quarta-feira, 31 de maio de 2017

Bochechas e lábios

Trabalhei dezoito anos escrevendo roteiros para vídeos institucionais, comerciais de TV, programas infantis, documentários, seriados e até uma telenovela. Escrevia rápido, com prazos curtos. Muita coisa mal revisada para chefes menos geniais do que se achavam. Aguentei reuniões e vaidades e falsas simpatias. Antes de orientar um aluno, pergunto se ele está escrevendo para si mesmo, se tem algum ideal artístico, ou se pretende ter uma carreira como roteirista. Assim vou parcelando as doses de realidade, conforme o aluno me pareça disposto a receber.

Quando comecei a dar aulas, a escola oferecia apenas cursos livres de roteiro. Oficinas de oito aulas para curiosos sobre a área. Agora há um curso de graduação em Dramaturgia, e os formados recebem um diploma universitário. Precisei estudar novamente, meu diploma de bacharel não era suficiente para dar aulas na graduação. Mas não voltei à faculdade de Artes e Comunicação. Meu pai tinha registros antigos de família e procurei o departamento de História.

Minha bisavó nasceu em 1902, numa antiga fazenda de café em Cabreúva, no distrito hoje chamado Bom Fim do Bom Jesus. Era filha sem pai de uma negra livre. Trabalhou toda vida como cozinheira de famílias ricas em São Paulo. Aprendeu a ler e escrever sozinha depois de adulta. Quando morreu, aos sessenta anos, deixou para meu pai uma dúzia de cadernos, suas memórias. A professora do departamento de História ficou admirada com esse material.

Eu me matriculei no mestrado aos quarenta anos, para estudar a história dos negros em São Paulo. Minha dissertação está quase pronta. Usei os cadernos de minha avó como ponto de partida.

Quando meus alunos brancos escrevem num exercício que um personagem é negro, eu geralmente pergunto: por que ele é negro, isso faz diferença na história?

No meu bairro, a dona do mercadinho é branca. O mendigo que ganhou a cerveja era negro. Minha vizinha, com o cachorro emburrado, eu não sei. Seu rosto é inchado, provavelmente por causa do álcool. Sua pele é desbotada. Eu poderia presumir, pela forma de suas bochechas e lábios. Mas me pergunto se faz diferença na história.

terça-feira, 23 de maio de 2017

Ativadores de cachos importados

Eu queria passar a tarde sozinha e escrever alguma coisa no meu blog. Eu precisava parar de ir sempre em frente, e organizar o que tinha feito até agora.

Todas as anotações sobre a história dos negros paulistanos, que estudei no mestrado, as lembranças de meu pai, meu avô, minha bisavó.

Meus interesses banais por filmes ruins, livros esquisitos, quadrinhos alternativos e videogames de aventura que eu gostava desde criança.

Eu colecionava anotações descombinadas há tantos anos. Eu não me orgulhava da capacidade de ser rápida e variada como uma revista de fofocas. Talento que me ajudou como roteirista – escrever sobre qualquer assunto, para qualquer formato, por qualquer preço, sob encomenda de qualquer um.

O garçom trouxe meu filé com molho de pimenta verde, arroz e batatas assadas. Minha taça estava vazia. Eu pedi outra cerveja long-neck. Duas garrafinhas custavam mais que uma garrafa grande, no boteco em frente ao meu prédio. Mas eu não era um negro velho do bairro, que tomava cerveja numa mesinha de calçada desde o meio-dia, como meu avô fazia. Eu usava ativadores de cachos importados no cabelo. Cada frasco custava 8 vezes um prato feito nos botecos do meu bairro. Uma diária de faxina. Três horas de trabalho como professora.

Na rua começou uma aglomeração em torno de um grupo de homens e mulheres com camisetas do Brasil, megafones e cartazes escritos em cartolinas. Era um grupo pequeno e improvisado. Gritavam frases de efeito contra o Partido dos Trabalhadores e acusações com pouca lógica histórica: “Dilma, Maduro, Hugo e Fidel – Lixo do mundo”, “O povo é soberano – Intervenção militar não é crime, “Brasileiros tenham coragem – Intervenção militar já”, “País sem corrupção é país onde rico manda – Pois quem é rico não precisa roubar”.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Cronologia política 2016

A primeira parte de meu novo livro "Os dias de Violeta" (título provisório) se passa em 2016. Escolha meio desajeitada, pois foi um ano complicadíssimo. A protagonista mora perto da av. Paulista e atravessa grandes e pequenas manifestações em seu caminho para casa, ao longo do ano. Fora Dilma, contra o impeachment, a favor do impeachment, Fora Temer; fiz uma cronologia para me organizar. Coincidência curiosa: 23 de setembro de 2015 e 2016. Na primeira data, Alckmin anunciou projeto de reorganização das escolas públicas de SP. Na segunda, o governo Temer publicou medida provisória de reforma do ensino médio.

