa saio às três da tarde. Já há movimento nas ruas, mas os ônibus ainda não estão cheios demais. Saio do prédio e cumprimento com um aceno minha vizinha do sobrado em frente. Se o dono do bar estiver olhando, eu o cumprimento também. Sigo pela calçada à direita, passo por uma serralheria, um casarão reformado com quartos para alugar, e subo a rua Conselheiro Carrão. No caminho tem um mercadinho onde recarrego os créditos de meu cartão de ônibus. Às vezes a senhora do sobrado está ali, comprando cigarros, tomando café e conversando com a dona. Ela leva seu cachorro e o amarra na entrada, ao lado de uma cestas com bananas, tomates e cebolas para vender.


A dona do mercadinho é uma senhora baixa e gorda, sempre de vestido e meias de compressão. Fica no caixa e conversa aos gritos com a filha e a neta que moram no interior da casa. O mercadinho ocupa o espaço da antiga sala do sobrado. As casas dessa rua foram construídas oitenta anos atrás, não tinham garagem. Um dia fui carregar meu bilhete e a neta estava no caixa, uma menina magra de uns treze anos. Enquanto eu esperava, vi o cachorro da minha vizinha amarrado ao lado da cesta de tomates. Um mendigo chegou devagar e parou ao lado do cachorro. Olhou a menina no caixa, estendeu a mão e pediu alguma coisa, numa voz enrolada e incompreensível de gente já muito prejudicada. Era um mendigo velho, enrolado num cobertor sujo.


A menina e sua avó, no mercadinho, estão acostumadas com mendigos. Elas não podem dar muita coisa, senão aparecem muitos, a toda hora. Geralmente a dona oferece um copo descartável com água. Se pedem mais, ela diz: “Volta às sete.”. Essa é a hora em que o mercadinho fecha, todos os comerciantes do bairro fazem isso, dão alguma coisa no horário de fechar, quando não há mais risco de atrapalhar os clientes. Imagino que ela ofereça um pedaço de bolo ou algum dos salgados que ficaram expostos a tarde toda no balcão.


Enquanto eu esperava meu cartão de ônibus, a menina gritou para o fundo do mercadinho chamando a avó. Eu olhei o cachorro amarrado, velho e sujo, rosnando fraco para o mendigo. É errado julgar pelas aparências, mas olhando os dois tive eu preferi o mendigo, de rosto negro e sereno apesar dos olhos embaçados. Não simpatizo com cachorros de focinho amassado. A dona, minha vizinha, apareceu na esquina onde havia um boteco, trazendo uma sacola plástica com algumas latinhas de cerveja. Ela parou quando viu o mendigo junto à cesta de tomates. Ela provavelmente queria pegar seu cachorro e ir embora, mas o velho impedia. Sem outra opção de diálogo, ela deu uma lata de cerveja para o homem, fazendo um gesto irritado para ele ir.


O mendigo segurou a lata e continuou imóvel. Olhava a mulher e não reagia. A dona do mercadinho chegou e mandou a neta para dentro. O mendigo ficou um tempo parado com a lata na mão. Finalmente ele seguiu andando, segurando a lata fechada, como se mal soubesse o que era. Eu pensei por um instante que a cerveja iria esquentar, se ele a segurasse muito tempo na mão.


Eu ainda estava parada ao lado do caixa do mercadinho, agora com a avó, sem a neta. Expliquei que esperava meu cartão de ônibus. A dona carregou os créditos e o devolveu. A mulher do sobrado pegou seu cachorro e seguiu para casa.


Eu caminhei até a Rui Barbosa e esperei o 967A-10 Imirim, no ponto em frente ao Bradesco. O Imirim é meio demorado mas em teoria, se não atrasar, passa às três e quinze. Raramente eu consigo sentar, pois ele vem coletando passageiros desde a Vila Mariana. Geralmente consigo um canto perto da porta de saída. Um canto protegido para ficar em pé, fora da passagem, já é uma grande vantagem no ônibus. É o horário em que as faxineiras e empregadas domésticas voltam para casa, elas merecem sentar depois de um dia inteiro de trabalho. Eu não fico muito tempo nesse ônibus, preciso descer no centro e pegar outro, e fico mais tranquila perto da porta. Em uma noite de aula, recebo um pouco mais que uma diária de faxina. Não muito mais.


O Imirim passa pelo viaduto sobre a avenida Nove de Julho na altura da praça Roosevelt. Olhando a avenida pela janela do ônibus, entre os prédios escuros de fumaça, penso que um século atrás era possível chegar até a Lapa seguindo os rios. O córrego Saracura juntava-se ao ribeirão Anhangabaú (na atual praça da Bandeira), descia até Tamanduateí (no atual Mercado Municipal), e depois desaguava no rio Tietê, que hoje parece uma vala de esgoto.


