domingo, 25 de maio de 2008

Joelhos no armário

Minha relação ambígua com o serviço de casa.

Logo que entrei na faculdade e comecei a morar sozinha, tinha um ânimo metódico quanto à limpeza. No sábado de manhã ligava o rádio e arrumava a casa. Era uma estação especializada em rap, 1993, os Racionais estavam começando. Um grupo se chamava "Baseado nas ruas", eu gostava desse nome de sentido duplo. Ficava feliz com a música e a casa limpa.

Mas minha amiga reclamava. Ela também morava sozinha pela primeira vez e a faxina a incomodava por algum motivo. "Você parece minha mãe", ela dizia. Não é exatamente algo que gostamos de ouvir aos 18 anos, e passei a ter vergonha de limpar a casa na frente dela.

Nos anos seguintes, meu ânimo variava... quando estava namorando, os sábados eram mais ocupados e a limpeza ficava para depois. Durante um tempo, dividi a faxineira com meu namorado. Éramos vizinhos, e ela ficava 3 horas em cada apartamento.

Comecei a trabalhar e percebi que uma faxineira era realmente importante. Ela fazia a limpeza grossa (sempre odiei passar pano no chão) e eu completava os detalhes. Lavar um pouquinho de louça, colocar a roupa na máquina, tirar o lixo. É ok e me relaxa.

Em 2003 casei e fui morar numa casa maior, com empregada fixa, e a mudança me deixou sem referência por um tempo. No fim de semana pensava: por que vou lavar a louça no sábado, se na segunda-feira vem a empregada? Por que vou catar as roupas no chão, se ela pode catar? Durante uns meses, nem sabia onde estavam as coisas no armário. Ela organizava as coisas do seu jeito e quando precisava de uma jarra, tinha que abrir todos os armários até encontrar.

A casa foi reformada e mobiliada pelo meu marido, logo tive a sensação física de que "a casa não era minha". Não era minha de propriedade nem de estilo. E também não era minha de uso, porque eu não mexia nas coisas... estava ali como uma hóspede.

Foi então que comecei a limpar a casa num sentido psicológico... catava os sapatos dele, não porque me importasse ver a sala arrumada, mas para sentir que estava fazendo algo, interferindo na casa. Organizava a bagunça da sala sabendo que era um trabalho inútil, num certo sentido. Porque havia outra pessoa para fazer isso. Mas eu precisava fazer: porque precisava sentir que a casa era minha.

Detalhes "femininos" e "naturais": roupas, louça, produtos de limpeza, a casa. Tudo isso me parece arbitrário do ponto de vista material. Demorei a entender que havia uma importância emocional e social.

Realmente, não me importa muito que haja pratos sujos na pia durante 2 ou 3 dias. Mas às vezes aparecem visitas e já ouvi comentários (talvez indiretas) de mulheres que "não conseguem ver nada sujo na cozinha". Então lavo a louça no fim-de-semana, de maneira quase teatral: para que a casa esteja cuidada caso alguém apareça. E para que eu sinta: estou cuidando da casa.

É claro que, literariamente e existencialmente, a auto-ajuda é um horror. Dizer "você precisa cuidar de si mesmo", como mágico conselho, é fugir da questão essencial. Não se resolvem os problemas de fora para dentro.

Mas se você vai até o fundo da questão... o quem tem lá dentro é secreto e seu. Entendendo isso, o horror faz parte de você como o pâncreas ou uma vértebra. Então você pode aceitar o óbvio e "cuidar de si mesmo", no sentido banal e doméstico, limpando a casa e se vestindo bem. Mesmo acreditando que estaríamos igualmente bem sentados na terra, descalços e sujos.

O óbvio é talvez o mais difícil e as palavras são absorvidas pela auto-ajuda.

Aceitar o que somos.

O conselho é óbvio mas sua extensão implica um longo trabalho de compreensão e entendimento. A "aceitação" é tudo menos fácil. Quantos anos levei para controlar a inveja de quem é mais rico que eu? Quanto tempo demorei para controlar a compaixão excessiva pelos mais pobres? A sensação de que minha vida seria melhor se eu tivesse nascido em outro lugar, em outro tempo, com outro patrimônio de herança?

Entre o sentimento de auto-piedade, me lamentando porque preciso ter um emprego mesmo desejando viver de renda. Entre a comoção deprimida ao pensar que deveria ter estudado Assistência Social e trabalhar na Febem.

Aceitar que: aceitar. Não há complemento possível para essa frase.

Aceitar que existe um "eu". Isso é o mais arbitrário: eu + preciso + me + proteger.

Mas: apesar de arbitrário, eu preciso me proteger.

Às vezes me espanto com o tempo que demoro para perceber o óbvio.

Em casa a pia é muito baixa. Além de tudo o que expliquei acima, minhas costas doem quando lavo a louça. Tentei trocar a torneira mas não existem modelos tão longos que compensem a altura. Pensei em usar um banco, mas meus joelhos encostavam no armário.

Somente ontem pensei: mas por que não abro o armário?

Talvez alguém entre na cozinha e ache a cena ridícula: eu, diante da pia, lavando a louça sentada num banco, com os joelhos dentro do armário.

Mas até isso é preciso aceitar.

4 comentários:

maria claudia disse...

oi sá. o texto está ótimo! bem assim que gosto. e me parece que teu estilo é este, é aí que vc escreve tranquila e solta.
quanto a história em si, alguns comentários; minha mãe dizia, "vá passear que a louça espera a vida não." e quando a gente argumentava que podia chegar visita ela respondia: "se a visita não encontrar ninguém em casa não verá a louça suja" ah! minha mãe também passava roupa sentada.era sábia essa minha velha. bjs

Paulodaluzmoreira disse...

Velho ditado mineiro: "- Que remédio tem quem ama senão por o pé na lama?"

Anônimo disse...

Interessante.

sabina anzuategui disse...

grande sabedoria da dona ítala.