segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Trabalhando no feriado

Passei todo o feriado de Natal e Ano Novo escrevendo um trabalho para a disciplina do doutorado; entreguei hoje cedo. Já coloquei uns trechos de artigos acadêmicos aqui (sempre pedindo desculpas pela linguagem desinteressante), então segue mais um tantinho sobre O grito:

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O grito estreou em 27 de outubro de 1975, depois do término de Gabriela. Nenhuma novela encontraria terreno fácil depois dessa adaptação, “um dos maiores sucessos da TV Globo... escolhida pela APCA como melhor produção de 1975”. A escolha do texto de Jorge Andrade, nesse momento, parece a crônica de uma morte anunciada. Depois da sensualidade tropical de Sônia Braga, quem se interessaria pela Marta de Glória Menezes, ex-freira, viúva, morando num apartamento pequeno em frente ao Minhocão, mãe de um menino excepcional que grita desesperadamente durante a noite?

De todo modo, Marta sequer aparece no primeiro capítulo. Ela, o filho e o grito são figuras quase metafóricas na trama da novela, que concentra seus personagens num único edifício em São Paulo, o edifício Paraíso, em frente ao elevado Costa e Silva. Os moradores têm seus problemas particulares e dois problemas em comum: o grito insuportável do menino, que não deixa ninguém dormir, e um interceptador que foi roubado da companhia telefônica - alguém está ouvindo as conversas dos outros apartamentos. A hierarquia social é sugerida nos andares: na cobertura fica a família do proprietário original, um “industrial” que mandou construir o prédio no terreno herdado pela esposa, de família tradicional paulista. Entre os moradores há intelectuais, fazendeiros amargurados, secretárias, jovens solteiros, o zelador e sua filha universitária, empregadas domésticas. Há também um criminoso desconhecido. Do outro lado da rua, escondido num apartamento, um delegado vigia o prédio obsessivamente, fotografando os moradores com uma teleobjetiva.

Jorge Andrade tentou costurar suas observações sobre a metrópole num clima policial, mas a tentativa não convenceu. Assim começa a crítica de Maria Helena Dutra na revista Veja, em 12 de novembro de 1975:

“O Edifício Paraíso é quase uma academia filosófica. Apesar de estar localizado no centro da cidade de São Paulo... não é atingido por problemas práticos, mas serve de cenário para discussões teóricas sobre as angústias do ser humano e as neuroses das cidades grandes. De maneira uniforme, seus cinquenta moradores meditam diariamente sobre a vida, e extraem de qualquer tropeção fortuito profundas lições a respeito do estado geral do universo...”

Segundo a crítica, a culpa desse “grito absurdo” seria do autor, que recheia os personagens de “preocupações metafísicas” para esconder sua “impossibilidade... de dar vida própria aos tipos que considera comuns”. Ela volta ao tema no Jornal do Brasil, em maio de 1976 (quando a novela termina), num texto de acidez impensável no jornalismo morno dos dias de hoje. Seu objetivo é esclarecer o público, para que este “não fique confuso, pensando que alto nível tem que significar necessariamente chatice”. Reclama dos tipos “assoados por problemas psíquicos quase intelectuais e amplamente individuais”, “zumbis preocupados com seus umbigos”, discutindo “uma pobre filosofia, digna de qualquer Almanaque Capivarol”. O grande crime, segundo ela, é a opção pela “discussão de idéias, em lugar da ação”.

2 comentários:

Paulodaluzmoreira disse...

Essa crítica é para mim, tristemente típica. A pessoa transforma uma opção específica do artista [não privilegiar a ação,no caso] em um valor estético em si mesmo [toda a novela que faz isso é nececssariamente ruim]. Tramas podem ser ótimas ou péssimas enfatizando ou não a ação; o x de um julgamento estética não está na escolha mas no como o artista trabalha dentro da escolha que fez. Infelizmente 99.99% dos resenhistas no Brasil sofrem desse mal...

sabina anzuategui disse...

sim, "cagando regra", na expressão preferida do meu marido.