quarta-feira, 14 de junho de 2017

Lá embaixo na Major Diogo

Pedi também uma cerveja (servem long necks em taça) e bebi devagar, enquanto esperava meu prato. Por um instante, lembrei da primeira viagem que fiz com Ricardo, ainda antes de casarmos. Depois de visitar um museu em Lima, no Peru, bebemos vinho branco num restaurante moderno que servia comida peruana gourmet. As mesas ficavam num pátio aberto, a noite estava clara e agradável. Julho de 1997, fazia dois anos que eu estava formada e ainda ganhava pouco, Ricardo pagava sozinho o aluguel do nosso apartamento. Eu acordava antes das sete para tomarmos café juntos, ele abria a porta e pegava o jornal sobre o capacho da entrada. Assinava um jornal tradicional como seu pai sempre fizera. Comecei a ler as notícias diariamente por causa dele, foi o ano da crise asiática, das compras de votos para reeleição do presidente, do índio pataxó queimado vivo por quatro jovens ricos num ponto de ônibus.

Dezenove anos depois eu lembrava vagamente daquelas notícias. Na rua começou uma aglomeração em torno de um grupo de homens e mulheres com camisetas do Brasil, megafones e cartazes escritos em cartolinas. Era um grupo pequeno e improvisado. Gritavam frases de efeito contra o Partido dos Trabalhadores e seguravam cartazes de cartolina: “Dilma, Maduro, Hugo e Fidel – Lixo do mundo”, “O povo é soberano – Intervenção militar não é crime”, “Onde rico manda não tem corrupção – Pois rico não precisa roubar”.

Eu lia os cartazes admirada pela confiança com que ostentavam tal quantidade de besteiras. De repente ouvi uma batida no vidro. Alguém acenava do outro lado da janela.

Era Tiago Nascimento. Ele fazia um jóia, sorrindo, indicando minha cerveja. Sorri também e encolhi os ombros, essas coisas acontecem. Ele deu um tchauzinho e seguiu.

Há vinte milhões de pessoas na grande São Paulo, mas o mundo das artes é pequeno. As pessoas de cinema e publicidade moram nos bairros próximos à avenida Paulista: Perdizes, Pinheiros e vila Madalena a oeste; vila Mariana e Aclimação ao sul. Com menos dinheiro, eu e os atores de teatro ficamos perto o centro – em Santa Cecília e na Bela Vista. A cidade é mais barata ou mais cara conforme você sobe o espigão da avenida Paulista, uma faixa de treze quilômetros a 800 metros de altitude, entre o rio Tietê e o rio Pinheiros. O centro fica abaixo, ao nível do rio, e Bela Vista no meio é acessível e próxima da avenida, se você subir a colina.

Os manifestantes simpáticos aos militares ainda gritavam ao megafone na calçada. Alguns cidadãos sem pressa paravam para ouvir, todos os outros passavam reto. Meu filé estava demorando, a cerveja de 275 mililitros quase acabando. Cansei de olhar a janela e espiava as pessoas nas outras mesas, quando vi Tiago caminhando até a minha mesa.

- Em plena segunda feira, a-ha! - ele disse, simpático como um velho amigo.
- Não tá fácil pra ninguém – respondi sorrindo também. E completei: - Quer me acompanhar?
- Mas é claro!

Nós nunca havíamos conversado, além de duas ou três frases de cumprimento na sala dos professores. Talvez ele nem soubesse o meu nome.

- Você mora por aqui? - ele perguntou.
- Sim, descendo a rua de baixo.
- Que bacana.
- Você também?
- Lá embaixo na Major Diogo.

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