segunda-feira, 29 de junho de 2015

Minha mãe em Maresias

"O ano em que estudei para o vestibular foi um período em que conversei muito com minha avó sobre trabalho e dinheiro, quanto nós tínhamos, o que eu poderia esperar e querer para minha vida. Éramos só nós duas. Tudo o que ela tinha seria meu quando ela morresse. Ela pararia de trabalhar, deixaria as coisas em minha responsabilidade, e também morreria muito mais cedo do que pais normais.

Nesse ponto não havia conflito entre nós duas. Minha avó não era egoísta nem mesquinha nem confusa quanto a dinheiro. Ela sabia exatamente quanto valiam as propriedades que tinha, quanto trabalho custava para manter tudo rendendo e funcionando, e quanto isso poderia permitir que eu tivesse na vida, se eu não quisesse seguir nenhuma profissão universitária e apenas continuasse administrando o que ela mesma administrou desde seus trinta anos.

- O que nós temos foi suficiente para te criar, e pode ser suficiente para você viver sozinha. Mas se você quiser ter filhos, vai ser pouco.

Minha avó me explicava todos os custos da casa, a mensalidade do colégio, da aula de inglês, da escola de balé, do plano de saúde. Também me dizia quando quebrava alguma coisa em um dos nossos apartamentos - um vazamento, uma pia quebrada, alguma reforma no condomínio.

- O valor dos imóveis muda com o tempo. Quando seu bisavô construiu os dois prédios, era um bairro simples, mas familiar. Depois mudaram o traçado das linhas de ônibus, e a rua ficou muito barulhenta, era difícil alugar os apartamentos. Durante quase dez anos nós ganhamos muito pouco. Depois o comércio melhorou e os aluguéis subiram de novo. É arriscado você depender só disso. Você deveria se dedicar a uma profissão em que você pudesse ganhar bem por seu próprio mérito, e não depender desse dinheiro pra viver.


Minha mãe morreu afogada quando eu tinha quatro anos de idade. Foi no feriado de 7 de setembro de 1982. Ela foi acampar com os amigos em Maresias, na época tinha apenas estrada de terra, eles eram surfistas. O mar estava agitado, ela foi muito longe com a prancha, ninguém sabe exatamente o que aconteceu. Um amigo conseguiu retirá-la da água, mas ela não acordou. Ela tinha vinte e três anos, estava no segundo ano da faculdade e morava com minha avó.

Minha avó gostava de manter o corpo em forma, antes disso, praticava ginástica aeróbica, gostava de macrobiótica. Ela tinha uma independência natural, um tanto bruta, decidiu se divorciar no fim dos anos 1970 e não manifestava muitas saudades do meu avô, que casou de novo e foi morar no Mato Grosso. Quando minha mãe engravidou aos dezoito anos, sem saber de quem, depois de passar as férias de verão acampada no litoral da Bahia, minha avó segurou a onda e seguiram em frente as duas, como se um bebê não fosse tanta coisa assim."

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Mercado de trabalho do roteirista no Brasil

Respondi algumas perguntas de um estudante de pós-graduação em roteiro. O texto talvez seja útil para quem tem curiosidade sobre o trabalho de roteirista no Brasil.


- Qual é o processo mais comum entre o roteiro e o filme no Brasil? No cenário independente e no comercial.

Tanto no cinema independente quanto no comercial, o financiamento é público, através de editais (concursos) de agências e órgãos governamentais (em nível municipal, estadual e federal). Há também possibilidade de empresas patrocinarem, com incentivo fiscal (o dinheiro investido é abatido dos impostos a pagar). O patrocínio de empresas é mais comum em filmes de perfil comercial.

Uso a expressão "perfil comercial" porque são filmes com estilo popular, que buscam atingir um público que procura entretenimento. Mas os filmes não são "comerciais" no sentido de negócio - mesmo filmes com boa bilheteria interna não são um bom negócio, comercialmente. Os profissionais são remunerados com a verba de produção, que tem financiamento público.

A figura chave nesse sistema é o diretor-produtor. Os diretores de cinema em geral têm sua produtora, que capta recursos através dos editais (concursos).

Os roteiristas em geral trabalham por encomenda, nos projetos de interesse dos diretores.

Esse modelo também funciona no cinema comercial. Nesse caso, os diretores são geralmente profissionais com muita experiência na TV, que também querem trabalhar com cinema.

Existem alguns produtores que desenvolvem projetos, principalmente no cinema de perfil comercial. Eles participam do mesmo sistema de financiamento público. Existem concursos com verba específica para filmes de perfil comercial.

No cinema de perfil comercial há também atores (principalmente comediantes) que desenvolvem seus projetos de filme, trabalhando com roteiristas com quem têm afinidade (na maioria, roteiristas de TV).


- Qual é o processo mais comum entre o roteiro e o piloto de TV no Brasil?

O processo mais comum é que um profissional de TV aberta (principalmente, TV Globo) desenvolva um projeto e tente ser aprovado para produção internamente na emissora. Apenas a TV Globo, na TV aberta, produz seriados. Os outros canais, menores, produzem apenas telenovelas.

