quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Um sábado

Dia 12 de abril era um sábado. Alguns anos antes, era a data em que eu comemorava meu aniversário de casamento. Mas não lembrei. Acordei às nove da manhã e fiz minha xícara de café preto, esquentei um pão francês e preparei um ovo frito. Gosto de comer ovo frito com pimenta do reino no café da manhã, aprendi com meu pai. Comi assistindo à reprise do jornal da manhã, depois liguei o computador. Desde que me divorciei, há três anos, voltei a jogar videogames. Sempre que consigo, passo os fins de semana sozinha aproveitando minhas coisas preferidas. Videogame, histórias em quadrinhos, cerveja e sorvete.

Minha quitinete tem uma cama de solteiro e uma mesa pequena onde uso o computador. Tenho apenas uma estante de livros, com cinco prateleiras pequenas. Só guardo os poucos livros que despertam meu afeto mais sincero. Duas prateleiras têm apenas quadrinhos, o tipo mais específico que me interessa, histórias realistas e cotidianas em que nada grave acontece.

Foi aos poucos que percebi que gosto de ficar sozinha. Meu temperamento natural é dócil. Cresci num condomínio cheio de crianças, no sábado eu brincava o dia inteiro até as últimas crianças serem forçadas a voltar pra casa de noite. Na época em que meus pais eram casados, eles gostavam que ficássemos fora brincando, enquanto descansavam no apartamento silencioso. Quando casei eu pensava em ter filhos, não era um plano cuidadoso mas eu gostava de crianças e imaginava que um dia isso aconteceria.

Acho que foi uma perna quebrada que mudou tudo isso.

Meu pai me ensinou a fazer ovo frito depois que ele e minha mãe se divorciaram. Por um tempo ele morou numa quitinete. Eu e meu irmão passávamos os fins de semana com ele, que estendia colchonetes pelo chão, o cômodo parecia uma barraca de acampamento, os colchonetes entre as paredes cheias de prateleiras com livros sobre modelismo e marcenaria. No canto havia uma pia com suas poucas louças, e um fogareiro de uma boca. Ele acordava de manhã e ia comprar pão na lanchonete de baixo. Depois nos acordava, montava uma mesa dobrável, e fritava oito ovos no fogareiro, cada um de nós comia dois ou três. Ele moía pimenta do reino no seu ovo, eu achava forte mas admirava e aprendi a gostar.

Enquanto esteve casado com minha mãe, meu pai passava a madrugada trancado no quartinho da lavanderia, lendo ou montando modelos de madeira. Não havia mais lugar na casa para as miniaturas de trens, castelos, esqueletos de dinossauros. Ele continuava montando, dava os modelos prontos para alguma criança do condomínio. Ficava escondido no quartinho para que a luz não acordasse minha mãe, que tinha sono leve.

Para mim essas noites solitárias eram uma esquisitice, um sinal simpático e inofensivo de que meu pai não era muito normal.

No sábado de manhã, quando sento em frente ao computador para jogar videogame, apoio os pés sobre um banquinho de madeira. Na perna direita ainda tenho uma cicatriz quase invisível do machucado na aula de rapel, aos vinte e sete anos, quando quebrei a tíbia ao escorregar de um pedregulho, na descida da cachoeira onde fizemos o treinamento.

Minha perna quebrada não era grave, mas a recuperação da fratura foi lenta. Quando estava quase boa senti novamente dor, e o exame de ultrassom mostrou um coágulo. Passei alguns meses tomando anticoagulante, até o médico garantir que estava tudo certo e eu não corria mais nenhum risco de embolia.

No computador, comecei um novo jogo, chamado “City of Fools”. Não tem tradução em português, mas poderia ser Cidade Maluca. Eu começo o jogo num vagão de trem. Quando desço na estação, um funcionário desanimado me diz que metade dos negócios da cidade estão fechados, porque o prefeito roubou o caixa da prefeitura e fugiu para sua mansão numa ilha. Eu sigo um mapa que encontro no meu bolso. Quando chego numa casa pequena com um jardim bonito, encontro minha avó velhinha chorando. Seu gatinho de estimação costumava dormir no barco do prefeito, ancorado no cais da cidade. Quando o prefeito fugiu, levou sem querer o gato junto.

O jogo é simples mas não tem nenhuma pista muito clara. Eu preciso visitar todas as casas da cidade para descobrir o que fazer. Depois de jogar uns quarenta minutos, sinto vontade de fazer xixi. Café é diurético. Eu bebo uma xícara cheia de manhã.

