quarta-feira, 30 de abril de 2008

Erros com a criança

Um trecho de "Breve carta para um longo adeus", Peter Handke:

"- Cometi muitos erros com a criança - disse Claire... Não queria que ela se portasse como dona do mundo, ou como se aquilo que lhe pertence fosse o mundo todo. Queria evitar que se apegasse aos objetos, porque acreditava que a educação americana fortalecia ainda mais essa tendência para apegar-se aos objetos. Não lhe comprava brinquedos, apenas a deixava brincar com coisas destinadas a outra finalidade, como escovas de dentes, potes de pomada de sapato, utensílios domésticos. Ela brincava com elas, depois ficava olhando sem se aborrecer quando eram usadas. Mas se outra pessoa também quisesse brincar com elas como ela fazia, não as queria dar, e portava-se como se fossem brinquedos comuns. Então acreditei que estava realmente desenvolvendo aquela mania de posse, e tentei convencê-la a entregar tudo à outra criança que quisesse brincar. Mas ela se agarrava aos objetos, e como eu ainda o interpretasse como desejo de posse, tirei-lhe tudo. Só mais tarde notei que provavelmente ela se agarrava àquilo de medo."

terça-feira, 29 de abril de 2008

Sete linhas

Comecei a escrever num outro blog, chamado "Sete linhas".

São sete amigos que escrevem, um a cada dia. Pequenos textos de... sete linhas.

Eu escrevo na terça.

O link é www.setelinhas.blogspot.com

domingo, 27 de abril de 2008

Casinha vizinha

Ainda por causa do doutorado, estou lendo "Machado de Assis", de Lúcia Miguel Pereira. É um livro de 1936 e muito famoso para quem estuda literatura brasileira. Mas acho que não o leria nunca se não fosse o curso.

Adoro certas expressões que se usavam antigamente. A palavra "feitio", por exemplo. Uma frase do prefácio:

"Tarefa em regra penosa, não raro degenerando em lição de humildade, a de rever textos antigos. Não digo que ma poupasse este..."

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Uma vez vi um folheto anunciando algumas palestras místicas, e um dos temas era "saudades de lugares que não se conheceu". Eu tenho saudades dessas palavras que nunca usei. Principalmente essa contração do pronome com o artigo, que só uma vez tive coragem de escrever.

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Nesse livro há uma das frases mais lindas já escritas sobre Machado de Assis:

"Não suspeitava Dona Maria José de Mendonça Barroso, viúva de Bento Barroso Pereira, senador, oficial general do exército, ministro duas vezes, de D. Pedro I e da Regência trina, que seu nome só passaria à posteridade por haver, em 13 de novembro de 1839, consentido em ser madrinha de uma criança nascida a 21 de junho desse mesmo ano, numa casinha vizinha da sua chácara."

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Breve carta

Durante muito tempo Peter Handke foi meu escritor preferido. Ele escreveu algumas alegorias e contos de fada, de que não gosto. Mas seus ensaios e novelas sempre me fascinaram. Principalmente a que escreveu depois do suicídio de sua mãe.


Em 1997, diante da extrema dificuldade de encontrar um método para escrever, tive a idéia de contar as linhas de cada parágrafo do livro "Breve carta para um longo adeus", e tentar escrever seguindo a mesma ordem, o mesmo número de linhas exatamente.


Não consegui, mas é um indício de como ele era importante para mim.


Em 2004 estive em Paris e liguei para sua assessoria de imprensa, perguntando se seria possível encontrá-lo. A mulher que atendeu ao telefone parecia absolutamente surpresa, como se minha pergunta fosse ingênua e pretensiosa ao mesmo tempo - enfim, como eu não sabia? - o pedido era absurdo. Mandei um e-mail insistindo, em inglês, e ela nunca me respondeu.


Não sei se ele ainda vive recluso numa casa nos arredores de Paris, como vivia naquela época.


