Estou lendo Labirinto, romance de Jorge Andrade. Livro estranho: ele reuniu reportagens que fez para a revista Realidade e costurou a memórias pessoais.
Mas sua memória é obsessiva com certos temas e personagens, que analisou repetidamente em suas peças. Assim, no romance, além de relatar memórias inéditas (ou relatos inéditos de referências anteriores, ficcionalizadas), ele as misturou com trechos de peças antigas. É um emaranhado em várias camadas confusas de suas obsessões.
Cansativo. O texto sobrevive apesar dele mesmo (malgré lui). Sinto uma rejeição permanente (por que não se liberta? por que não esquece?). Mas a força das cenas e do texto me forçam, num encantamento desagradável.
- - -
"Chego correndo diante do portão do Cemitério dos Aflitos, em Águas Belas, acompanhando o coveiro Manoel. Os olhos miúdos de Manoel, acavalados no nariz, fecham-se ligeiramente quando empurra o portão e percebe que fora aberto. É neste instante que vê o caixãozinho azul abandonado em cima de um túmulo. Preso à tampa, o bilhete: 'Sr. encarregado do cemitério. Pode efetuar o enterramento da menor Maria Pastora da Conceição, falecida hoje...'
Estou confuso, pois acompanhara o enterro antes de ir chamar Manoel na feira. Eu deixara, esperando à sombra de uma árvore, o pai e quatro crianças segurando o caixãozinho. Com naturalidade, Manoel abre a capela e pega a enxada. O Caixão da Caridade, guardado para os que não podem comprar um, chama a minha atenção. Sei que nunca é enterrado: apenas joga o morto dentro da cova e volta para a capela, onde fica esperando o próximo."
Nenhum comentário:
Postar um comentário