Meu professor Ismail Xavier recomendou a leitura de O bode expiatório, de René Girard, para meu doutorado.
Li todo o livro com sentimentos antagônicos: encantada por sua percepção aguda e pela profundidade da exposição, mas tensa por uma resistência atávica (historicamente herdada) ao catolicismo.
Então, hoje, compreendi. Espero que consiga resumir em poucas frases essas idéias, que se originaram no livro de Girard, em estudos sobre judaísmo, e na prática livre da interpretação.
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Sempre odiei o sentido antropomórfico atribuído às palavras "deus", "diabo", "anjo", etc. Não acredito no sobrenatural. Não acredito em dimensões paralelas.
Acredito sim nos mistérios, por uma questão de escala. Nós vemos apenas o que nosso olho alcança. O pensamento é uma função do corpo, e tem que lidar com os limites do corpo.
A extensão do universo, a complexidade das partículas, são coisas que entendemos racionalmente. Mas não vemos o universo. Aceitamos, racionalmente, nos cientistas que nos dizem (por observação) que ele é muito maior do que podemos conceber. Mas não existe uma imagem do universo, e não existe uma imagem do nada.
Isso é o mistério.
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Deus, para os gregos, era uma palavra que servia para muitas coisas. Inclusive para nomear idéias ou movimentos abstratos - ética, vingança.
O judaísmo insiste em duas questões principais: a rejeição da idolatria, e a concepção de que "deus" é único, abstrato e incompreensível para nós.
Dizer que deus é abstrato e incompreensível são palavras diferentes para a recusa da idolatria. Uma estátua não é deus, uma pedra não é deus, e a imagem mental de um ser humano com barba também não é deus.
Então, o que é Deus para os judeus? Deus são as regras de conduta do judaísmo. Acreditar em Deus, para os judeus, é obedecer aos mandamentos. Com maior ou menor intensidade, segundo o estilo de cada um.
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A história humana vai passando, pessoas inteligentes vão pensando a respeito (ou intuindo - o que, por definição, é entender rapidamente sem perceber as etapas intermediárias). Assim percebem-se problemas em idéias que antes pareciam boas.
Então: Deus está num conjunto de mandamentos. Isso é bom, nossa vida fica melhor quando aceitamos conselhos baseados na experiência das gerações anteriores (honra a teu pai e a tua mãe, a fim de que teus dias se prolonguem sobre o solo).
Mas insistir demais na importância de regras (mandamentos) também é uma forma de idolatria.
Jesus Cristo, judeu inteligente, alertou seus discípulos para o problema.
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O livro de René Girard não fala de Deus, mas de Satanás.
Satanás, segundo sua interpretação, é a palavra que aglutina os pecados da terra - a inveja, o ciúme, a cobiça.
Satanás não é uma entidade espiritual ou mística. Satanás é uma palavra que aglutina tudo o que é mau.
Seguindo o mesmo raciocínio, entendo que Deus, também, é uma palavra que aglutina tudo o que é bom. Alertando que "bom" não significa apenas "agradável". Justiça é bom, e nem sempre agradável.
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Isso explica minha irritação com a palavra "ateísmo". Em geral, quando alguém se declara "ateu", está querendo dizer que não acredita no sobrenatural.
Mas Deus não é o sobrenatural: Deus é uma idéia, e uma palavra cujo significado varia com o tempo.
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Se minha mãe me chamava de "bebezinho" quando eu era criança, e hoje usar essa palavra novamente, eu não vou brigar com ela. Eu sei que não sou uma criança. Eu entendo que, usando essa palavra, ela evoca com saudades e carinho o tempo em que eu era.
Mesmo que minha mãe fosse quase patologicamente nostálgica, a ponto de me chamar de "bebezinho" excessivamente, deixando transparecer um apego incômodo a um tempo que já passou, eu não brigaria com ela.
Porque eu tenho amor pela pessoa que nasceu antes de mim, e se esforçou, e fez o melhor que pôde pra que eu pudesse viver bem, melhor do que ela mesma viveu.
Eu sentiria carinho pela palavra "bebezinho", porque ela traria lembranças de minha própria infância.
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Assim, gosto da palavra "Deus". É bonita, e ajuda a agredecer por algo bom, que envolve tantas coisas e pessoas que não poderíamos nomear individualmente.
3 comentários:
Maravilhoso texto, Sabina! Não gosto do termo ateísmo talvez porque ele quase sempre [acho que não necessariamente - posso estar sendo injusto, implicante] esteja associado a uma postura condescendente para com os outros, os supersticiosos, os iludidos de todas as religiões; como se a ciência iluminista desse aos seres humanos a capacidade de entender completamente todas as coisas. E para reforçar a idéia de mistério fico com Maimonides, que achava que atribuir qualquer sentimento humano [caridade, amor, severidade, complacência, paciência, etc] a Deus é reduzi-lo ao humano.
eu hoje tava andando na Praça da Alegria aqui em Lisboa quando começou a tocar no meu ouvido aquela do Gil "se eu quiser falar com deus" e eu pensei muito isso que você diz nas últimas frases. - beijo, bom ano-novo.
é bom agradecer, =D
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