O livro deve sair neste semestre, pela editora 7Letras, com título duplo: O afeto ou Caderno sobre a mesa. Não consegui escolher, imprimi as duas opções, e ficou. Uma homenagem ao melodrama numa história em que tento mostrar, humildemente, como os truques do gênero não se aplicam à vida cotidiana.
Pensei que havia muito do livro neste blog, mas percebo que há pouco. Quase não se fala de Paula, a melhor amiga, o amor infantil da narradora.
Este é o início do segundo capítulo, quando ela surge aos onze anos:
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"Eram férias. Minha mãe costumava nos levar acampar, então acampamos provavelmente. Fomos sorteados na colônia da Associação? Mas lá só podíamos ficar uma semana e as férias duravam três meses. Passávamos às vezes um mês inteiro no camping de nossa própria cidade, acampávamos na cidade em que morávamos: minha mãe achava que sair de casa, não importava a maneira, era bom para as crianças.
No camping comíamos arroz e sardinha, macarrão, feijoada em lata, salada de ovos cozidos. Tínhamos banquinhos dobráveis de fórmica e alumínio e às vezes montávamos a barraca encaixada à da amiga francesa de minha mãe, que gostava da natureza e acampava conosco quando estava no país.
Acampamos mesmo? Alguns dias não existem pra mim, não consigo lembrar. Mas me encontro novamente com Paula, vou ao apartamento dela, no meio das férias, quero saber como ela está. Paula abre a porta. Às vezes havia tédio nela, não um tédio dirigido a mim, um tédio dela que talvez, ao abrir a porta, ela fizesse questão de mostrar.
Era verão e Paula continuava muito branca. Usava camiseta fresca, sem manga, de uma cor escura, talvez azul. Um azul vivo, mas talvez não fosse escuro. Seus ombros brancos com algumas pintas apareciam, na cava das mangas. Seus ombros no verão, despidos, pareciam excessivamente nus, como se a exposição não fosse natural para eles.
Paula teria passado o verão no apartamento? Sua mãe não ia à praia; também não gostava de frutas frescas. Aos onze anos, Paula me disse:
- Hoje comi pela primeira vez um pêssego que não era de lata.
Não fui ao seu apartamento para saber o que havia feito, isso tenho certeza, não poderia perguntar: "Como você passou as férias? O que fez?". Ia ao seu apartamento para vê-la. Ia sempre a seu apartamento, poucas vezes, a não ser nos aniversários, ela vinha ao meu. Paula abre a porta com olhar de tédio, e entro. A sala está há alguns meses preparada para a reforma, sem móveis, só um sofá de três lugares e um aparelho de som três-em-um: toca-discos, rádio, toca-fitas com gravador. O rádio há algum tempo quebrado: o botão de sintonia não funciona. Uma parede foi coberta com massa corrida, mas a reforma está parada.
Paula senta ajoelhada no assoalho, e diz que a faxineira está passando aspirador de pó na sala de televisão. Enquanto ela limpa, precisamos esperar. Eu pergunto se ela quer ouvir música enquanto esperamos. Ela demora a responder, estou acostumada a seu modo lento de falar. Finalmente ela muda de posição e apóia as costas no sofá. “Estou enjoada dos meus discos”, ela diz. O barulho do aspirador chega abafado até a sala. Ela abraça as pernas e espera o barulho passar. Eu espero com ela."
Um comentário:
tão gostoso te ler! =*
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