Em 1997, colei uma foto em meu armário. Mesmo reconhecendo como ele era feio.



quinta-feira, 24 de abril de 2008

Armário de roupa branca


Comprei ontem o livro "Minha Ántonia", de Willa Cather, porque achei a capa linda. De maneira geral, desde que não me pareçam absolutamente idiotas, tento ler sistematicamente os livros escritos por mulheres. Principalmente os mais antigos, porque hoje escrever é mais fácil e há muita banalidade. Mas tenho um encanto pela obstinação das mulheres que conseguiram escrever, apesar de tudo, no início do século XX. O livro é narrado em primeira pessoa (o que me agrada muito).


Segue um trecho:

"Nossa vida pessoal era tão livre quanto a de nossos professores. A faculdade não tinha dormitórios; morávamos onde e como podíamos. Alojei-me na casa de um casal de velhos, que tinham casado os filhos e agora viviam na orla da cidade, perto do campo aberto. Como a casa, por sua localização, era incoveniente para estudantes, pude alugar dois quartos pelo preço de um. Meu quarto de dormir, originalmente um armário de roupa branca, não tinha aquecimento e mal comportava a minha cama de armar, mas me permitia chamar o outro cômodo de meu estúdio. Empurrei para um canto a penteadeira e o grande guarda-roupa de nogueira, que guardava todas as minhas roupas, até chapéus e sapatos, e fazia de conta que não existiam, como fazem as crianças com objetos incongruentes quando brincam de casinha."


terça-feira, 22 de abril de 2008

Solidão e estafa

Parágrafos 21 a 23:


"Foi num destes períodos de solidão e estafa que, visitando meu irmão, comentei o que se passava. Naquele tempo ele estava terminando o curso de psicologia, e, depois de minha confissão sofrida, disse algo que mudou minha compreensão:

- Denise - ele disse - não quero falar coisas sobre sua vida que não conheço direito. Mas o sexo é uma coisa muito importante na mente das pessoas. Tão importante que elas simbolizam, através do sexo, todas as preocupações de sua vida. Por exemplo: a criança é a coisa mais indefesa que existe... Um adulto, transando com uma criança, tem total poder sobre ela, que não tem como reagir. Se você tem essa fantasia, não significa necessariamente que você foi abusada e não se lembra. Pode ser que você se sinta oprimida por uma situação qualquer - o trabalho, a falta de dinheiro - e transforme essa opressão numa fantasia sexual. Numa cena em que você pode finalmente dominar a situação.

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Talvez eu estivesse errada quando decidi interromper o tratamento com o terapeuta. Ele seria provavelmente mais capaz de interpretar o que não consegui."

sexta-feira, 18 de abril de 2008

O iceberg imaginário

Uma coisa bonita.

(trecho de "Questões de viagem", poema de Elizabeth Bishop na coletânea "O iceberg imaginário", tradução do Paulo Henriques Britto)

Desculpem o cansaço, a edição é bilíngue, mas não digitei o original.

"Pensemos na longa viagem de volta.
Devíamos ter ficado em casa pensando nas terras daqui?
Onde estaríamos hoje?
Será direito ver estranhos encenando uma peça
neste teatro tão estranho?
Que infantilidade nos impele, enquanto nos resta
um sopro de vida, a partir decididos a ver
o sol nascendo do outro lado?
O menor beija-flor verde do mundo?
Ficar contemplando uma antiga e inexplicável obra de cantaria,
inexplicaável e impenetrável,
qualquer paisagem,
imediatamente vista e sempre, sempre deleitosa?

(...)

Mas certamente seria uma pena
não ter visto as árvores à beira dessa estrada,
de uma beleza realmente exagerada,
não tê-las visto gesticular
como nobres mímicos de vestes róseas.
- Não ter parado num posto de gasolina e ouvido
a melancólica melodia de madeira, com duas notas só,
de um par de tamancos descasados
pisando sonoros, descuidados,
um chão todo sujo de graxa."

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Debaixo daquele céu

Ainda sobre o texto de ontem, com o perdão da obsessão: não parece fluxo de consciência, né?

Porque a maioria dos fluxos de consciência são muito cafonas.

