segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Um cigarrinho

Acho que nunca falei de minha admiração por Lima Barreto. Mas... é enorme. Um estranho caso de excessos vocabulares que me agradam. Eu estava tão emocionada durante a leitura de "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", numa edição preta horrível da Ediouro, que meu cabrito me trouxe de presente um volume novinho, "Prosa Seleta", da Nova Aguilar.

Mesmo sabendo que as obras completas da Nova Aguilar estão cheias de erros, ainda assim fiquei encantada. O volume traz os famosos diários de L.B., "Diário Íntimo" e "O cemitério dos vivos".

Certa noite vieram uns amigos baladeiros e queriam fazer um cigarrinho. Tinham o fumo mas não a seda, nós também não, a nossa é casa de gente séria. Então, lembrando de um escritor russo (?) que fumou os próprios manuscritos durante não sei qual guerra, ofereci um pedaço do papel bíblia do volume de Lima Barreto.

Foi um impulso de gentileza. Logo me arrependi. Não estamos em guerra e tem uma banca 24 horas aqui perto. As visitas podem muito bem buscar sua seda lá.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Ginástica ignóbil

Quando vi pela primeira vez o livro de Francis Ponge, alguns anos atrás, perguntei ao meu professor o que ele achava. Porque o título e a proposta me pareciam tão interessantes e, ao mesmo tempo, eu tinha medo de gostar de algo de que "não devesse" gostar. A história literária era um mistério para mim, e principalmente nessas poéticas do detalhe eu tinha medo de gostar de algum escritor de direita, algum simpatizante do nazismo, sei lá.

Jean-Claude respondeu sem muito entusiasmo: "Conheço, mas não muito. Tem algo em comum com João Cabral, mas este último é melhor poeta."

Mas agora é fim de ano e só quero descansar. Por isso lembrei de "O partido das coisas". O título original francês, "Le parti pris des choses", a idéia de apenas descrever, deixar as coisas falarem por si.

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A laranja

Como na esponja há na laranja uma aspiração a recobrar a compostura após ter sido submetida à prova da expressão. Mas, onde a esponja é sempre bem-sucedida, a laranja nunca: pois suas células rebentaram, seus tecidos se rasgaram. Enquanto só a casca se restabelece molemente em sua forma graças a sua elasticidade, um líquido de âmbar se derramou, acompanhado de refresco, de perfumes suaves, sem dúvida, - mas frequentemente também da consciência amarga de uma expulsão prematura de sementes.

Será preciso tomar partido entre essas duas maneiras de suportar mal a opressão? - A esponja não é senão músculo e se enche de vento, de água limpa ou de água suja, conforme: essa ginástica é ignóbil. A laranja tem melhor gosto, mas é por demais passiva, - e esse sacrifício odorante... é entregar-se realmente muito barato ao opressor.

(...)

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Tradução Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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Realmente, eu não havia lido com atenção. Nada aqui parece de direita.

Conheço pouco João Cabral, mas prefiro essa laranja. O que não desmente talvez a afirmação de que JC "é melhor poeta". Depende do que consideramos como poesia.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A mulher moderna é um perigo

Criei uma birra imediata pelo novo colunista da Ilustrada, Luiz Felipe Pondé. Seu estilo "saudades da velha ordem", falando especificamente de "mulheres", mexeu com tudo que me irrita mais profundamente. Imaginei que o cara tivesse uns 75 anos, de tão reacionário e desatualizado que está a respeito das "relações homem-mulher". Agora vejo em seu curriculo Lattes no site do CNPQ que ele terminou o ensino fundamental em 1974. Ou seja, deve ter nascido em 1960. Ou seja, não é um reacionário nascido na época em que isso ainda fazia sentido, mas o pior de tudo: é vítima das famosas "saudades de tempos que nunca vivi".

Em um dos primeiros textos, provavelmente para preparar o que viria em seguida, ele fez um elogio de Nelson Rodrigues, indignado que os "intelectuais" tivessem "preconceito" contra esse "gênio" só porque ele era de "direita".

Honestamente, eu nem perderia meu tempo para comentar isso... essa situação de fato existiu, mas já faz um tempo. Muitos "intelectuais de esquerda" hoje reconhecem a "modernidade" do texto de N.R. "apesar" de suas posições políticas. E, especificamente sobre as relações homem-mulher, N.R. fazia suas moças de boa família que queriam ser estupradas e se prostituir e tal, mas tudo com tamanha ironia que nenhuma "feminista" com um mínimo de inteligência se ofenderia.

