Há algumas semanas li um ensaio sobre Mira Schendel no Estadão, escrito pelo Rodrigo Naves. No meio do texto, um comentário sobre o morandismo me deixou assombrada. Idéias que já tive, revolvendo há muito tempo, considerando talvez que fossem fraquezas somente pessoais, estavam ali colocadas como tendência das artes nacionais em relação a nossa situação social.
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"No entanto, penso que em certos aspectos a comparação de suas primeiras pinturas com a de outros artistas brasileiros com preocupações semelhantes pode ser esclarecedora... Mira conhecia a obra de Giorgio Morandi já na Itália. Além disso, pôde vê-la outras vezes no país, sobretudo nas Bienais de São Paulo. Estou convecido de que nenhum outro país - talvez nem mesmo a Itália - foi tão profundamente influenciado pela pintura de Morandi quanto o Brasil... poucos foram os grandes artistas brasileiros que não viram em sua obra algo que nos dissesse respeito.
Por certo, não é fácil identificar as razões desse interesse. Contudo, acredito que não estaríamos longe da verdade se víssemos nessa atração pelo sábio tonalismo morandiano um vínculo muito profundo com certos aspectos decisivos de nossa sociabilidade. Da ausência de grandes rupturas sociais à busca de uma convivência fraterna e pessoal, muitos traços decisivos da sociabilidade e da cultura brasileiras parecem depositar suas esperanças em vínculos mais pessais, nos quais relações afetivas e alheias às normais universais garantiriam uma defesa contra a impessoalidade das instituições, cuja história em geral contribuiu para um processo de cristalização de desigualdades e privilégios.
A cultura brasileira, em várias de suas manifestações, procurou superar a violência de nossa convivência social por um retorno à sabedoria, a situações em que uma sensiblidade muito sutil se mostrava como condição de um relacionamento baseado em vínculos afetivos e ancestrais, totalmente alheios à crueza das trocas baseadas no lucro e às normas institucionais. Basta pensar em Guimarães Rosa, para se ter uma noção mais clara disso: uma literatura na qual a descontinuidade da dicção moderna convive quase sem trauma com uma linguagem coloquial, apoiada fortemente na informalidade da língua falada em certas regiões rurais do Brasil.
Os limites e grandezas do legado morandiano no Brasil estão além das possibilidades desse ensaio. No entanto, vale a pena investigar um pouco mais detidamente as possíveis razões de a arte de Mira Schendel se afastar progressivamente dessa vertente estética que tanto a interessou no início. O tonalismo morandiano possibilitava uma aproximação amorosa e íntima entre coisas distintas..."
7 comentários:
O texto eh mesmo muito interessante. Fui a uma exposiçao do Morandi aqui nao faz muito tempo, mas nao consegui articular nada. Bom, eu sou fui la e vi os quadros [minha esposa eh pintora e estava de olho em coisas tecnicas que me escapam as vezes]. Achei que a parte sobre a cultura brasileira tinha muito de Raizes do Brasil e o seu homem cordial. Mas nao sei se concordo com a visao que ele tem de GR - me pareceu meio "pacificadora", mas nao sei mesmo. Vou tentar ler o artigo completo.
Valeu a referencia!
eu, de verdade, não entendi absolutamente nada do que está sendo dito no texto do rodrigo naves e me lembro de no 3o. ano de faculdade escrever sobre o livro dele (que me foge o título, mas um livro de ficção) e a epígrafe que eu usei foi "no alarms and no surprises/ please". enfim, enfim, no mais, Morandi é Lindo. putz, esse quadro que você colocou de imagem, eu fico babando nele. um beijo.
Quando estava na faculdade, tive uma longo fascínio por um estilo de cinema dos anos 60, que chamavam de "desdramatização". Antonioni era um dos meus diretores preferidos nesse estilo de narrativa, que consistia em narrar os fatos sem os costumeiros nós dramaticos. Havia naturalmente conflito, rancor, uma série de sentimentos "negativos", mas a agressividade estava sempre deslocada e contida. Na época eu achava que esse estilo era maravilhoso como "estilo"; só anos depois percebi que tinha algo psicanalítico no meu gosto por isso.
Mas... nunca pensei que pudesse também haver uma relação social, uma "psicologia social" do país.
Ah, esqueci: vou nessa exposição da Mira Schendel amanhã!
mas, sabina, será que o seu gosto por esse estilo também não é sempre tanto no que você faz / vê / sente / elabora que é muito mais do que psicanalítico, quer dizer, é, justamente, você?
e esse 'estilo de época' era de um jeito que também tinham isso?
digo isso que eu acho cada vez mais a psicanálise uma sinuca-de-bico.
beijo!
oi, julia
essa questão daria horas de conversa.
sim, acho que você tem razão, existe um estilo pessoal e isso não muda com a psicanalise.
o problema é que, com vinte e poucos anos, eu não escrevia como antonioni, mas um sub-antonioni.
era como se eu estivesse compreendendo só a superficie do estilo.
esse é um dos estilos mais dificeis, eu acho, pois os conflitos existem mas são apresentados de maneira subterranea e indireta. eu me confundia e apenas evitava/adiava o conflito.
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outra questão é que havia uma "tristeza inescapável" que pairava como uma maldição.
foi bom me libertar um pouco disso.
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