De todo modo, gostei de ter escrito "como eu posso sair debaixo daquele céu sem proteção?"

A idéia de proteção é muito funda em mim, por isso usei a palavra abstrata em vez do nome real do objeto. Uma vez escrevi uma brincadeira que ninguém entendeu direito, mas significava muito (para mim):

"Tudo o que quero na vida é desligar meu computador com segurança."

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Transtorno bipolar

Estou completamente obsessiva. Só fui reler o texto para mandar a uma amigo e comecei a revisar e passou mais de uma hora e são onze e meia e preciso fazer o check-out no hotel ao meio-dia.

Não terminei de revisar e não posso mais escrever.

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Estou num hotel no centro do Rio de Janeiro. Esqueci de trazer qualquer tipo de papel branco então preciso sair e procurar uma papelaria. Mas está chovendo. Antes de atravessar a rua procuro um camelô com sombrinhas. Apesar de ser o Rio de Janeiro não vejo nenhum. Caminho dois quarteirões me escondendo sob marquises, o vento está forte, até que encontro um garoto que pergunta se quero um taxi e quando digo não, quero uma sombrinha, ele chama um velho coberto com uma lona preta que me leva até uma barraca de presilhas e elásticos de cabelo e a mulher gorda tira uma sacola debaixo da bancada e ali há os guarda-chuvas. Mas o velho avisa que só tem de cinco reais. Olho o vento, não vai aguentar, mas como eu poderia sair debaixo daquele céu sem proteção? Mas a sombrinha não protege nada enquanto demoro para atravessar porque não conheço os semáforos, a avenida tem duas pistas e o sinal fecha quando estou na canaleta, não conheço a cidade nem a personalidade dos motoristas, não tenho coragem de passar entre os carros andando, um homem passa e me sinto uma covarde. A chuva não é tão forte mas é o vento, minha perna quase toda molhada. Entro na papelaria: peço uma caderneta, vejo outro guarda-chuva mais forte de doze e noventa, pergunto onde tem uma lan-house ali perto. A caderneta nem seria necessária se eu pudesse escrever direto no computador, mas na dúvida compro e procuro, a caderneta é bonita, é lilás e tem uma flor. A moça de avental me indica a esquina da rua Santa Luzia com a Graça Aranha, mais quatro quarteirões, posso dobrar à esquerda na igreja para me localizar, ela diz. Chego lá e não vejo nada. Tenho medo de perguntar para que não percebam que não sou da cidade e não me assaltem, mas vou e volto pelo mesmo trecho e isso vai dar ainda mais na cara, então pergunto. O vendedor de fones de ouvido aponta a loja que seria do outro lado da rua, mas não existe mais, é um posto de serviço da Nokia. Continuo andando e tentando descobrir pessoas que não pareçam perigosas para perguntar, será que existe mesmo outra lan-house, em quase todas as quadras só vejo prédios do governo, talvez nessa área não haja comércio pequeno. Uma hora de internet no hotel custa dezesseis reais. Gastei mais com os dois guarda-chuvas, mas eu precisava sair, de todo jeito, porque também não quero pagar três reais por meio litro de água no frigobar. Antes de atravessar a rua e comprar o primeiro guarda-chuva, a mulher da banca de jornal havia me indicado um mercadinho e pensei além da água também em comprar algum pão para jantar. Mas ninguém sabe de nenhuma lan-house, ninguém usa internet nesse centro? Todos esses pobres andando na rua, eles não precisam de lan-houses para entrar no orkut porque não têm dinheiro para ter computador em casa? Com tantos pobres precisaria haver uma lan-house, pelo amor de deus. Continuo andando, estou andando realmente rápido e as ruas estão cheias de poças, é difícil ver o que há na frente por causa dos guarda-chuvas meu e de todos os outros pobres como eu, uma vez a mulher do meu chefe disse que nunca mais usou guarda-chuva depois que comprou um carro, porque para ela guarda-chuva é coisa de quem não tem carro. Era melhor desistir. Resolvi voltar para o hotel porque dezesseis reais ao final não era tanto, o Teatro Municipal estava lindo à minha frente, mas era absurdo eu estar ali toda molhada porque eu tenho dezesseis reais, eu posso pagar a água do frigobar, eu não precisava ter saído do hotel para começo de conversa. Mas eu não consigo me controlar: não é só a quantidade de dinheiro, eu também não quero dar dezesseis reais para aquele hotel porque uma hora de internet não vale isso, não vale. Apesar do meu estado lamentável e da humilhação daquela chuva e daquela cidade barulhenta e cheia de ônibus pintados de faixas amarelas e azuis que não combinam de jeito nenhum eu pergunto a um último careca mal humorado demais para aquela cara bem alimentada que mal aparenta trinta anos. Parece que ele não quer responder e demora para dizer de má vontade que talvez na Treze de Maio, só voltando, depois do Teatro Municipal, ele não sabe e não quer saber, eu que vá lá se quiser. Informação antipática e voluntariamente desvalorizada mas se eu segui a moça boazinha da papelaria que estava errada eu vou agora também. E agora estava certo. Havia andaimes porque o prédio estava em reforma, e o dono tem sotaque argentino, mas o computador está aqui.