Afinal, na época existiam moças de boa família. E, pior que isso, existiam "boas famílias". Supomos que as moças queriam se prostituir para escapar dessas insuportáveis famílias, não por um "desejo intrínseco que toda mulher tem de se prostiutir", como parece acreditar o Sr. Pondé.

Eu mesma, digamos assim, feminista revisitada e leitora de Crumb, não sou fã do N.R., mas meu desinteresse não nasce do modo como retrata as mulheres. Pelo contrário, muitos de seus textos me irritam por serem histéricos demais. Um caso não tão raro de histeria masculina.

Agora Sr. Pondé resolve escrever CRÔNICAS à moda NR mas sem nenhum senso de humor. Parece que ele realmente quer dar LIÇÕES DE VIDA aos seus leitores, alertando as mulheres de que a MULHER MODERNA E INDEPENDENTE é uma ILUSÃO QUE FAZ MAL ÀS PRÓPRIAS MULHERES!

Realmente, não dá pra acreditar que as pessoas ainda se interessem por esse tipo de puritanismo autoritário travestido de bons conselhos. "As pessoas" que seriam... a direção da Folha e os leitores da Veja? Ligações perigosas.

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No meu site antigo tem uma cronica meio estranha, chamada "Nelson Rodrigues a meu modo de ver". Enfim... não é um texto bem acabado, mas traz o que o título diz.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Como editar blogs?

Toda vez que faço um texto muito longo, fico com a pulga atrás da orelha. Acho que texto de blog deve ter no máximo 20 linhas, com parágrafos curtos de no máximo 5.

Ontem coloquei uma "crônica" que precisaria de um anexo, mas não sei como fazer anexos em blog. Então tive uma idéia de falsear uma data e jogar o rabicho para semanas antigas, pra não atrapalhar a página atual.

Vou ver se funciona.

Se alguém tiver dica melhor, que me ensine.

Camelando geral!

Um antigo amigo do meu pai me encontrou no orkut, e mandou essa fotomontagem.

Achei bacana!

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Nené

A história foi tão complicada que quando meu pai perguntou "você gosta dele?" eu nem soube responder.

Depois em frente ao cartório, onde ele foi registrar a autorização para eu viajar, um conhecido perguntou para onde eu ia. O pai respondeu "Nápoles" e o cara entendeu "Anápolis", no interior de SP. Seria realmente mais fácil me apaixonar por alguém de Anápolis... ao menos não precisaria de autorização do juizado de menores.

De todo modo é estranha a sensação da primeira paixão recíproca. Parece que você está vivendo um filme, porque são as primeiras imagens de paixão que a gente tem. Talvez as únicas?

Foi num momento, quando mal nos conhecíamos, que ele lembrou de uma música e pegou uma caixa de sapatos com sua coleção de compactos (!) dos anos 70. Colocou o disco e me convidou para dançar.

E dançamos sozinhos, no meio da sala, no apartamento escuro que tinha uma varanda estreita que dava para outro prédio.

Ele me deu uma fita cassete quando voltei para o Brasil, que escutei até decorar, mas emprestei para minha melhor amiga quando ela foi de férias para Londres e nunca mais voltou. Nem a amiga nem a fita. Mas como eu ia adivinhar que ela decidiria morar lá, de repente, no meio da viagem?

Procurei a música durante anos, em lojas de CDs importados. Achei várias coletâneas, mas nenhuma tinha a música específica, essa que dançamos juntos.

Depois o cantor teve um CD lançado no Brasil, foi tema de novela, mas já eram músicas recentes e bem ruins mesmo.

Agora tenho raiva do You Tube, porque preferia não lembrar disso nem chorar como estou chorando na frente do computador.

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Aqui está a letra, para quem se interessar. E o video abaixo.

http://www.youtube.com/watch?v=_CFqBP5hFbE&feature=related

Mandala

A imagem está aqui, o texto está ali.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Savin' up

Ah, roubei a foto ao lado do blog "Não somos apenas rostinhos bonitos".

Que traz uma bela frase de Tucidides, talvez (provavelmente?) uma paródia: "Somos amantes da beleza sem extravagância e amantes da sabedoria".

