"Falta-nos um deus. Esse vazio que descobrimos certo dia na adolescência, coisa alguma é capaz de fazê-lo não ter ocorrido. O álcool foi feito para suportar o vazio do universo, o equilíbrio dos planetas, sua rotação imperturbável no espaço, sua silenciosa indiferença em relação a nossa dor. O home que bebe é um homem interplanetário. É num espaço interplanetário que ele se move. É ali que espreita. O álcool não consola em coisa alguma, não mobilia os espaços psicológicos do indivíduo, a única coisa que ele substitui é a falta de Deus. Não consola o homem. Pelo contrário, o álcool conforta o homem em sua loucura, transporta-o para as regiões soberanas onde ele é senhor de seu destino. Nenhum ser humano, nenhuma mulher, nenhum poema, nenhuma música, nenhuma literatura, nenhuma pintura pode substituir o álcool nessa sua função junto ao homem, a ilusão da criação capital. Ele está ali para substituí-la. E é o que faz com toda uma parte do mundo que teria devido acreditar em Deus e que já não acredita. O álcool é estéril. As palavras do homem que são ditas na noite da embriaguez desvanecem-se com ela, uma vez chegado o dia. A embriaguez nada cria, não vai além das palavras, obscurece a inteligência, repousa-a. Falei alcoolizada. A ilusão é total: o que dizemos, ninguém jamais disse. Mas o álcool não cria coisa alguma que permaneça. É o vento. Como as palavras. Escrevi alcoolizada, eu tinha uma capacidade de controlar a embriaguez que me vinha, sem dúvida, do horror à ebriografia. Eu jamais bebia para ficar bêbada. Jamais bebia depressa. Bebia o tempo inteiro e nunca ficava bêbada. Estava retirada do mundo, intangível, nas não bêbada.
Uma mulher que bebe é como se fosse um animal, uma criança que bebesse. O alcoolismo atinge o escândalo com a mulher que bebe: é raro, é grave uma mulher alcoólatra. A atingida é a natureza divina. Reconheci esse escândalo ao meu redor. No meu tempo, para ter forças de enfrentá-lo em público, entrar sozinha num bar à noite, por exemplo, era preciso já ter bebido.
Sempre se diz tarde demais às pessoas que elas estão bebendo demais. 'Você bebe demais.' É escandaloso dizê-lo, em todo caso. Jamais sabemos por nós mesmos que somos alcoólatras."
(A vida material, de Marguerite Duras, trad. Heloísa Jahn.)
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