De todo modo eu precisava andar. Porque estou acima do peso e meu equilíbrio emocional não é dos melhores por isso preciso fazer exercício e o hotel não tem sala de ginástica.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Papel branco

Estou num hotel no centro do Rio de Janeiro. A chuva não é tão forte mas o vento desmontou minha sombrinha de cinco reais. Parei numa papelaria para comprar uma caderneta porque esqueci de trazer qualquer tipo de papel branco. Peguei também um guarda-chuva de doze e noventa, com alguma dúvida se valeria mesmo a pena. Perguntei para várias pessoas na rua onde poderia encontrar uma lan-house ou algo assim, uma hora de internet no hotel custa dezesseis reais. Quase o preço do guarda-chuva, mas eu precisava sair, de todo jeito, porque também não quero pagar o preço da água do frigobar. Então a mulher da banca de jornal me indicou um mercadinho onde eu encontraria água de litro e algum pão para jantar. A moça da papelaria havia me indicado uma lan-house na esquina da rua Santa Luzia com a Graça Aranha, que não existe mais, agora é uma loja da Nokia. Ninguém mais sabia dizer, as ruas estão cheias de poças, é difícil ver o que há na frente por causa dos guarda-chuvas meu e de todo mundo. Quando estava quase desistindo, perguntei a um último camelô. Ele indicou uma direção que podia ser certa ou incerta como as outras. Voltei ainda três quadras, não foi fácil, mas cheguei aqui.

Mas eu precisava andar, mesmo assim. Porque o hotel não tem sala de ginástica.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Um qualificativo

Algum tempo atrás procurei estudar métrica em poesia, o que sempre foi um mistério para mim. O ritmo romântico (tônica na quarta e oitava sílaba?), o ritmo clássico. Fiz quatro aulas particulares e mas estava ficando caro e parei. Aprendi um pouco, mas o essencial continuou obscuro: os antigos e alguns novos manuais de métrica descrevem as opções mas não explicam seu motivo: por que um ritmo seria melhor que o outro? Quem decidiu isso, historicamente? Ainda não sei.

De todo modo, desde essa época comecei a prestar mais atenção no ritmo dos meus textos. Quando coloco, numa frase, três orações seguidas, tento mudar o ritmo na frase seguinte, deixando apenas uma ou duas orações. É meio intuitivo e às vezes experimento variações no mesmo trecho, trocando "e" por ponto, vírgula por "e", ponto por vígula etc.

Na semana passada li algo sobre isso num artigo de Mário de Andrade sobre os livros lançados no centenário do nascimento de Machado de Assis. Ele comenta o livro "Doença e constituição de M.A.", de Peregrino Júnior (1938):

"É, por exemplo, contestável que o ritmo ternário, característico de certas enfermidades, ocorre na obra de M.A.... seria preciso examinar também as vezes em que o escritor empregou o ritmo binário e as vezes em que bordou o substantivo apenas com um qualificativo."