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De todo modo, Peter Handke (sempre ele) é um grande fã de Tucidides.

Repente 5

Esse diálogo com Paulo, que de início parecia um duelo de surdos, criou novo sentido para mim quando encontrei em Peter Handke uma referência a Faulkner.

Eu precisaria confessar, para o contexto, que me interessei por literatura inglesa e americana há uns 10 anos, muito. Só recentemente resolvi me concentrar nas literaturas brasileira, italiana, russa e francesa. Decisão meio arbitrária, respaldada por uma frase que ouvi de um amigo, vinda de uma entrevista de Beckett ou alguém assim. Pediram sua opinião sobre "os russos" e a resposta foi: "Desculpe, mas não leio os russos."

Para não ficar elíptico demais, seria talvez o caso de traduzir o subtexto. Que compreendi assim: "Entendo que os russos são importantes. Mas tenho uma vida só e não posso ler tudo, então decidi não ler os russos."

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Voltando à passagem de Handke:

"Mas minha mãe não se tornou, definitivamente, algo de intimidado, algo de insignificante. Começou a afirmar-se. Como não precisasse mais se desdobrar tanto, encontrou-se aos poucos consigo mesma. O nervosismo passou. Às pessoas mostrava a cara com a qual mais ou menos se sentia bem.

Lia jornais, livros de preferência, onde podia comparar as hisórias à sua própria biografia. Lia junto comigo, primeiro Fallada, Knut Hamsun, Dostoievski, Maxim Gorki, depois Thomas Wolfe e William Faulkner. Não manifestava sobre tudo isso nada de publicável, apenas recontava o que havia sido especialmente do seu agrado. "Mas eu não sou assim, de jeito nenhum", dizia às vezes, como se o autor em questão a ela mesma, em carne e osso, houvesse descrito. Lia cada livro como se se tratasse de uma descrição de sua própria vida, ganhava com isso uma vida nova; pela leitura explicava-se a si mesma pela primeira vez; aprendeu a falar sobre si mesma; a cada livro mais idéias vinham-lhe à cabeça. Dessa forma acabei sabendo pouco a pouco alguma coisa sobre ela."

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Peter Handke, Wunschloses Ungluck, tradução Zé Pedro Antunes.

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No posfácio do tradutor, há a seguinte passagem sobre o próprio Handke:

"Segundo relata a Heinz Ludwig Arnold, sua descoberta da literatura se dá na forma de um mundo contrário ao que conhecia. Bernanos e Faulkner foram os iniciadores. Depois vieram Julien Green e tudo o que tinha a ver com a França católica de então. "E esse mundo, que a partir desses livros se abatia sobre mim, estava naturalmente em oposição àquele no qual eu vivia, a vida real. Portanto, compreendi que ali nos livros de Faulkner e Bernanos havia algo diferente, que de mim sempre fora ocultado e que também de mim mesmo eu me ocultara."

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Frases da semana

1) Meu cabrito resumindo sua opinião sobre a minissérie "Capitu":

"Depois da escolha de elenco do Luiz Fernando Carvalho, resolveu-se a grande questão. Capitu traiu Bentinho."

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2) Das pérolas da publicidade atual, no caso um anúncio de desodorante com fragrância de grapefruit e capim limão (!!):

"Dê às suas axilas uma inesperada sensação energizante."

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Deus do céu... desejo tudo para minhas axilas, menos uma sensação energizante. Que fiquem quietas e em paz em seu lugar reservado e discreto.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Italiana de gêmeos

Segundo minha mãe, meu pai quando jovem admirava a família dela, de italianos, que gritavam e riam e falavam tudo uns na cara dos outros. Ele achava bacana, comparando com a família dele, galegos, um gente medrosa e enrustida que engolia as raivas e ia acumulando ódios em silêncio.

São informações distantes e distorcidas... quando meu pai teria falado dessa admiração para minha mãe? Quando eu era criança, 30 anos atrás? Talvez antes, quando eram namorados e eu nem tinha nascido? E quando minha mãe contou isso pra mim? Há dez anos já? O comentário inicial, qual tenha sido, está disperso nas nuvens da memória.

De todo modo, simbólica e até literariamente, existem essas figuras do italiano aberto, que responde alto, fala tudo, e do português/galego mesquinho, econômico e enrustido.

Tenho as duas heranças culturais e entendo na pele o que as duas significam.