Sempre gostei de acordar com calma pela manhã. Na escola, sempre que possível, estudei à tarde. Gosto de fazer tudo aos poucos e devagar. Na primeira vez que fui numa feira de imóveis com Ricardo, meu ex-marido, fiquei paralisada na entrada do pavilhão do Anhembi. Procurávamos um apartamento, planejávamos nos casar. Naquela época ele era carinhoso e comentou: “Sei que você prefere coisas pequenas. Mas coragem. Vamos conseguir um bom negócio.”

Ricardo se espantava com o tamanho da minha xícara de café. Ele tinha uma energia natural. De manhã tomava suco de laranja e poderia correr dez quilômetros. Ele se sentiu meio culpado quando quebrei a perna. Era sempre ele quem sugeria os passeios de aventura. Eu acompanhava, os lugares eram lindos, o clima esportivo me divertia, mas eu mesma, por minha própria escolha, nunca tentaria descer de rapel de uma cachoeira num alto de um pedregulho.

Quando me recuperei da fratura e do coágulo, eu estava mais magra e desanimada. Ricardo sugeriu, amoroso, que tentássemos ter um filho. Parecia uma ótima ideia. Um bebê para amarmos no nosso apartamento novo que foi um ótimo negócio. Uma criança frágil para eu cuidar, uma desculpa excelente para fugir do rapel e dos pedregulhos.

Passei quase dois anos tentando e nada aconteceu. Ricardo acompanhou minha angústia. Tentando ajudar, ele marcou uma consulta numa clínica de fertilidade. Fomos à primeira consulta juntos e a médica me passou uma série de pedidos de exame.

Nessa época nós morávamos em Perdizes. Para ir à clínica, na rua Itapeva, eu cortava caminho pela rua Fernando de Albuquerque. Entrava na Peixoto Gomide e passava na esquina da Herculano de Freitas, onde ficava a quitinete em que meu pai morou.

O divórcio dos meus pais mudou os humores no apartamento em que cresci, no conjunto Kowarick, na Aclimação. Minha mãe passou alguns anos estressada e ansiosa. Eu e meu irmão brigávamos por qualquer iogurte ou mudança no canal de TV.

Mas eu tinha ótimas memórias da quitinete na rua Herculano de Freitas.

Meu pai comprou um Atari para nós. Nos fins de semana passeávamos durante o dia, no museu do Ipiranga, no Zoológico, no Simba Safari. À noite na quitinete jogávamos videogame. Eu era ótima em Pitfall, controlando um homenzinho que corria longamente por uma floresta, pendurava-se em cipós, saltava sobre cabeças de jacarés para atravessar lagoas, pulava escorpiões nas cavernas até encontrar um saco de dinheiro.

Aos meus trinta anos, enquanto eu tentava engravidar, meu pai já tinha se aposentado. Ele se mudou para Valença, na Bahia, onde montou uma oficina de móveis para lanchas e veleiros. Minha mãe alugava dois quartos para estudantes estrangeiros, e passava os fins de semana em Santos com seu namorado, vice-campeão estadual sênior de triatlo.

No jogo “Cidade Maluca”, eu entro no apartamento 82, da casa 17 da rua do Hamburguer. É uma casa velha de madeira, com uma bicicleta pendurada de ponta cabeça no balcão do primeiro andar. No aparamento, uma mulher cansada ao lado do carrinho de um bebê que chora sem parar. Ela me pergunta se sou a babá que ela pediu no anúncio. Diz que está sem energias, que já tentou de tudo e o bebê não para de chorar. No chão há alguns briquedos espalhados. Tento dar uma bola, um chocalho e um ursinho para o bebê. O choro continua. Ele quer alguma comida, mas nem eu nem a mãe sabemos o que é.

Dirigindo sozinha para a clínica de fertilização na rua Itapeva, levando uma pasta de exames dentro da bolsa, eu lembrei do homenzinho no Pitfall, perdurado nos cipós, saltando sobre escorpiões e crocodilos. Era eu pegando o carro para mostrar os exames à médica, para fazer uma inseminação, para ter um filho, para ter um marido feliz e com um filho que talvez também gostasse de rapel, e iria me levar novamente a uma cachoeira no alto de um pedregulho, onde eu poderia novamente escorregar, quebrar a perna e ter uma embolia por causa de um coágulo.


Sentada na minha quitinete no sábado de manhã, eu visitaria todas as casas da Cidade Maluca e enquanto minha perna descansava no banquinho. Eu achava meu pai esquisito porque ele passava madrugadas no quartinho da lavanderia montando miniaturas de veleiros de madeira. Mas entendo plenamente que passe sua aposentadoria em Valença na Bahia, medindo e cortando compensado naval para os armários embutidos dos barcos de outras pessoas. Nem todo mundo quer ter um barco e sair navegando. Algumas pessoas preferem cortar pedaços de madeira entre as paredes de um quartinho.