Eu nunca havia lido nada sobre o isso: o ritmo baseado na quantidade de adjetivos. Muitas vezes usei muitos adjetivos na primeira versão, depois cortei na medida em que me pareceram redundantes. É um impulso de ênfase, no início, que depois se mostra desnecessário.

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Parágrafos 18 a 20:


"Durante muitos anos tive um pensamento recorrente que me envergonhava muito. Quando era noite, e eu sentia vontade de me masturbar, a cena que me vinha à mente era a sedução de um homem adulto, que convencia uma menina a aceitar a penetração. Nesta cena que construí centenas de vezes, em vários ambientes e posições, não havia beijos, nem toques, nem outros contatos físicos além dos necessários à penetração. Não era uma cena de estupro, mas a lenta estratégia em que a criança só percebia a violência a que era submetida quando já não tinha possibilidade de escapar.

Eu tinha uma vergonha e uma dúvida. A primeira era pensar que eu mesma, que queria me considerar uma pessoa boa, tivesse algo mau dentro de mim, uma vontade que, mesmo não admitida, existia e era cruel. A segunda era temer que esta violência tivesse sido infligida a mim quando pequena, numa situação que eu não recordasse, mas tivesse alterado ou condenado minha saúde emocional.

Carreguei esta vergonha por muitos anos. Havia períodos em que minhas preocupações variavam e a cena não me despertava interesse. Quando então eu pensava estar livre de sua carga, às vezes cansada de tanto trabalhar, sozinha e triste no pequeno apartamento em que morava, e queria apenas me masturbar rapidamente para sentir sono e dormir, nos momentos em que estava frágil e não precisava de mais aborrecimentos, eis que eu tentava pensar em gente nua, imagens eróticas e sãs, e nenhuma conseguia me excitar. Mulheres, seios, homens, nada. Era assim que, como único remédio capaz de amenizar meu cansaço, trazendo o orgasmo e o sono, eu construía novamente a imagem vergonhosa do abuso infantil."

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Um motivo real

Parágrafos 13 a 17:

"As imagens começaram a surgir, nos meses seguintes, em golpes de memória - numa banca de jornal, no caixa do supermercado, em qualquer tempo morto. Eram cenas comuns, imagens que eu nunca quis esquecer, que relembraria talvez se alguém me perguntasse. Cenas que me pareciam familiares e ao mesmo tempo estranhas: porque eu poderia lembrar, mas não lembrava. Não havia esquecido, mas isso era menos importante que essa outra condição: a condição de não lembrar.

Tinha uma sensação vaga de que essas lembranças, por sua pouca importância, eram talvez mais importantes que a memória recorrente de minha vida, a história a que eu havia me acostumado. Pensei que um terapeuta poderia me ajudar. Talvez pudesse, e desisti. Quando o procurei, tinha vergonha do que iria dizer. Quando parei, senti culpa pelo que não disse.

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Algum tempo depois de interromper o tratamento, comecei a anotar as cenas. Pensei que os sentimentos ficariam no papel e minha memória se esvaziaria. Mas a falta de lógica entre as anotações me incomodava. Faltavam detalhes, eu não lembrava por que certas coisas haviam acontecido. Não queria um motivo profundo e existencial: sentia falta do motivo real, da causa imediata de cada cena.

Com muita dificuldade escrevi o que se segue. Não sei se o texto é claro, nem se está bem escrito. Apenas tentei estender minha memória até onde pude, para ser clara, ser exata, mostrar o que aconteceu no limite de minha possibilidade.

Tenho medo que tudo isso, por mais custoso que me tinha sido, ainda não explique o essencial. O sentimento que surgiu diante daquela imagem: ele e sua filha."