No 967A-10 Imirim sigo até a avenida Duque de Caxias e desço para a São João, onde pego qualquer Terminal Lapa, todos eles percorrem o corredor da Francisco Matarazzo. Há muitas opções e posso escolher o mais vazio. Quando termina a Matarazzo, vejo os antigos galpões ao longo da rua Guaicurus. Estacionamentos, oficinas, lojas de motos e capacetes, um posto da prefeitura, uma boate. Algumas décadas atrás eram pequenas fábricas, vidraçarias, frigoríficos. Ainda antes, trens traziam cargas de café, olarias faziam tijolos com a argila das margens do rio. E duzentos anos atrás, quando não existia a estrada de ferro, tropas traziam cana de açúcar e cruzavam o rio Tietê pela ponte no sítio do Coronel Anastácio.


Minhas aulas começam às sete, mas chego às quatro e quinze. Tentei algumas vezes sair mais tarde mas os ônibus ficam tão cheios que é insuportável, humilhante e desesperador. No Terminal vejo as empregadas domésticas seguirem para outras filas, de onde saem outros ônibus para Pirituba, Perus, Brasilândia. Eu tomo um café com leite na lanchonete e sigo para a escola de teatro.


Nas quintas-feiras, nos horários de orientação, às vezes nenhum aluno aparece. Já fiquei lendo na sala dos professores até acabar meu horário e voltar para casa. Mas na quinta em que o mendigo ganhou uma latinha de cerveja, dois alunos vieram me mostrar um roteiro que escreveram para um curta-metragem que iriam gravar no mês seguinte. Na escola, a maioria dos alunos são adolescentes e jovens de classe média que moram nos bairros da região, a zona oeste da cidade. Curiosamente, sempre aparecem histórias sobre velhos solitários e isolados.


Aquele roteiro descrevia a vida de um velho que acordava todo dia no mesmo horário, olhava o relógio no criado mudo, vestia os mesmos chinelos, e sentava na mesma cadeira velha diante da TV desligada. Na tela apagada, ele via as lembranças de sua vida que passou. A mulher que ele amava e morreu, o filho que mudou de cidade, o campo de futebol de sua infância, onde depois construíram um prédio. A história terminava quando o velho deitava à noite para dormir, e antes de fechar os olhos via o relógio, que continuava parado no mesmo horário.


Estávamos na sala de orientação, uma pequena sala agradável com uma mesa oval e seis cadeiras. Os dois alunos, um rapaz e uma moça de vinte anos, eram bonitos e saudáveis. Tentei explicar por que não gosto de histórias nostálgicas sobre velhos sozinhos. Os velhos, os mendigos, não entendo por que os jovens os escolhem como objeto heróico de sua piedade. Quando parei no mercadinho para carregar meu cartão de ônibus, às três da tarde, eu gostaria de comprar latinhas de cerveja e voltar para casa, como minha vizinha. Talvez o mendigo tenha uma vida horrível, mas mesmo assim ele ganhou uma cerveja de presente. Em 1997, no meu primeiro emprego, eu trabalhava no sétimo andar de um edifício em frente à praça Dom José Gaspar. À tarde vários mendigos deitavam no gramado da biblioteca municipal e tomavam sol. Eu os via pela janela, apoiados nos braços, e tinha vontade de tomar sol também.

À noite volto para casa com o 875H Vila Mariana, pela avenida Paulista, até o segundo ponto depois do Trianon. Da Paulista desço a pé quinze minutos até meu prédio. São ruas mais limpas, com prédios mais novos; há uma academia, um centro espírita e uma creche. (Não faço esse caminho na ida para não subir a ladeira) Passando em frente a um predinho antigo, naquela noite ouvi de uma janela umas jovens bêbadas cantando alto “Heathcliff, it's me, I'm Cathy...”. Eu adorava essa música quando tinha vinte e dois anos.


Desci do elevador no meu andar e segui até minha porta, a última do corredor. Na escada, ao lado da minha janela da cozinha, tinha um casalzinho sentado namorando. Enquanto eu preparava dois ovos mexidos para jantar, ouvi a voz deles conversando baixo sobre todos os assuntos do mundo.


Comi sentada na minha cama de solteiro, assistindo televisão. No canal de programas antigos, vi a reprise de um episódio da Comédia da Vida Privada. Um nostálgico homem de 40 anos, em crise da meia-idade, tem um ataque cardíaco e no seu delírio se imagina nadando no fundo do mar, cada vez mais próximo do sentido da vida. E quando chega ao fundo do fundo, há apenas uma pedra pichada com a palavra "Fofinho".


Antes de dormir eu procuro cabelos brancos em frente ao espelho. Por enquanto, se eu arrancar alguns fios por semana, não preciso pintar. Tive sorte com meus cabelos, pelo menos nesse ponto. Às vezes arranco um fio branco com raiz escura, e por um instante sinto um alívio infantil, imaginando que existe alguma força mágica me protegendo.

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