terça-feira, 2 de agosto de 2011

Por mais autoritário que fosse

Assim segue minha tese... eu, falando por intuição, de assuntos que conheço parcialmente:

- - -

Sobre Beto Rockfeller, a revista Veja em 1969 diz que:

Ao lado de alguns momentos de lirismo e bondade, Beto persegue infatigàvelmente a vida fácil dos burgueses enfastiados. Mente, trai, ilude a todos, ilude-se, foge ao trabalho, combate tôdas as vilanias miúdas do cotidiano.

A reportagem resume a descrição de Beto com uma frase de Lima Duarte, diretor da novela: “Enfim, é um homem; um homem possível”.

Tal personagem, “homem possível”, distancia-se de outros protagonistas de telenovela, segundo a revista. O escolhido para a comparação é Antônio Maria, descrito como “o maior sucesso em telenovela desde O Direito [de nascer]”: um “exótico milionário lusitano” envolvido em “conspirações mesquinhas e padronizadas”.

Precisaríamos de uma impossível pesquisa sociológica retrospectiva para medir o quanto Beto Rockfeller “existia” ou era mais “possível” que Antônio Maria, em relação ao público que assistia às duas novelas. Tarefa impossível mesmo se não houvesse a distância de quatro décadas. Como mostram os estudos de recepção, a noção de “público” é complexa e impalpável, a não ser por indícios.

Mas a reportagem indica, na própria lógica de articulação do texto, qual parte do público se identifica com esse novo personagem, que se destaca da “padronização” anterior. É o jornalista, o editor, e provavelmente o diretor responsável pela pauta da reportagem. O sentido final dessa pauta começa a ser esclarecido ao final do texto. Primeiro, cita-se depoimento em que Benedito Rui Barbosa defende as novelas como são –

O que os críticos queriam? Que a Colgate investisse 1 bilhão (velhos) (...) procurando apenas criar um programa de educação do gôsto popular? Isso é problema da educação nacional, não nosso. Deve ser empurrado para as costas do Govêrno, não da novela.

No depoimento, a expressão “educação do gosto popular” e não “educação ao gosto popular” sugere que um “programa de educação” deveria, digamos assim, “melhorar” o gosto popular. E a “educação nacional” é um “problema” (não uma função pública, nem um desejo) a ser “empurrado”.

A reportagem comenta tal depoimento aceitando que “é difícil imaginar os heróis da telenovela carregando nos ombros o pêso da educação brasileira” - mas logo insitindo que “também não se pode deixar que êles [a televisão, os produtores de telenovela] se tornem completamente irresponsáveis.”

Podemos considerar a seguinte interpretação: a televisão, surgindo poderosa no mercado das comunicações – e dividindo as verbas publicitárias com jornais, revistas e rádios –, entra numa competição complexa com a imprensa escrita, que é ao mesmo tempo concorrente e colega. Isso porque vários grupos - Abril, Folha (SP), Estado (SP) e Jornal do Brasil – não entram no ramo das telecomunicações. Permanecem no mercado do papel, que se financia pela venda concreta de exemplares, conjuntamente com anúncios. Tais grupos dependem da televisão em alguns setores, e concorrem em outros. De um lado, conforme cresce a popularidade dos programas televisivos, os grupos editoriais vendem produtos anexos (revistas e jornais que cobrem as novidades da TV). Por outro lado, mantêm veículos voltados ao público “sério” (cobrindo principalmente as áreas de política e economia). Tais veículos mantém certa independência editorial quando tratam da produção televisiva, pois isso reforça sua imagem de austeridade e pensamento crítico diante dos leitores. Do ponto de vista da relação com anunciantes, tais veículos oferecem um espaço seleto, dirigido diretamente a um de maior poder consumidor.

Assim, quando a revista Veja levanta a bandeira do bom gosto, está compartilhando com certo público o orgulho de ser bem educado, de estar acima da plebe rude. Respondendo a uma demanda de confirmação de status, a revista indica a esses leitores um caminho para avaliar certos programas televisivos.

Tal debate entre imprensa escrita e empresas de televisão será intenso na década de 1970. Ele segue paralelamente às relações do governo militar com as empresas de comunicação, pois trata-se de uma luta direta pela opinião pública (que se reflete concretamente em dinheiro). O governo militar, por mais autoritário que fosse, tinha interferência apenas indireta nesse jogo."

6 comentários:

Paulodaluzmoreira disse...

A questão da função educativa da televisão sempre aparece no Brasil. Aliás qualquer discussão nos meios de comunicação sobre qualquer arte sempre acaba caindo na questão do deleitar e do ensinar, como as duas razões de ser, as duas utilidades desse troço inútil chamado arte.
Vc conhece Roger Bartra? Tem um trabalho dele muito interessante, La jaula de la melancolía, cuja conclusão acho que pode ser útil para essa reflexão.

sabina anzuategui disse...

Pois é, acho tão difícil entrar nesse assunto...

Por outro lado preciso escrever alguma coisa, pelo menos algumas premissas, porque em seguida vou comentar várias críticas sobre as novelas mais "artísticas" - e às vezes os jornalistas são bem violentos a respeito do que consideram "intelectual" demais.

Obrigada pela sugestão do livro.

Paulodaluzmoreira disse...

Bartra fala sobre a maneira como a nossa cultura [no sentido mais amplo do termo] trabalha a relação das suas narrativas com a realidade não por um processo de retratamento mas por processo de transposição, pela criação de um outro mundo, notadamente diferente, mas ainda assim reconhecível para o público. Em outras palavras, a novela apresenta um mundo em que a linguagem e os eventos obviamente não reproduzem a realidade cotidiana das pessoas, mas esse mundo e essa linguagem contém uma recriação de certas questões importantes para as pessoas que vivem essa realidade.

Paulodaluzmoreira disse...

desculpa a chuva de comentários, Sabina. Mas outro cara fundamental nessa conversa é o colombiano Jesus Martin Barbero. Aqui tem um resumo útil do livro mais importante dele:
http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2011/07/29/biblioteca-latino-americana-dos-meios-as-mediacoes-1986-de-jesus-martin-barbero/

sabina anzuategui disse...

Obrigada, Paulo.
Uma amiga me emprestou um livro do Barbero, mas acabei não lendo.

Fiz uma opção não-teórica, digamos assim. Não quero falar nada que não venha dos textos (roteiros das novelas, e críticas da imprensa).

(quer dizer, li várias coisas de teoria, mas não quero colocar isso em primeiro plano na tese)

Especificamente o que você menciona de Bartra... em vários autores de novela essa transposição é consciente, é um mecanismo de alegoria, nos moldes tradicionais na literatura e no teatro.

Então qual seria a diferença específica da "nossa cultura"?

Paulodaluzmoreira disse...

A diferença entre Brasil e México em termos de comunicação de massa, em termos gerais, eu diria que é bem pequena. A transposição não precisa ser alegórica no sentido mais direto do termo. Pode ser, por exemplo, na maneira em que Branca de Neve e os 7 anões fala de sexualidade adolescente feminima.