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Marca no vidro

Parágrafos 10 a 12:

"Durante algumas semanas senti vergonha de olhar para seu rosto, só nos cumprimentávamos rapidamente na faculdade. Quando eu entrava no departamento, ele saía. Eu também fazia o mesmo. Não conseguia me desligar da imagem de seu corpo estendido em minha cama - lembrava sua temperatura, o desenho de seus músculos e ossos. Meu pensamento, instável, se alternava entre a leveza de seu rosto, antes daquela tarde, e o sorriso que sumia - a melancolia que aparecia quando nos encontrávamos, a expressão diante da janela do meu quarto.

Houve uma manhã em que saí da faculdade antes da aula terminar. Quase não havia alunos no pátio. Ele estava parado na calçada, em frente a uma banca de livros usados, com uma menina de cabelos escuros. Ela segurava sua mão, enquanto ele tentava lhe mostrar alguns livros. Ela parecia impaciente e puxava seu braço, até que ele desistiu e seguiram para a rua, onde seu carro estava estacionado. Enquanto caminhavam, e ela esperava que ele abrisse a porta, a menina não conseguia descansar. Olhava irritada para carros e pessoas que passavam. Ele dizia algumas coisas que ela mal respondia. Esperei que saíssem, e segui para o estacionamento.

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Comecei a dirigir e senti a lembrança repentina do sol forte, que me ofuscava os olhos, na ladeira de paralelepípedos, na feira de artesanato, no centro de minha cidade. Eu deveria ter dez ou onze anos. Meu pai me chamara para passear sozinha com ele. Nós andávamos pela feira em silêncio e ele me perguntou várias vezes o que eu queria comprar. Eu não sabia escolher, a pergunta era incomum. No alto do morro, ao lado da igreja matriz, sentamos numa lanchonete e ele perguntou se eu queria um refrigerante. Lembro com detalhes da garrafa verde e da marca no vidro. Também lembro que não me olhava, diretamente, quando disse que ele e minha mãe iriam se divorciar."

terça-feira, 8 de abril de 2008

Evidente e terrível

Durante duas semanas não posso escrever, porque preciso entregar um trabalho e o prazo está no fim.

Vou colocar o início do livro na ordem, um pouco a cada dia.

Hoje os parágrafos 4 a 9.

Nos parágrafos 6, 7 e 9 adaptei algumas poesias antigas, sobre a ausência de um amante.

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"Fui para o computador pensando em trabalhar um pouco. Abri o arquivo de um relatório que devia terminar para a próxima semana. Estava cansada, embora não conseguisse dormir, e não pude me concentrar.

Havia o outro texto. Pensei em ligar para o terapeuta assim que amanhecesse. Será que ele poderia ler? Mas não podia mostrar a ninguém enquanto estivesse nesse estado de angústia. Precisava me acalmar.

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Eu não poderia dizer o nome dele. Eu soube que era frágil quando deixou a camisinha no chão. Não lavou nem ficou desconfiado que eu pudesse usar aquilo como prova de alguma coisa. Nem brincou com o líquido, porque era evidente que não estava alegre. Eu tentava me apegar à minha postura de estudante, e encarar o sexo tecnicamente. Não era exatamente possível, com ele.

Quando olhei ele estava em frente à janela. No fundo do quarto, num canto escuro. Falou alguma coisa que não escutei, depois lembrou que precisava comprar um presente para sua filha de doze anos. Tinha os olhos tristes e eu mesma fiquei triste, como nunca teria imaginado, mesmo em todas as vezes em que pensei na sensação: de estar com ele, num quarto.

Eu nunca disse nada porque não havia modo de falar. Não queria que o sentimento se enfraquecesse em frases frágeis: quanto havia pensado em sua pele, sua proximidade. Não sabia dizer com a gravidade que existia internamente.

Depois que ele saiu, tive vontade de ir ao banheiro. Ao sentar no vaso, senti o cheiro entre minhas pernas. Só então percebi como era evidente e terrível: ele havia ido embora. Não senti culpa, apenas a tristeza da impossibilidade. Isso era ainda mais difícil de aceitar. "

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Realidade finita e permanente

Cansada.

Um trecho de Mário de Andrade, uma crônica sobre Machado de Assis publicada no livro "Vida Literária" (um dos melhores que já li).