Alguns canais de TV a cabo investem recursos próprios, geralmente é pouco dinheiro, o que limita os projetos a produções de baixo orçamento (cerca de U$ 15.000) por episódio.

Existe financiamento público para seriados de TV, que funciona nos modelos do financiamento de cinema. Para um projeto ser aprovado, precisa ter um acordo de exibição com um canal de TV a cabo. Em geral, são as mesmas produtoras de cinema que também têm projetos de TV.


- Qual o maior mercado para roteiristas hoje? Filme, Radio ou TV?

TV.


- Qual é o papel do agente de roteiristas no Brasil?

Não existem agentes de roteirista.


- Quanto do processo de venda de um roteiro é responsabilidade do roteirista, e quanto é do agente?

Não existem agentes. Não existe compra de roteiros. A maioria dos roteiros é escrito por encomenda.

Alguns roteiristas escrevem roteiros originais e procuram parceiros (diretor, produtor, ator), para buscar patrocínio nos concursos de financiamento. Mas é raro que um projeto tenha origem em ideia original do roteirista.


- Quais você apontaria serem as maiores particularidades do trabalho do roteirista no Brasil?

Existe apenas uma emissora de TV forte, a TV Globo, que é a empresa com maior produção no país, e a melhor remuneração para roteiristas.

O trabalho de roteiro com melhor remuneração, e mais estabilidade, é a telenovela. As telenovelas são desenvolvidas pela direção de criação da emissora, junto com os autores (roteiristas) de mais destaque, que cresceram na empresa trabalhando como colaboradores em outras novelas.

A TV Globo costuma convidar roteiristas de destaque no mercado independente, para desenvolver minisséries para o canal. Do ponto de vista de remuneração, a TV Globo na maioria dos casos é o auge da carreira de um roteirista.


- A maior parte do trabalho de roteirista é feito como freelancer ou contratado?

Se considerarmos toda produção (incluindo a TV aberta), creio que a TV Globo tem mais roteiristas contratados do que o mercado independente. Isso porque atualmente há 5 produções originais de telenovela no ar, com capítulos diários. Cada novela tem cerca de 10 roteiristas na equipe. As novelas se revezam a cada 6 meses, então há roteiristas contratados já desenvolvendo as produções futuras.

Na TV a cabo, os canais de maior produção de seriados são da Globosat, que é uma empresa do grupo Globo. Os roteiristas dos seriados de TV a cabo geralmente trabalham também na TV aberta, ou em filmes para cinema.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Um certo desajuste

"Descemos um quarteirão até a Pedroso de Moraes, depois seguimos um pouco pela Cardeal Arcoverde. A pastelaria ficava na esquina da Cunha Gago, quase em frente ao ponto de ônibus, a entrada estreita mas comprida para dentro, tudo de azulejo branco. A fachada, entre palmeiras e cocos verdes com canudinhos, dizia Pastelaria Brasileira.

Eu quase não conhecia Janaína, minha impressão sobre ela era ainda de espanto com seu entusiasmo pelos garotos do Heavy Metal. Entusiasmo de geração espontânea, independente da pouca correspondência deles e do pouco encanto que eles exibiam enquanto espécimes humanos. Eu esperava, em minha vaga antecipação daquela noite, que suas amigas fossem falantes, risonhas e avoadas como ela. Mas Diandra e Samara eram sérias, cada uma a seu modo.

As três tinham estudado juntas durante todo ensino primário, numa escola particular católica na zona leste. Eram melhores amigas desde a sétima série, quando a pré-adolescência começou a definir suas personalidades de preferências. Da escola traziam ainda amizades com um grupo de garotos, a quem se referiram bastante durante a noite. Um deles tinha tentado suicídio alguns meses antes, e ainda preocupava os amigos. Elas trocavam notícias recentes sobre esse rapaz, Diego, e seu amigo mais próximo, Murilo. Pelo que entendi, os dois tinham temperamento artístico e um histórico um pouco desajustado entre os outros colegas da escola. Samara e Diandra se sentiam especialmente ligadas a eles, admiravam e compartilhavam esse desajuste, um certo desprezo pelas ambições convencionais dos outros alunos. Samara foi apaixonada pelo garoto que tentou se matar. Eles ficaram algumas vezes ainda no colégio, mas não evoluiu porque o rapaz tinha uma fixação não correspondida por Diandra. Murilo era o contrário do amigo depressivo. Paquerador e um pouco cafajeste, depois de um tempo de conversa entendi que as três já tinham transado com ele.

Foi um pouco cansativo passar duas horas ouvindo esse debate sobre dramas do passado das três. Elas falavam um tanto passionais entre elas, depois se davam conta da minha presença e me explicavam um pouco do contexto. Mas parecia ao mesmo tempo que, principalmente Janaína, se exibia um pouco para mim, mostrando como ela e as amigas eram diferentes e profundas. Eu ouvia e as observava com certa distância, mas apesar dessa defesa o fascínio funcionava e eu gradualmente me seduzia por aquele universo."


sexta-feira, 12 de junho de 2015

Sábado à noite, 1996

"- Janaína, o lance é que eu não gosto de U2. Aliás nem de metal.
- E daí? Vem com a gente, vai ser legal.

