segunda-feira, 27 de junho de 2016

Esse mundo barulhento

"Vinícius fechou a loja às sete da noite. Desceu a Rua Nova Amazonas, depois a Nova América, no caminho para a Estrada da Aldeia. Seus tênis já estavam bem gastos de tanto andar a pé. Ouvia música no fone de ouvido, com o celular no bolso da calça. Sua calça jeans meio suja, a camiseta velha, era mais honesto como estilo e também mais seguro, certos caras do Rio Branco tinham sido assaltados cinco, seis vezes, mas ele não, ele não parecia um filhinho de papai.


Era quinta-feira, Naomi sairia da aula de francês às oito e meia. Segunda e quarta não havia dilema, ele saía da loja às sete e voltava direto para casa. Mas terça e quinta agora havia essa questão, essa aula de francês. Naomi se matriculou no primeiro semestre de francês básico e em julho iria para o Canadá fazer intercâmbio. A escola de línguas ficava na Avenida São Camilo, no meio do caminho entre a loja e sua casa. Quando ela contou ele disse casualmente: “Qualquer dia passo lá depois do trampo.” Era caminho pra ele, “Legal”, ela respondeu. Ele passou numa quinta, depois na outra terça, casualmente, caminharam juntos da escola até a casa dela para ela não voltar sozinha de noite. Ela contou do intercâmbio, dos seus planos, de como não gostava do Brasil porque não conseguia se identificar com esse mundo barulhento, brilhante e dourado onde ninguém valorizava livros e história e as coisas que ela achava importantes. Para caminhar com ela aqueles vinte minutos, ele precisava decidir o que fazer com a hora e meia que sobravam depois de fechar a loja. Decidir se simplesmente parava em algum lugar e esperava, ou andava trinta e cinco minutos até a casa do Samuel, devolvia a chave, depois voltava pelo mesmo caminho mais vinte e cinco minutos até a escola de línguas na Avenida São Camilo."


sexta-feira, 17 de junho de 2016

In bluer skies

"A loja ficava na casa 10 da galeria Pátio da Granja, um conjunto de sobrados comerciais construído no fim dos anos 1990, simulando uma vila residencial. No centro das casas um pátio calçado com paralelepípedos, um canteiro de folhagens e dois bancos de praça. Vinícius entrava às duas da tarde depois de sair do colégio. Era responsável pela loja até as sete da noite, quando fechava tudo e deixava as chaves na casa do dono, que assumia pela manhã. Samuel, o dono, tinha um toca-discos para vinil e queria música na loja sempre, alta o suficiente para ser ouvida mas nem tanto que atrapalhasse o atendimento. No seu turno de manhã tocava os discos que encontrava em sebos e feiras no fim de semana: funk americano dos anos 1970, às vezes rap paulista dos anos 1990, às vezes algum rock psicodélico (embora os garotos do skate estranhassem esse estilo). Quando assumia, Vinícius trocava o vinil por seus arquivos digitais de música. Ele estava estudando sintetizadores de bandas pós-punk dos anos 1980. Pensava há dias numa mesma música, “In bluer skies”, do terceiro álbum da banda inglesa Echo and the Bunnymen. “Eu dependo do seu coração oprimido / para não me desintegrar.”

No começo da tarde não apareceu ninguém. Vinícius ficou ao computador, repetindo várias vezes algumas faixas do álbum, “Porcupine”, uma versão remasterizada lançada em 2003 que ele baixou da internet. Ele passava muitas horas em casa, à noite, pesquisando novos discos em sites especializados, procurando torrents para baixar o que lhe interessava. Salvava as faixas num pen drive e depois copiava no computador da loja, para ouvir no sistema de caixas de som montado pelo Samuel. Eram boas caixas, melhores que as de sua casa, e faziam parte da lista de coisas que ele pretendia comprar aos poucos com seu salário. Equipamentos musicais eram caros. A lista era grande e seu salário não.

Pouco antes das cinco entrou um garoto de uns treze anos, cabelo liso e comprido, com uniforme da Escola da Granja. Sua mãe veio alguns passos atrás e parou perto da porta, longe do balcão. O garoto veio falar com ele, queria montar um longboard, já tinha vindo à loja no sábado, Samuel mostrou alguns shapes e agora ele queria comprar. A mãe ouviu de longe, sem se intrometer. Vinícius simpatizava com esse tipo de mãe que vinha para pagar mas deixava o filho escolher sozinho e resolver por conta própria. O garoto tinha todo o figurino de skate, a bermuda larga, o tênis old school, o blusão com capuz. Mas todas as peças eram novas e caras, estavam limpas e passadas. Vinícius perguntou pra confirmar se o garoto queria montar o skate inteiro ou só queria substituir algumas peças. Era um skate inteiro; o garoto não disse, estava tentando passar por experiente, mas visivelmente seria seu primeiro skate. Vinícius simpatizou com isso também e se manteve muito sério e profissional, para não estragar o momento do moleque."