"E minha nitidez, por isso, é desacomodada e se arrepende de ser tão nítida. Bem desejaria não apenas duvidar de mim, sempre duvido, mas ter a certeza de que essa nitidez é interessada, fruto do tempo e das minha exigências pessoas. Porém não chego a ter certeza disto, antes sinto e quero em mim uma opinião perfeitamente filosófica, que contemple Machado de Assis na sua realidade finita e permanente."

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Minha admiração humildemente grata por Mário de Andrade.

De certo modo, o único modelo verdadeiro que tenho na literatura brasileira.

Tentei escrever um pouco sobre ele no meu site antigo... algo chamado "Encontro com Nêmesis" e "Excluído o otimismo".

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Hoje coloquei a hora verdadeira.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

La gente joven de Menudo

"Paula levou os discos para a escola no dia seguinte. Quando chegamos ao corredor da nossa sala, Cíntia e as amigas vieram olhar. Logo se formou um grupinho de meninas à nossa volta. Elas apontavam seus cantores preferidos, gritavam e diziam "Ai, como ele é lindo!" e suspiravam. Depois começaram a discutir quem era mais bonito, e falavam cada vez mais alto, e os nomes Robby, Ray, Roy, Charlie se repetiam numa discussão quase histérica. Eu estava um pouco confusa de ver Paula gritando daquela maneira, com uma força que eu nunca vira antes.

- Guarda esses discos, Paula. A professora está chegando.

Paula nem me ouvia. Os meninos perceberam a movimentação e nos cercaram. Ao ver os discos dos Menudos na mão de Paula, começaram a gritar também:

- Olha a roupa dele! Veado!

Viravam os braços afeminadamente imitando os cantores, rindo e provocando: "Ui! Não se reprima!". Elas ficaram irritadíssimas e queriam bater neles. Faltavam poucos minutos para a aula começar, e o corredor estava todo tomado pelos alunos da quinta-série. Eu tentei puxar Paula para longe daquela confusão, com medo que as professoras nos vissem. Paula segurava um disco que Alexandre tentava arrancar da mão dela. Continuei puxando seu braço, ela virou o corpo repentinamente tentando se livrar, nisso Alexandre puxou o disco com força, o vinil caiu da capa e rolou pelo chão. Os outros meninos avançaram num golpe, pisando no disco com violência até destruí-lo. Em pouco tempo estava todo quebrado em pedaços.

A professora apareceu no fundo do corredor e a turma se dispersou. Paula não olhou para mim. Abaixou-se diante do disco e começou a catar os pedaços, guardando um por um dentro da capa. Não reclamou nem disse nada à professora. Nem tocou no assunto pelo resto da manhã. "

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Jarras de suco

Os três primeiros parágrafos do livro:


"Acordei provavelmente às três da manhã, depois de um sonho em que precisava preparar várias jarras de suco e tigelas de sopa para servir a alguém, e tinha medo que minha casa fosse invadida, e depois uma vergonha e o pavor de que descobrissem um hábito secreto em relação a algo que não lembro, dirigindo carros antigos em alta velocidade e batendo de propósito contra o muro, e minha mãe descobre o segredo e eu viro um homem que foge, e numa curva perco a direção do carro, uma peça escapa rolando do motor, e quando tento alcançar a peça eu acordo.

Não consegui voltar a dormir, e com alguns pensamentos soltos lembrei de minha última conversa com o terapeuta, quase um ano atrás. Imaginei o que diria se eu contasse esse sonho. Ainda guardava a imagem de seu rosto quando falei que não queria mais voltar. Seus olhos sérios e compreensivos, talvez compreensivos demais, e a sensação incômoda de que tinha pena de mim.

Os outros motivos, me forcei a lembrar. Insatisfeita porque o ritmo semanal não correspondia às minhas crises, a hora marcada não era quando eu precisava de ajuda, sempre contrariada pois os cinquenta minutos terminavam e eu não queria me interromper. "

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Existe uma teoria de que a primeira frase de um livro - o incipit - concentraria de alguma maneira tudo o que segue.

Não sei.