Eu tinha dezessete anos e o objetivo vital de conhecer gente diferente. Tudo o que envolvesse a Suzana e o Vinícius estava definitivamente encerrado como história passada. Então eu precisava de uma nova amiga ou então ia passar mais um fim de semana chato com minha avó e o namorado dela ou indo ao cinema sozinha. Janaína não era bem a companhia que eu tinha imaginado, a ideia de sair da Granja era descobrir pessoas originais ou avançadas ou alguma coisa assim, mas de tão relaxada ela ficava engraçada e o principal é que ela já tinha 20 anos. Não eram dezessete, mas vinte, e dois anos de experiência na maioridade me impressionavam muitíssimo.

Minha avó não gostou muito desse programa de sábado à noite na Cardeal Arcoverde.

- Você vai voltar como? - o tom de desagrado já indicava que ela não iria me buscar.
- Posso ver com as meninas.
- Você nem conhece essas meninas direito.

O dia seguinte teve momentos de negociação, perguntei a Janaína mais detalhes sobre o programa, e finalmente minha avó concordou que se eu voltasse pra Granja até a meia-noite, quando ainda tinha ônibus.

- Você desce no ponto da pizzaria e me liga de lá - ela disse. - Me espera na entrada e eu vou te buscar.

Janaína riu desse esquema - que Cinderella, ela disse - mas avisei que era isso ou nada. No sábado me arrumei, desci até a Raposo logo depois das sete e peguei o ônibus para Pinheiros. Encontrei Janaína e as amigas na frente do lugar que se chamava Quadrophenia (ópera rock do The Who, ela me explicou), duas garotas meio no estilo da Janaína, de jeans e sapatos de camurça de cano alto. Samara e Glaucia. O toque sábado à noite se resumia a blusas mais justas, batom e lápis no olho.

- Mas você tem mesmo que voltar à meia noite? - Janaína insistiu ainda na porta - Meia noite é foda. Liga pra tua avó, você pode dormir na minha casa. Eu juro que a gente vai de taxi, é perto.
- Nessa área não tem renegociação com minha avó. Nada feito.
- Será que vale a pena entrar? - Glaucia perguntou - A cerveja é cara e o show começa onze e meia, nem vai dar pra assistir.
- Vocês não precisam sair comigo.
- A gente não vai deixar você ir pro ponto de ônibus sozinha. Menor de idade não pode - elas riram.

Eram oito e pouco e da calçada dava pra ver que o lugar ainda estava vazio. Entrada larga de galpão, lá dentro um piso preto, sem mesas, sem nada. A moça da bilheteria em total desinteresse.

- E se a gente fosse tomar uma cerveja no Pitangueiras? Cerveja a três reais.
- Boa.
- Fechou."

terça-feira, 9 de junho de 2015

Excelente maionese

"Um dia ela veio me dizer que um deles estava a fim de mim. Meio rindo como se fosse uma coisa super legal e eu fosse ficar super animada que ela estava me trazendo aquela notícia sensacional. Eu fiquei meio envergonhada mas ela pegou no meu pé o intervalo inteiro, queria me levar para falar com os caras depois da aula, tipo muito massa, a gente entra no cemitério e fuma um e depois um hamburguer no Fyssura.

Na verdade minha avó não se importava muito se eu voltava pra casa pra almoçar ou não. Ela mesma comia o que queria na hora que queria, nunca tinha almoço, a geladeira era cheia de tigelinhas de legumes e coisas naturebas e era isso que tinha. Então na verdade eu podia fumar no cemitério com a Janaína e os cabeludos do fundão, mas eu não estava certa se era realmente uma boa ideia. Mas todos os meus não-sei vou-pensar foram inúteis e no fim pra encerrar aquela cena toda eu fui.

O louco é que o cara nem estava a fim de mim, quer dizer, cheguei preparada pra um chega pra lá caso o cara fosse muito grudento, mas ele tava na dele, falando do Metallica, e certamente eu estava em quarto lugar de importância ali, depois do Master of Puppets, dos amigos e do baseado. Janaína é que tava babando por um deles, um magro de cabelo liso abaixo do ombro, praticamente um Jesus Cristo, e ela se ria toda e os caras meio que não ligavam grande coisa.

O hamburguer do Fyssura foi o momento alto do dia, gordura de chapa e excelente maionese. Depois mais duas aulas de reforço de química orgânica e voltei pra Granja.

E agora Janaína era minha melhor amiga. Tipo ela mesma chegou a essa conclusão e passou a agir como tal. No dia seguinte segurava meu braço empolgadíssima com um lugar incrível na Cardeal Arcoverde que ela iria me levar no sábado, tipo a melhor banda cover do U2, ela e as amigas conheciam o cara da bilheteria, chegando antes das oito não precisava pagar entrada."