Mas, honestamente, acho as distinções mais simbólicas do que reais. Do mesmo modo que odeio generalizações entre homem e mulher ("os homens são assim, as mulheres são assado..."), também desconfio das generalizações nacionais. Pra mim valem tanto quanto astrologia, sem demérito desta. Algum valor têm: são referências a partir das quais tentamos nos compreender e definir, já que a noção de "indivíduo" não é espontânea nem inata, e sim construída. Mas, se olhamos no detalhe, não há nenhuma generalização possível entre um homem italiano de peixes e uma mulher galega de áries.

Dito isso, hoje, simbolicamente, ando num humor "mulher-italiana-de-gêmeos". Ou seja, estou falando tudo que me passa pela cabeça.

E digo uma coisa: falar alivia muito.

Se incomodar alguém, que me mandem calar a boca. E posso responder como criança: "cala-boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu".

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Um caderno direcionado

Alguns anos atrás, uma jornalista me pediu uma proposta de coluna para adolescentes. Ela queria algo diferente porque estava cansada das colunas repetitivas da revista onde trabalhava.

Fiz uma proposta inspirada na revista MAD mas o negócio não foi em frente... Mais um texto ressurgindo das trevas da minha gaveta.

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Respostas Improvisadas para Dúvidas Existenciais


Avisos Iniciais:

1) “dúvidas existenciais” são exatamente o que dizem as palavras: dúvidas sobre a existência - própria, das coisas, dos outros, e da relação entre tudo isso.

2) “respostas improvisadas” também é uma expressão a ser entendida literalmente: a escritora (no caso eu) viveu 30 anos sofrendo e se preocupando por aí, e agora acha que aprendeu o suficiente para responder conforme lhe parece à primeira leitura. Se escrever alguma bobagem, será com boas intenções. No mais, paciência.

3) A princípio prefiro ser delicada. Mas em alguns momentos talvez escolha ser direta.

4) Não gosto de desperdiçar palavras.

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Carta 1


"A reportagem política sobre corrupção se faz pertinente em uma revista direcionada para o público jovem. Pequenos e corriqueiros delitos do cotidiano necessitam ser corrigidos o mais rápido possível pelos seus autores, podendo haver conseqüências imprevisíveis desses atos para a sociedade. É lamentável que esta revista prefira tietagens com bandas a temas pluralistas e extremamente importantes para a formação de seus leitores.


Resposta:


Amigo, você está completamente certo sobre o valor da honestidade, e, ao que me parece, bastante errado sobre bandas e tietagem. O importante é aproveitar a vida fazendo algo útil. Algumas pessoas começam como tietes e fazem algo legal com isso. A juventude às vezes é longa, outras vezes curta, não pega bem sair julgando as pessoas apressadamente.

Mas respondendo ao assunto que te interessa: os pequenos e corriqueiros delitos do cotidiano podem não ter gravidade se forem o que as palavras dizem, pequenos e corriqueiros.

Vejo problemas quando passam a envolver dinheiro grande (público ou privado) e interferem cruelmente na vida das pessoas, principalmente nas coisas mais essenciais: educação, nutrição, alegria.

Você está no caminho certo, mas não fique amargo demais.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Ci vorrebbe il mare

Ando numa fase "Ouro de tolo" com terapia. Ou seja, posso cantar os versos duvidosos do Raul Seixas ("Eu devia estar contente porque tenho um emprego, sou o dito cidadão respeitado e ganho quatro mil cruzeiros por mês") mudando o tempo verbal.

Digo com toda tranquilidade de quem já passeou por vários remédios, médicos e psicólogos diferentes, conhece as bulas de antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores de humor, e já deitou no divã uma, duas, quatro vezes por semana, e fez reiki e ioga e sabe que eletrochoque hoje em dia é um alternativa viável. Enfim, depois disso posso dizer com todas as letras: ESTOU contente porque tenho um emprego e tal e tal. E acho macaco, praia, carro, jornal, tobogã... acho tudo isso lindo.

Então às vezes lembro das músicas ultra-melancólicas de que eu gostava quando era nova, e tento entender o que via de tão triste e comovente nelas. Até escrevi sobre isso uns anos atrás, está no meu site antigo, cito no post abaixo.

Tem uma música que eu adorava quando estudava italiano - "Ci vorrebbe il mare", de Marco Masini. Um romantismo praticamente insuportável para qualquer pessoa normal, mas digamos que tenho tolerância para o brega em alguns casos.