- 15 março 2015 – Manifestação Fora Dilma (1 milhão de pessoas na av. Paulista)

- 16 agosto 2015 - Manifestação Fora Dilma

- 23 setembro 2015 – Geraldo Alckmin ancuncia projeto de reorganizacão das escolas públicas. Seguem-se ocupações de resistência organizadas pelos estudantes.

- 3 novembro 2015 – Instaurado processo contra Cunha no Conselho de Ética da Câmara

- 2 dezembro 2015 – Cunha (presidente da Câmara) aceita pedido de impeachment (apresentado pelos advogados Helio Bicudo, Miguel Reale Jr e Janaina Paschoal)

- 4 dezembro 2015 – Geraldo Ackmin suspende projeto de reorganização de escolas públicas

- 13 dezembro 2015 – Manifestação pro-impeachment (30 mil pessoas)

- 16 dezembro 2015 – Manifestação contra o impeachment

- 3 março – Delcídio acerta acordo de delação premiada (cita Lula e Dilma)

- 4 março – Depoimento de Lula no aeroporto de Congonhas (condução coercitiva)

- 13 março – Grande manifestação Fora Dilma (3 milhões de pessoas; MBL e Vem Pra Rua)

- 16 março – Dilma nomeia Lula ministro da Casa Civil. Moro divulga gravação de conversa telefônica em que Dilma menciona termo de posso “em caso de necessidade”

- 17 março – Lula toma posse. Gilmar Mendes suspende nomeação, atendendo a liminar de PSDB e PPS

- 17 abril – Impeachment provisório aprovado em votação na Câmara

- 5 maio – STF afasta Eduardo Cunha de mandato e presidência da Câmara

- 12 maio – Dilma deixa palácio do Planalto e faz pronunciamento. Temer assume interinamente.

- 23 maio – Protesto Fora Temer, na av. Paulista até o centro de SP

- 10 junho – Manifestação na av. Paulista contra governo Temer (sexta-feira)

- 31 agosto – Impeachment aprovado em votação definitiva no Senado

- 12 setembro – Câmara aprova cassação de Eduardo Cunha

- 2 outubro – Eleições municipais. João Doria eleito em SP em primeiro turno

- 19 outubro – Eduardo Cunha preso pela PF

- Outubro – Estudantes ocupam escolas públicas contra proposta de reforma do ensino médio (publicada como medida provisória em 23 de setembro)

- 29 novembro – Queda de avião com time Chapecoense

- 4 dezembro – Manifestação na av. Paulista em defesa à Lava Jato (domingo)

- 13 dezembro – Senado aprova PEC sobre teto de gastos

- 19 dezembro – Janot envia ao STF acordos de delação premiada da Odebrecht

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Frango e feijão

"- Assim que der, vou esquecer meus filhos no shopping. - Flávia continuou - Um shopping rico, tipo o Cidade Jardim ou o Iguatemi JK. Eles vão ter uma vida melhor.

Ela terminou sua segunda taça de vinho:

- Eu devia ter estudado astrologia antes de engravidar. Um moleque de escorpião e uma pirralha de gêmeos. Ninguém merece isso.

- E como eles estão? - Roberta perguntou com toda ingenuidade do mundo - Faz quase dois anos. Devem estar enormes!

- Não o suficiente pra me ajudar a limpar a casa e lavar roupa. Como eu sinto saudade de ter uma empregada!

- E seu marido... como é o nome dele? - perguntei - Tudo bem com ele?

- Tudo bem. Se viver de bolsa de estudo for seu objetivo de vida.

- Mas ele fazia uma pesquisa muito interessante... o que era mesmo?

- Não era um centro de medicina? A dinâmica do sangue nos problemas cardíacos? - Roberta completou.

- É. É isso ainda. É uma coisa importante. Eu tenho que reconhecer que é importante - Flávia suspirou um pouco mais calma. - Mas ele poderia ser um pouquinho só mais ambicioso. Puxar só de leve o saco de alguém, pra conseguir uma vaga de professor. A vida lá é muito cara. Não aguento mais comer frango e feijão.

Ela se endireitou no sofá e comentou, divertida:

- Vocês sabiam que os sites lá publicam tabelas das proteínas mais baratas no mercado? Por exemplo: “compre o frango inteiro, pois o frango desossado é mais caro”! Um tempo atrás a carne de carneiro era mais barata – agora está tão cara quanto carne de boi. Eu passo a semana assando frangos, depois desfio os restinhos de carne entre os ossos das costas, pra fazer torta e usar os mínimos pedaços possíveis. Eu me sinto numa fazenda do século passado. - depois fez um gesto rápido com o braço, e se corrigiu – Sei que as pessoas passam fome no mundo e eu não posso reclamar. Mas quando eles crescerem, nunca mais quero ver um frango na vida.

O desabafo de Flávia era quase teatral, e reconheci sua vitalidade antiga. Desdenhava o marido e os filhos de modo direto e engraçado; estava com a paciência na lua, mas não ressentida, parecia se divertir com a própria desgraça. Também as roupas desbotadas agora mostravam uma elegância casual. A camiseta azul marinho combinava com seu tom de pele. Ela tinha ombros fortes e peito pequeno, um charme atlético e andrógino."
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