Então essa música, cujo título diz aproximadamente "precisaríamos do mar" ou "seria necessário o mar", me tocava fundo mesmo. Não tenho paciência pra explicar em detalhes, mas queria traduzir alguns versos para registro.

Meu trecho preferido dizia o seguinte:

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"Precisaríamos do mar para ir ao fundo
agora que você me larga como um pacco (?) pelo mundo.

Precisaríamos do mar com suas tempestades
que batesse ainda forte nas tuas janelas.

Precisaríamos do mar sobre nossa vida
que deixasse para fora, como uma flor, os teus dedos
assim teu amor eu poderia colher e salvar
mas para fazê-lo ainda, juro, precisaríamos do mar.

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Eu gostava dessa imagem dos dedos para fora, tentando sobreviver ao mar. Mas isso significa que o enamorado gostaria que sua amada se afogasse, para que ele pudesse salvá-la? Um tanto sádio, talvez.

De todo modo me comovia.

Tem o vídeo no You Tube para quem tiver coragem de ouvir:

http://www.youtube.com/watch?v=Qxb5k12fvYg&feature=related

Hiatos de afeição

Esse era um trecho do texto a que me referi no outro post.

Escrevi faz tempo. Relevem a falta de estilo.

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"Teus olhos me passam relato de fácil leitura
me revelam teus hiatos
de afeição nas aventuras.
Me contam que a velha saudade ainda te guia
não te traz felicidade
um amor a cada dia."

É esse ponto da música que me machuca. Já nos primeiros versos, três coisas soam terrivelmente pungentes a mim:

Primeiro o mais óbvio, ou talvez nem tanto: os hiatos de afeição nas aventuras. É um lugar comum hoje em dia dizer que as mulheres ultrapassaram os limites do feminismo, não têm mais delicadeza nem mistério, e atacam os homens, eles ficam assustados, e elas sozinhas e infelizes.

Eu mesma não sei se concordo com isso, acho que o problema não está nas mulheres nem no feminismo. E tampouco nos homens, mas sim nessa financeirização dos relacionamentos que já comentei acima. Se a questão não é mais amar ou não, o que pressupõe admiração, real ou idealizada, pelo outro, mas sim ter uma relação porque "um carinho às vezes cai bem", então me parece natural que as mulheres se atirem, porque elas são criadas pra resolver as coisas práticas - arrumar a casa, fazer supermercado e tal. Se no caso está faltando um homem, do mesmo modo que falta detergente ou adoçante, então é evidente que ela vá atrás de um com a mesma eficiência com que passaria no Pão de Açúcar 24 horas pra buscar um papel higiênico. Os homens, privados desse aprendizado por suas mães que faziam tudo por eles, ficam meio perdidos em tanta eficiência, não sabem direito como reagir.

Por isso a música acerta ao falar de hiatos de afeição nas aventuras. Veja que não está se falando de momentos de arrependimento, solidão ou tristeza, o que seria uma consequência óbvia desse tipo de relacionamento superficial. Pelo contrário, fala de hiatos de afeição. Se desenha uma pessoa que, mesmo vivendo a vida do seu tempo, cheia de aventuras e com pouco sentimento, ainda assim, nos hiatos, tem uma afeição verdadeira dentro de si.

Essa afeição é comprovada nos versos seguintes:

"Me contam que a velha saudade ainda te guia.
Não te traz felicidade um amor a cada dia".

Cá está o amor redentor que muda as pessoas e é tão raro - tão raro que aconteceu uma vez, no passado, por isso é descrito como "a velha saudade". Aquela velha saudade que ainda te guia, mesmo depois de tantas aventuras, mesmo depois de um amor a cada dia.
Os primeiros versos da estrofe desenham este tipo de mulher, mas colocam ainda uma segunda pessoa, o homem que observa. A música não diz "Você tem hiatos de afeição", mas sim "Teus olhos me revelam" esses hiatos.

A moça, além de ter só essa sementinha perdida de amor, além disso não fala dela, mantém guardada, em silêncio, e só seus olhos revelam isso, para quem sabe olhar. Algo que estaria estampado, pois são "relatos de fácil leitura", mas que outras pessoas não vêem, porque não querem, ou não são suficientemente sensíveis. Só uma pessoa, o cantor da múscia, é quem consegue ver. Só a ele os olhos passam e revelam esses relatos.

O que ronda esta estrofe toda é a palavra amargura, que não está nos versos, mas paira como um fantasma por ser a rima mais imediata de "leitura" e "aventura". Uma rima que não se concretiza, mas permanece ali como nuvem negra.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Repente II

Cheguei ontem às duas páginas do livro que mais me marcaram, quando o li pela primeira vez dez anos atrás. Ainda me causam a mesma emoção, um texto quase abstrato mas pungente.

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"Pobreza" era uma palavra bonita e, de certo modo, uma palavra nobre. Dela imediatamente emanavam representações como que saídas de antigos livros escolares: pobre, porém limpo. A limpeza habilitava os pobres para a vida em sociedade. O progresso social consistia numa educação para o asseio; uma vez tornados limpos os miseráveis, "pobreza" passou então a ser uma designação honrosa. A miséria, para os próprios atingidos, era, então, unicamente a sujeira dos associais num outro país que não o seu.

"A janela é o cartão de visita do morador da casa."

Dessa maneira, obedientes, os despossuídos gastavam os meios progressistamente concedidos para custeio de seu saneamento no asseio de suas prórpias patas. Quando na miséria, haviam transtornado ainda a imaginação pública com imagens repulsivas, mas exatamente por isso vivenciáveis de maneira concreta; agora, enquanto "camada menos favorecida", saneada, higienizada, superando qualquer imagem, tão abstrata tornou-se a vida deles, que podiam mesmo ser esquecidos. Da miséria havia descrições físicas; da pobreza, tão somente alegorias.

E também as descrições físicas da miséria visavam apenas aquilo que na miséria era fisicamente repulsivo; produziam, na verdade, essa repulsa, com aquela sua degustativa espécie de descrição apenas, com a qual a repulsa, em vez de se transformar em impulso para a ação, recordava apenas ao indivíduo sua fase anal, quando se comiam ainda as próprias fezes."

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Ele escreveu isso em 1972. A tradução é de Zé Pedro Antunes.

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O título "repente" se refere ao diálogo com Paulo da Luz Moreira.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Seculares pesadelos

O Paulo propôs um repente de citações e gostei da idéia.

Hoje tenho pressa e não posso explicar o contexto. Espero que a passagem fale por si.

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"Prosseguiu economizando sempre, até que, para casamento ou exercício de profissão, os filhos viessem a necessitar um dote. Utilizar já antes disso as economias na EDUCAÇÃO deles, uma tal idéia, sobretudo no que dizia respeito às filhas, de forma alguma lhe poderia ocorrer assim como sendo natural. E mesmo nos filhos varões, tão entranhados se achavam os seculares pesadelos dos destituídos, de em toda parte se acharem fora de lugar, que um deles, tendo recebido, mais por acaso que em virtude de havê-lo planejado, uma vaga gratuita no ensino secundário, passados alguns dias, não suportando mais o ambiente desconhecido, percorreu durante a noite, a pé, os quarenta quilômetros entre a capital da província e a casa dos pais, e, diante da casa - era um sábado, dia em que habitualmente a casa e o pátio eram limpos -, sem uma palavra, imediatamente começou a varrer o pátio; o ruído que fazia com a vassoura, em pleno alvorecer, queria já dizer o suficiente."

Peter Handke, "Bem-aventurada infelicidade" (Wuschloses Unglück)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Wunschloses Ungluck

A semana está tão corrida que não consigo ler nem escrever nada.

Tenho 3 livros na cabeceira da cama - O filho eterno, o primeiro volume de Memórias do Cárcere, a biografia do Oswald. Lia os três paralelamente conforme o humor, mas o livro do Peter Handke chegou devastando terreno.

Sou fascinada por esse texto, escrito alguns meses depois do suicídio da mãe de Handke. O relato em processo, a tentativa de organizar as memórias antes que se diluam, em estado de crise, sem tempo ou reflexão demasiados.

Quando tiver um tempinho, vou postar um trecho a cada dia. É um livro curto, cerca de 60 páginas.

Eu poderia dizer, talvez a escolha mais difícil, mas no caso desse livro eu diria: é meu texto preferido entre todos no mundo, junto com "Uma história ao modo quase clássico", de Harold Broadkey.

Que também narra suas memórias da morte da mãe adotiva.

Dois textos diretos em nervo exposto.